Arte Urbana e Espaços Expectantes: Intervenções clandestinas e projectos comissionados nos terrenos da antiga Lisnave (Almada, Portugal)

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8 min readJun 7, 2018

Ágata Dourado Sequeira[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: A relação entre arte urbana, nas suas diferentes expressões, do graffiti à street art, com a ruína e as edificações em situação de abandono é tão antiga como a sua prática. Com este ensaio visual pretendo partir de um contexto muito específico — o dos terrenos da antiga Lisnave em Almada (Portugal) — para ilustrar a coexistência de diferentes formas de criatividade, diferentes práticas e diferentes significados subjacentes à arte urbana, enquanto mundo social em crescente complexificação.

Palavras-chave: arte urbana, street art, graffiti, edificado em abandono, ruína, legal/ilegal.

Abstract: The relationship between urban art, in its diferente expressive forms, from graffiti to street art, and the ruin and abandoned builings, is as old as the practice itself. With this visual essay I aim to start from a very specific context — the site of the old Lisnave in Almada (Portugal) — to illustrate the coexistence of different forms of creativity, different practices and different meanings that underlie urban art, as a social world that is growing in complexity.

Keywords: urban art, street art, graffiti, abandoned buildings, ruins, legal/illegal.

[1] https://orcid.org/0000-0002-3615-9457 Investigadora no CICS.NOVA / FCSH-UNL. Doutorada em Sociologia e actualmente desenvolvendo investigação no projecto “TransUrbArts” — Emergent Urban Arts is Lisbon and São Paulo, (IF/01592/2015) — projecto financiado pela FCT/MEC. O CICS.NOVA / FCSH-UNL é também financiado por fundos nacionais através FCT/MEC (UID/SOC/04647/2013).

A Lisnave foi um estaleiro naval de grandes dimensões — onde existiu, aliás, a dado momento, a maior doca seca do mundo. Situado em Almada, cidade na margem sul do rio Tejo, esteve em actividade de 1967 a 2000, tendo fechado as portas precisamente no último dia do século XX[2]. O impacto desta estrutura na vida económica e social da cidade foi considerável, e o seu fecho um evento traumático para boa parte da população local. Desde o seu encerramento até ao momento presente, a estrutura permanece, já sem os equipamentos e maquinarias, mas com todo o edificado — armazéns, oficinas, estaleiros, cantinas e edifícios de escritórios. E também permanece esse inusitado ex-libris desta cidade, o gigantesco pórtico vermelho de 300 toneladas, como memória de um passado industrial que, apesar dos planos de dinamização imobiliária para esses terrenos, ainda não deu lugar ao que se sucederá. Um espaço expectante, portanto.

Visitei os terrenos da antiga Lisnave em Fevereiro de 2018[3], com o intuito de ver de perto as diversas intervenções que o conhecido artista urbano Vhils lá tinha feito — e que só são visíveis ao vivo na parte de dentro do recinto. Percorrendo aquelas ruas, edifícios e armazéns vazios de gente, onde vestígios da história social e industrial do espaço são visíveis por todo o lado, pude também observar uma considerável variedade de intervenções, cujos intuitos seguem uma combinatória de transgressão, expressividade, criatividade e intuito artístico. Expressões que vão desde o graffiti, com todos os seus sentidos de subversão e clandestinidade, à arte comissionada e em grande escala de Vhils, passando por murais em spray de artistas diversos, feitos sem autorização, ou intervenções feitas com o intuito de figurar em videoclips de bandas[4].

A observação destas intervenções sugeriu-me estar perante um palco onde as várias formas de arte urbana coexistem, nos seus significados, intuitos e contextos de produção. Se no momento presente assistimos a processos de artificação e comodificação das diferentes expressões de arte urbana, que já não se cingem ao acto espontâneo e individual de intervir na parede de uma rua, havendo uma crescente tendência de recurso a trabalhos comissionados por parte das entidades públicas locais e também por entidades privadas e comerciais, bem como o recente fenómeno de uma crescente presença de alguns dos seus artistas em galerias comerciais, ou em museus, marcando o mercado da arte (Bengtsen, 2014, Campos, 2015, Sequeira, 2016, Schacter, 2014). Um espaço como a Lisnave mostra a coexistência de ambos, servindo como palco quer para o graffiti e a street art com intuito de desafio, de transgressão (Campos, 2010) — através da intervenção artística e criativa ilegal, quer para a exibição de intervenções comissionadas por artistas urbanos consagrados.

Carlos Fortuna associa a ruína à «expressão alegórica da conflitualidade urbana de todos os tempos» (Fortuna e Leite, 2013:112), considerando-a parte marcante e inerente das grandes cidades. As ruínas, marcantes «traços de uma história social suspensa» (Fortuna e Meneguello, 2013:234), na sua «dignidade feita de silêncios» (Silva, 2014:17) — testemunham o passado das cidades e também o seu presente, no que refere nomeadamente às questões em torno da gestão política e econômica do espaço urbano.

A relação entre o graffiti e a street art e as ruínas ou os espaços urbanos em situação de abandono ou degradação, é tão antiga quanto próxima. Não só porque numa primeira instância constituem telas pouco vigiadas e de potencial visibilidade (in loco ou virtual), sendo que ao mesmo tempo podem suscitar uma vontade de expressão por parte dos intervenientes em relação ao meio urbano onde vivem. Não indiferente a estas questões será também um certo fascínio por estas estruturas, menos qualificável mas igualmente possível em tantos que fazem da experiência urbana uma prática expressiva.

A arte urbana, a relação entre o artista, o observador e a cidade (Waclawek, 2011) contribuem para a construção do espaço público urbano, na medida em que, ao ocupar estruturas físicas urbanas, desloca as fronteiras do privado e do público, como também pode constituir fonte de estímulo de diálogo e discursos sobre o espaço público urbano (op.cit). A este fenómeno não é indiferente um certo carácter de resistência e de desafio quando há uma apropriação dos elementos urbanos (Caeiro, 2014). É nesse sentido que a ocupação de fachadas e estruturas degradadas por intervenções criativas pode constituir uma acção expressiva, um questionamento sobre os destinos da cidade e sobre os poderes que a controlam, além de um estímulo ao discurso e diálogo sobre estas questões e sobre os papéis que os cidadãos podem ter nesses destinos. Mais do que um questionamento, há neste assinalar de espaços urbanos por elementos artísticos um efeito inerente (e porventura inesperado) de proposta de acção sobre o espaço público, pelos seus cidadãos, já que produzir arte nas ruas é em si uma forma de contestar determinados usos e noções de espaço público (Sequeira, 2016a).

Mesmo que essas intervenções não sejam necessariamente visíveis in loco ao comum dos transeuntes urbanos — como é o caso das que existem nos terrenos da antiga Lisnave. Actualmente a questão da ‘visibilidade’ da arte urbana tem também um componente virtual fortíssimo. O desafio e a transgressão inerentes ao acto de intervir num espaço como este, privado, mas sentido como ‘público’ no sentido em que faz parte da história recente da cidade — e por isso emocionalmente apropriado por tantos — completam-se com a documentação das intervenções para consumo em redes sociais (Sequeira, 2016b). Foi também essa a lógica inerente às intervenções de Vhils, a de elaborar peças para serem sobretudo acedidas virtualmente, não já sob a égide da transgressão, mas da comissão.

Finalizando, pode-se dizer que são o “direito à cidade” (Lefebvre, 2012), a ‘transgressão’ e a ‘comodificação’ — os eixos aparentes do momento que o mundo da arte urbana parece atravessar, e que parecem coexistir neste espaço expectante e singular que são os terrenos da antiga Lisnave na Margueira, em Almada.

[2] https://www.publico.pt/2000/12/31/jornal/o-fim-do-grande-estaleiro-153120
[3] Aproveito para agradecer a autorização do Senhor Arquitecto Luís Azevedo Machado, Diretor Adjunto do Conselho de Administração — Margueira SGFII, S.A., que me permitiu aceder às instalações, tornando possível a recolha fotográfica aqui presente.
[4] Como os graffiti de subtracção de Vhils para as bandas U2 e Buraka Som Sistema, ou a pintura em spray do símbolo da banda de metal Moonspell.

Todas as fotografias presentes neste ensaio visual são da autoria de Miguel Almada.

Referências:

BENGTSEN, Peter. 2014. The street art world. Almendros de Granada Press.

CAEIRO, Mário. 2014. Arte na Cidade: História Contemporânea, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores.

CAMPOS, Ricardo. 2015. ‘Graffiti, street art and the aestheticization of transgression’, Social Analysis 59 (3), pp. 17–40.

CAMPOS, Ricardo. 2010. Porque pintamos a cidade? Uma abordagem etnográfica ao graffiti urbano, Lisboa: Fim de Século.

FORTUNA, Carlos e LEITE, Rogério Proença (org.). 2013. Diálogos Urbanos: Territórios, Culturas, Patrimónios, Coimbra, Almedina / CES.

FORTUNA, Carlos e MENEGUELLO, Cristina. 2013. ‘Escombros da Cultura: O Cine-Éden e o Teatro Sousa Bastos’, in Fortuna, Carlos e Leite, Rogério Proença (org.), Diálogos Urbanos: Territórios, Culturas, Patrimónios, Coimbra, Almedina / CES, pp.233–258.

LEFEBVRE, Henri. 2012. O Direito à Cidade, Lisboa, Letra Livre.

SCHACTER, Rafael. 2014. ‘The ugly truth: Street Art, Graffiti and the Creative City’, in Art & the Public Sphere, 3 (2) pp. 161–176.

SEQUEIRA, Ágata. 2016a. ‘Ephemeral Art in Impermanent Spaces: The effects of street art in the social construction of public space’, in Guerra, P.; Costa, P.; Neves, P. S. (eds.), Urban Interventions: Street Art and Public Space, Lisbon: Urban Creativity (internacional). ISBN 978–989–97712–6–0

SEQUEIRA, Ágata. 2016b. ‘A cidade é o habitat da arte’: Street art e a construção de espaço público em Lisboa, Tese de Doutoramento em Sociologia, Lisboa, ISCTE-IUL.

SILVA, Gastão de Brito e. 2014. Portugal em Ruínas, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.

WACLAWEK, Anna. 2011. Graffiti and Street Art, London: Thames & Hudson.

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