Detalhe ou fragmento? Olhar em partes a paisagem urbana no cotidiano da cidade: corte & ruptura imagéticas no registro fotográfico do grafitti

Fotocronografias
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7 min readJun 7, 2018

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Danilo Gustavo Silveira Asp[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: Ensaia-se como pensar em partes se traduz no ato de olhar e registrar a paisagem urbana, numa relação ambígua, observada na dicotomia entre detalhes e fragmentos imagéticos. É o jogo entre o corte e a ruptura, entre reconstituição ou reconstrução de dada realidade, a partir de cacos ou estilhaços. Com efeito, o registro fotográfico da arte de rua, como o grafite, permite investigar a anfibologia pertinente a desmontagem ou desconstrução do todo, a partir do clique, que o divide em pedaços.

Palavras-chave: Detalhe ou fragmento. Corte e ruptura imagética. Paisagem e arte urbana. Grafite. Walter Benjamin.

Abstract: One rehearses how to think of parts is translated into the act of looking and registering the urban landscape, in an ambiguous relation, observed in the dichotomy between details and fragments of images. It is the play between the cut and the rupture, between reconstitution or reconstruction of a given reality, from shards and shards. Indeed, the photographic record of street art, such as graffiti, allows us to investigate the amphibology pertinent to the disassembly or deconstruction of the whole, from the click, which divides it into pieces.

Keywords: Detail or fragment. Landscape & urban art. Graffiti. Walter Benjamin.

[1]Universidade Federal do Pará (UFPA), Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA), Laboratório Estudo Linguagem, Imagem e Memória (LELIM).
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6517145716873221.

INTRODUÇÃO

N a geometria da superfície ótica da fotografia, uma parte pode ser definida tanto como fragmento ou detalhe. No cotidiano, ao caminhar pelas ruas e observar a arte urbana, o registro imagético de um pedaço destas, representa detalhe ou fragmento? É de cacos e estilhaços que se trata. Adequado para principiar é considerar os vestígios e suas associações: a ideia de pensar em partes (LISSOVSKY 1995: 15), principalmente à paisagem urbana, dinâmica, permeada por dialética constante.

No ensaio a grafiteira Carla Raiol ao expressar sua arte ativista-engajada nos muros de Bragança-Pará, forneceu material que, além de abordar a crítica social pertinente ao feminismo, igualmente, o registro de seu trabalho possibilitou desenvolver debate teórico-estético a respeito do uso da imagem como ferramenta de estudo no campo da antropologia visual a partir da questão proposta por Benjamin: a ambivalência entre detalhe-ou-fragmento.

FRAGMENTO CINTILANTE

A tradição crítica legou-nos dois modos de pensar a parte em sua relação com o todo. Uma vez que os termos são interdefinidos, a relação entre eles é a de uma divisão. (CALABRESE 1989: 84–92). Por um lado, há o corte, plano — fruto de um desmonte –, constitui-se em detalhe (modelos reconstitutivos; descritivos; análise hipotético-dedutiva; recepção por recolhimento e atenção). Por outro, há a ruptura, rompimento fractal na geometria — espalham-se estilhaços, advindos de uma desconstrução — neste caso, a parte é um fragmento, uma “centelha” (modelos reconstrutivos; explicativos; investigação indutiva; recepção por hábito e distração). O detalhe permite reler o sistema pois dele foi extraído provisoriamente, porém, o fragmento gera análise conjectural, já que o sistema original está ausente.

O contexto das imagens diz respeito a um evento organizado pela Prefeitura: 16 Dias de Ativismo pelo Combate à violência contra a Mulher. O conjunto das atividades incluiu passeata, projeções fílmicas, debates, grafitti, e o próprio registro imagético das ações. Note-se que a intervenção, além de autorizada, pois fazia parte da programação oficial, foi financiada pelo executivo municipal, que pagou pelas tintas. Portanto, não era um ato clandestino tampouco se tratava de “vandalismo”. Sem embargo, a polícia foi acionada, e a artista e o fotógrafo foram abordados. É notório que a prática do grafitti passa constantemente por marginalização-criminalização, e que a arte retratada foi concebida sob a marca de questões políticas. Porém o que mais incomodou os policiais foi o ato de cobrir o rosto, haja vista que naquele período, final do ano de 2013, o país perpassara por momentos de crise que engendraram tumultuosos protestos populares, nos quais militantes dos movimentos sociais “mascarados” sofreram repressão oriunda dos enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes naquilo que se convencionou chamar de Jornadas de Junho, principiadas pelos atos do “Passe Livre”.

A narrativa visual não expôs o momento de tensão pois obrigou-se o fotógrafo a desligar o equipamento, fato que pode ser observando na diferença de enquadramento nas imagens onde os policiais aparecem, pois foram feitas sem olhar através do visor da câmera. Todavia, após os esclarecimentos — o lenço não era para esconder a identidade, mas para proteger dos espirros de tinta — os agentes da lei retiraram-se e o grafitti foi concluído. Aquele muro não mais existe; e tais observações sobre as intervenções — a artística e a repressora — também podem ser avaliadas pela ótica dual de detalhe-fragmento. No entanto, o episódio permite analisar através do registro imagético, como as ações artístico-políticas nas ruas, revelam o modo como os sujeitos forjam relações com o Estado, marcadas impreterivelmente pela força e poder.

Considerando então a foto nº 15, percebe-se o Fragmento Cintilante: uma “colagem de memórias extrapoladas de seus contextos” (BENJAMIN 1984: 204), que “insere-se em uma estrutura cuja organicidade lhe é autônoma; é desarqueologizado, jamais remetendo ao seu hipotético inteiro” (LISSOVSKY 1995: 19).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre os gestos de acionar, ajustar, focar, desligar, disparar, foi cheio de consequências o click, que fixa um acontecimento por período ilimitado de tempo. A máquina comunica ao instante um “choque póstumo”. O instante destaca-se e o acontecimento se cristaliza sob “configuração saturada de tensões.” Aí, a fotografia pode tornar-se mônada (“espelho do mundo”), “transcendendo aquilo que nela é detalhe ou fragmento” (LISSOVSKY 1995: 95).

Benjamin define aura [fotográfica] como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja (LÖWY 1989: 85). As imagens, enquanto espaço do imaginário humano, social e individual, permitem àquele que usufrui, também “roer um pedaço da realidade” (SAMAIN 2003: 48).

Mesmo forjada como ferramenta para discutir a epistemologia da prática antropológica, a imagem é um artefato cultural, uma linguagem (BARBOSA; CUNHA 2006: 07), portanto, possibilita aprofundar a investigação etnográfica acerca das relações dialéticas construídas pelo sujeito com os semelhantes, consigo mesmo — memória — e com o espaço que habita e transforma; convive, observa e registra, nestes tempos de civilização da imagem.

Referências:

BATISTA, Jandré Corrêa. 2010. “A fotografia como discurso: alteridade, etnografia e comunicação”. In: Revista Anagrama, 3(4): 1–15.

BARBOSA ,Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da. 2006. Antropologia e imagem. Rio de Janeiro: Zahar.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, pp. 165–192.

CALABRESE, Omar. 1989. La Era Neo Barroca. Madrid: Cátedra.

LISSOVSKY, Mauricio. 1995. A Fotografia e a Pequena História de Walter Benjamin. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Escola de Comunicação. Rio de Janeiro.

LÖWY, Michel. 1989. Redenção e Utopia. São Paulo: Companhia das Letras.

SAMAIN, Etienne. 2003. “Antropologia de uma imagem “sem importância”. In: Ilha, 5(1): 47–64.

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