Dos territórios da memória às vivências do espaço, sambistas e outros antigos carnavalescos da cidade

Fotocronografias
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5 min readNov 18, 2023

Josiane Abrunhosa da Silva

Ano: 1993
Categoria:
Formas de Sociabilidades
Palavra-chave: Laços Geracionais

Resumo: Este ensaio é o fruto de uma breve reflexão sobre os fragmentos fotográficos de uma pesquisa etnográfica realizada na Escola de Samba Bambas da Orgia, juntamente com depoimentos de antigos carnavalescos de rua e que resultou na dissertação “Bambas da Orgia: um estudo sobre o carnaval de rua de Porto Alegre, seus carnavalescos e os territórios negros)

Este estudo discute o estabelecimento de fronteiras culturais no interior da cidade, focalizando as práticas sociais dos bambistas e os referenciais coletivos que estão relacionados coma cultura dos carnavalescos de rua, especialmente os que se referem a delimitação e vivência de um mesmo espaço ou território.

Entres as diversas abordagens sobre o tema priorizei centralizar a atenções nos sujeitos que organizamos carnaval de rua e não na ritualidade do evento. A partir da observação etnográfica e dos depoimentos dos carnavalescos mais antigos, ressalto aspectos relativos a memória coletiva do grupo e a vivência de um espaço comum, buscando mapear os referências e as representações que organizam e definem um território particular do passado e do presente, que aqui são percebidos como territórios negros da cidade de Porto Alegre.

Participar das festas organizadas pela escola, dos ensaios e, também, do carnaval de rua, para os bambistas, inclui conhecer e participar do ethos do grupo, especialmente porque mitos dos componentes socializam seus filhos nas festas. Através desta, se integram no muno do samba, daqueles que sabem sambar, pois o outro para os bambistas é também representado pro aquele que não sabe sambar.

A continuidade da escola, ou da família azul e branco, no dizer dos bambistas, está relacionada às crianças que desde pequenas acompanham os pais nas atividades que a escola organiza, o que é uma prática frequente.

Vinha, então, pelo costado do rio até chegar na ponte de pedra. Quando chegamos lá, tava o pessoal esperando e os clarins tocavam. Então pegávamos a João Alfredo até a Baronesa, aquela loucura. Dai chegava a hora da cerimonia que eu tinha que dar o discurso, assinar o decreto, abrir o carnaval: Povo do meu reinado, é com divino sacrifício que venho lá das bandas da Etiópia! Mas tenho imenso prazer em estar com vocês, e da mesma forma, enfrentando problemas e outras coisas… E eu, meu querido povo, não tenho muitas coisas a oferecer! Aqui vai o meu decreto: que durante estes três dias eu assumo a responsabilidade. Se tiverem conta pra pagar, não paguem, isto é, por minha conta. Podem comer, beber, dançar, se divertir, tudo é por minha conta. Aqui encerro já que não tenho pétalas de rosas para vocês. Daí palmas e pá, pá, Pá! Tava aberto o carnaval da Baronesa.

(Lelé, o Rei Momo Preto do Areal da Baronesa)

Adão Alves de Oliveira, 69 anos e a abertura do carnaval da Baronesa

Nas falas que anotamos pode-se perceber referência a algumas noções que indicam o pertencimento a um grupo comum, que podem passar desapercebidas para quem não faz parte da Escola e não integra esse universo. Destacam-se: “ser de religião”, “ser pedetista” e “pertencer a uma grande família ou melhor, a família azul e branco.

Nas fotos que tirei da Escola no desfile de 1991, encontra Dona Sueli segurando pela mão sua neta que esta vestida de baianinha.

Dona Sueli, uma das baianas mais antigas, contou-me que apesar de seus 69 anos, amanhecia na Escola e geralmente levava as crianças. Muitos de seus netos se criaram, portanto, na Escola e a maioria, atualmente, participa do carnaval.

O areal da Baronesa pode ser considerado, pelo menos até a década de 40, como um dos territórios negros que cidade comportou no passado. O carnaval organizado pelos seus moradores é, particularmente, significativo, pois não só representou um espaço importante de afirmação da etnicidade dos descendentes de africanos da cidade, como por ter se transformado em um referencial constante no qual as lembranças dos antigos carnavalescos vão esta articuladas.

O final do carnaval do Areal da Baronesa coincide com o período em que, paralelamente, o bairro foi um dos alvos de inúmeras medidas urbanísticas que passaram a ser implementadas pelo poder publico, ao longo da década de 40 e 50, e que redefiniram sua feição.

No entanto, a arquitetura do bairro mostra que as continuidades simbólicas com o passado, e estão também articuladas com o presente, seja na Travessa dos Venezianos, ou no trajeto sinuoso da antiga rua da Margem que margeava o riachinho e por onde desfilavam os blocos e grupos, e fazem parte da memória dos antigos carnavalescos de rua.

O areal da Baronesa era uma extensa área que ficava a margem esquerda do riachinho e que correspondia, em grande parte, a antiga chácara que foi propriedade do Barão e da Baronesa do Gravataí, local que posteriormente vem a fazer parte do bairro Cidade Baixa.

No século XIX, entre os primeiros moradores do Areal, estavam os negros alforriados da senzala do Barão e da Baronesa do Gravataí e negros que deixaram de ter residência fixa e migraram para as áreas próximas da região central da cidade, como o Areal da Baronesa.

Na rua Baronesa do Gravataí, local onde era celebrado o carnaval do Areal da Baronesa, meu olhar, através da câmera, registra o que restou da frente de uma pequena casa de porta e janela, que não tem mais compridos corredores, e o efeito destruído da patrola que segue continuamente, destruindo mais uma das imagens do passado do bairro.

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