“Estou ao lado do açougue”: construindo narrativas etnográficas de espaços cotidianos

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6 min readJun 20, 2019

“I’m next to the butcher’s”: constructing ethnographic narratives of everyday spaces”

Jeferson Carvalho da Silva [1]

Resumo: Luiz está sentado numa cadeira, em frente à sua loja, ao lado do açougue. Este ensaio visual busca tratar sobre um pequeno espaço da Praça Marechal Deodoro, Viçosa (MG). É nesse lugar que Luiz trabalha, constrói dois pontos no espaço, inventa seu próprio mapa e se coloca na paisagem cotidiana da cidade.

Palavras-chave: Espaço urbano; Produção do espaço; Cotidiano

Abstract: Luiz is in a chair, in front of his store, next to the butcher’s. This visual essay seeks to deal with a small space in the Praça Marechal Deodoro, Viçosa (MG). In this place Luiz works, builds two points in space, invents his own map and places himself in the everyday landscape of the city.

Keywords: Urban space; Production of space; Everyday life

[1] Graduando em Ciências Sociais, Universidade Federal de Viçosa (UFV). Trabalho realizado junto ao projeto “Narrar a cidade: a poética e a política do cotidiano, experimentações em antropologia urbana”, orientado por Douglas Mansur da Silva. Email: jefercarvsilva@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/0211950272893852

“Estou ao lado do açougue”

“Ah, se eu for parar pra contar minha história pra você, rapaz, eu não posso nem trabalhar não, vou ter que tirar um dia, de tanta coisa que tem. Nossa senhora!”. Luiz nasceu em Presidente Bernardes (MG), “cidade vizinha de Viçosa (MG)”, foi criado no Rio de Janeiro, morou durante dezoito anos em Belo Horizonte. Saindo de lá, veio para Viçosa e há sete anos trabalha no mesmo lugar.

Em uma portinha estreita, espremida entre um açougue e uma pensão, vende um tanto de coisas, das mais variadas: óculos, panos de prato, chinelos, cintos, chapéus, bolsas, meias, luvas, cuecas, cadarços, além de trocar correias de chinelo quebradas. Do outro lado da rua, atrás do ponto de ônibus e junto às paredes em ruínas do antigo hotel da cidade, monta uma barraquinha onde vende laranjas e mexericas. O vendedor esboça um mapa no local. Ligando os dois espaços, cria suas próprias placas indicando sua localização, para que o encontrem quando não estiver na barraquinha.

Luiz conta que começou aos poucos: “Teve aquela luta aí né, fui pra feira final de semana, vendendo nada direito”, então, “coloquei umas coisinhas poucas aqui na rua, fiquei mais ou menos um ano trabalhando aqui com essas coisinhas aí, depois aquela lojinha tava fechada eu fui e abri ela, aluguei do cara e já tem sete anos que eu tô ali dentro”.

Pergunto se já houve alguma interferência da Prefeitura em seu trabalho e ele responde: “Já mexeram várias vezes né, mas deles abordarem mercadoria minha e levar foi só uma vez. Isso aí eles é chato, mas não é só aqui não: é São Paulo, é Belo Horizonte, é Rio, qualquer lugar eles mexe. Trabalhei muito tempo de ambulante no Rio, há muitos anos, mais duns quinze anos. Durante a minha vida no Rio eu trabalhei de ambulante. Sempre gostei de trabalhar em feira, mas agora não trabalho em feira mais não, trabalho só em ponto”.

Produção de espaços cotidianos

A cidade, em sua constante articulação fragmentária de espaços, nos conta sobre si através das pedras de suas calçadas, dos objetos jogados em seus acostamentos, das placas que nos mostram seus caminhos, dos passos que se perdem neles, dos encontros com sua matéria efêmera e cotidiana. Ela se faz nas maneiras inventivas com que sua materialidade é ocupada e construída cotidianamente.

A dimensão material da cidade e de seus espaços se encontra impregnada, e indissociável, de relações sociais e simbólicas. Os espaços se encontram em constante transformação e produção, eles carregam em si uma dinâmica própria que dialoga com as formas com que pessoas e objetos agem sobre e com sua matéria. “Isso quer dizer que o espaço não é uma coisa, mas um conjunto de relações entre as coisas . Produzir espaço significa, portanto, colocar em relação coisas” (URIARTE, 2014, p.116).

Os habitantes de uma cidade, em suas práticas cotidianas, utilizam os espaços urbanos de outras maneiras que não as que são impostas, porém não se limitam a isso, pois são capazes também de produzir coisas e espaços outros (URIARTE, 2014). Assim como Luiz, mesmo sem perceber, no seu “corpo a corpo” cotidiano, entrelaçam a composição de uma história múltipla que tem sua formação cunhada nos fragmentos de trajetórias e espaços, em um movimento poético estranho a imposições totalizantes (CERTEAU, 2014).

Narrativas de espaço

Rolnik (2012) nos diz que a cidade pode ser lida como um texto, que seus espaços podem nos contar pedaços de suas próprias histórias. Assim, a observação do que se passa nos espaços de uma cidade pode nos colocar em contato com as configurações das relações ali estabelecidas, com a efemeridade, com suas dimensões conflituosas e dramáticas (ARANTES, 2000).

Dessa forma, narrar a cidade e os eventos que ocorrem em seus espaços, nos envolve numa atmosfera não linear, feita em retalhos, onde conjuntos de narrativas “bricoladas” tecem as tentativas articuladoras de dizer sobre lugares desconexos e complementares, na formação de um todo que é a própria cidade. De narrar histórias que se cruzam e se espalham por uma malha estendida sobre as pedras, o asfalto, a memória e a imaginação inventiva das pessoas que transitam e constroem suas ruas diariamente, impregnando-as com seus símbolos. Desse modo, relatar a cidade é uma forma de, constantemente, fundar seus espaços (CERTEAU, 2014).

Localizar a produção de narrativas etnográficas nesses contextos nos coloca em um ato de imersão, num mergulho no emaranhado de espaços e narrativas cotidianas em constante processo de construção. Espaços, pessoas e objetos, inventivamente, se tornam protagonistas de suas próprias histórias. Apropriando-se de uma matéria anterior, rígida e impositiva, configurando suas relações políticas, sociais e simbólicas, acabam por fazer-se a si mesmos e o seu entorno. Nesse sentido: “a etnografia de um espaço social não pode ser senão a etnografia do que se passa nele” (SANTOS; VOGEL, 1985, p. 49).

Referências Bibliográficas

ARANTES, Antonio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público . Campinas: Editora da Unicamp. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

CERTEAU, Michel de. Terceira parte: práticas de espaço. In: ______. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer . 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade . 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos; VOGEL, Arno. Quando a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro . 3. ed. São Paulo: Projeto FINEP/IBAM, 1985.

URIARTE, Urpi Montoya. Produção do espaço urbano pelos homens ordinários: antropologia de dois micro-espaços na cidade de Salvador. Revista Iluminuras , v. 15, n. 36, p. 115–134, 2014.

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