Imagens e levantes em Curitiba: uma cartografia das intervenções urbanas
Ariadne Grabowski
http://lattes.cnpq.br/5142973056705772
https://orcid.org/0000-0001-5263-4783
afsgrabowski@gmail.com
Doutoranda em Design pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Teoria e História do Design. Mestre em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, na linha de pesquisa Mediações e Culturas (2021). Possui formação em Bacharelado em Design pela UTFPR, com habilitação em design gráfico e de produto (2016). Graduação-sanduíche na Universidad de Sevilla (US) pelo Programa Ciência sem Fronteiras (2014–2015). Participa dos grupos de pesquisa: Design e Cultura (UTFPR) e Cartografias da Cultura Material Recente (UFPR). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
Resumo: Neste ensaio, a partir da ideia de levante, percorro possíveis sentidos para as intervenções urbanas presentes em Curitiba (Paraná, Brasil). As mensagens mapeadas estão espalhadas pela cidade, em bairros como São Francisco, Centro Cívico e Centro. As frases e expressões que visam mobilizações políticas, também circunscrevem uma multiplicidade de imaginários materializados no espaço público curitibano. Minha intenção, para além de uma reflexão, é apresentar o registro e a circulação desses fragmentos como possibilidades de levantes.
Palavras-chave: Levante. Imaginário. Intervenção urbana. Curitiba.
Imágenes y insurrecciones en Curitiba: una cartografía de las intervenciones urbanas
Resumen: En este ensayo, basado en la idea de insurrección, exploro posibles significados para las intervenciones urbanas presentes en Curitiba (Paraná, Brasil). Los mensajes mapeados están dispersos por toda la ciudad, en barrios como São Francisco, Centro Cívico y Centro. Las frases y expresiones que tienen por objeto movilizaciones políticas, también circunscriben una multiplicidad de imaginarios materializados en el espacio público de Curitiba. Mi intención, además de una reflexión, es presentar el registro y la circulación de estos fragmentos como posibilidad de insurrecciones.
Palabras clave: Insurrección. Intervención urbana. Imaginario. Curitiba.
Images and uprisings in Curitiba: a cartography of urban interventions.
Abstract: In this essay, starting from the idea of uprising, I explore possible meanings for the urban interventions present in Curitiba (Paraná, Brazil). The mapped messages are scattered throughout the city, in neighborhoods such as São Francisco, Centro Cívico, and Centro. The phrases and expressions that aim at political mobilizations also circumscribe a multiplicity of imaginaries materialized in the Curitiba public space. My intention, beyond a reflection, is to present the record and circulation of these fragments as a possibility of uprising.
Keywords: Uprising. Urban interventions. Imaginary. Curitiba.
O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações. Esse é o trecho inicial de “Juízo Final”, música composta por Nelson Cavaquinho[1] em 1973[2]. Essa frase, na voz de Clara Nunes[3], teve ampla repercussão nas redes sociais no domingo de 30 de outubro de 2022, segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Aqueles que compartilhavam o trecho, faziam menção à derrota de Jair Bolsonaro[4] na eleição e a possibilidade de voltar sentir uma fagulha de esperança. No ensaio “O peso dos Tempos” de Didi-Huberman (2018), é possível estabelecer uma relação com essa ideia. O autor cita Freud[5] para narrar a respeito da indestrutibilidade do desejo, “algo que nos faria buscar uma luz, apesar de tudo, por mais fraca que fosse”[6].
Uma das maneiras que Didi-Huberman explica o conceito de levante é por meio da alegoria do ponto de luz que guia os prisioneiros para “atravessar as trevas”. Para entender essa metáfora, é preciso lembrar que a luz existe como esperança perante os “tempos sombrios” ou “tempos de chumbo”. Chumbo. Arma. Política armamentista[7]. Como não pensar nas questões urgentes ligadas às barbáries da atual política brasileira? Didi-Huberman coloca uma questão: “Não temos, a toda hora, que levantar nossos tantos fardos de chumbo? Não precisamos, para tanto, levantar a nós mesmos e, forçosamente (…) levantarmo-nos todos juntos?”[8]. O autor pontua que “não há uma escala única para os levantes: eles vão do minúsculo gesto de recuo ao mais gigantesco movimento de protesto”[9].
Nesse sentido, neste ensaio as imagens são apresentadas como materializações de imaginários insurgentes que se levantam contra os “tempos sombrios” no Brasil. As imagens são constituídas de frases e expressões que visam mobilizações políticas, e se configuram como um gesto de levante porque permitem elaborar imaginários, ou seja, meios pelos quais se mobilizam afetivamente as pessoas (SERBENA, 2003).
Márcio Seligmann-Silva (2018) entende que as imagens de levantes podem ser classificadas em “imagens de ruptura, de revolta; as palavras rebeldes exclamadas e inscritas em muros e livros; imagens das lutas e conflitos; imagens de lutas pela justiça, memória e verdade”. Assim, localizo essas imagens como as “palavras rebeldes”, fragmentos de lutas e/ou reivindicações políticas as quais estão inscritas na cidade.
Realizei as imagens deste ensaio com a câmera do meu celular em Curitiba (Paraná, Brasil) entre março de 2021 e outubro de 2022, à medida em que eu encontrava pela cidade cartazes, adesivos e lambes. Caminhar por estas ruas faz parte da minha rotina, visto que moro na região central da cidade e, na época que realizei a maioria desses registros, trabalhava perto do Centro Cívico, bairro onde os principais prédios governamentais estão localizados. Estabeleço estas imagens como parte de uma cartografia[10] orientada pelos percursos que realizei em Curitiba:
Nesses trajetos, pude reconhecer que as ações necessárias para realizar as intervenções (como pintar, desenhar, colar) deixam algumas pistas e indícios na materialidade da cidade. A partir da técnica do estêncil[19], por exemplo, de acordo com a posição do molde, é possível imaginar que não houve tempo disponível para que a intervenção fosse feita com precisão. Essas ações também pressupõem um imaginário sobre como se deram as gestualidades de quem produziu as intervenções. Em que momento e/ou sob quais circunstâncias as intervenções foram realizadas? Do mesmo modo, ações que indicam interferências de outras pessoas, como as palavras que são cortadas ou “censuradas”, evidenciam o estabelecimento de um caráter dialógico dessas imagens. O que também possibilita uma imaginação sobre a passagem do tempo entre uma manifestação e outra. Nesse caso, as letras apagadas indicam o tempo como uma instância constitutiva da visualidade das intervenções urbanas.
Se pensarmos na cidade como um campo social onde a disputa pelo seu uso ocorre não apenas materialmente, mas também simbolicamente, então as imagens que habitam muros, paredes, postes e diversas outras superfícies, também produzem o imaginário. Assim, as intervenções nas superfícies urbanas representam uma das formas pelas quais as mobilizações sociais são possíveis. Afinal, é preciso, antes de tudo, fazer agir uma forma (uma imagem, um levante) para assim visualizarmos “a luz que há de chegar”.
[1] Nelson Cavaquinho (1911–1986) foi um cantor, compositor e violonista brasileiro.
[2] “Juízo Final” é uma canção composta por Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. Foi gravada em 1973 no álbum homônimo do sambista.
[3] Clara Nunes, nome artístico de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro (1942–1983), foi uma cantora e compositora brasileira.
[4] Jair Messias Bolsonaro (1955-) é um militar reformado e político brasileiro, atualmente filiado ao Partido Liberal. É o 38.º presidente do Brasil desde 1.º de janeiro de 2019, tendo sido eleito pelo Partido Social Liberal.
[5] Sigmund Freud (1836–1939) foi um neurologista e psiquiatra austríaco criador da psicanálise e uma personalidade influente no campo da psicologia.
[6] DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 37.
[7] A política armamentista, atualmente defendida por Jair Bolsonaro, é o processo pelo qual um país procura armar-se com o intuito de proteger-se de outro.
[8] Ibidem, p. 38.
[9] Ibidem.
[10] Recorro à ideia de cartografia descrita por Martín Barbero (2004) que, para além do conceito de “mapas”, não representa apenas fronteiras, mas possibilita a construção de imagens das relações e entrelaçamentos durante os processos metodológicos.
[11] FOLHA DE SÃO PAULO (2021), G1 (2021), AGÊNCIA SENADO (2021).
[12] Nome popular da Rua São Francisco.
[13] O Centro Histórico de Curitiba é conhecido por abrigar um conjunto de edificações de importância histórica e cultural. Compreende quinze quadras que pertencem aos bairros São Francisco e Centro, limitando-se ao entorno das praças Tiradentes, José Borges de Macedo, Generoso Marques, Garibaldi e João Cândido.
[14] Pussy Riot é um grupo de punk rock feminista russo que se tornou conhecido por realizar shows e eventos de manifestação política, em prol dos direitos das mulheres e contra políticas governamentais discriminatórias na Rússia. O grupo também ficou famoso pela oposição ao presidente russo Vladimir Putin.
[15] Informações retiradas do Instituto Marielle Franco (2022). O Instituto foi criado pela sua família com a missão de inspirar, conectar e potencializar milhares de jovens, negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade.
[16] Flávio Nantes Bolsonaro (1981) é um empresário, advogado e político brasileiro, filiado ao Partido Liberal. Eduardo Nantes Bolsonaro (1984-) é um policial federal e deputado federal pelo estado de São Paulo desde 2018, filiado ao Partido Liberal. Carlos Nantes Bolsonaro (1982-) é um político brasileiro e atualmente cumpre seu 5º mandato como vereador do município do Rio de Janeiro filiado ao Republicanos. Os três são filhos de Jair Bolsonaro (ver nota 4).
[17] Os preços informados são respectivamente: óleo diesel (R$6,90 por litro), da carne moída (R$92 por quilograma), do gás de cozinha (R$150 o botijão com 13 quilogramas), da gasolina (R$8,24 por litro) e da cesta básica (R$803). Nos doze meses até agosto de 2022 o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) indicou alta de 8,73% nos preços (FOLHA DE SÃO PAULO, 2022).
[18] “Um(a) analfabeto(a) pode ser livre?” (tradução minha).
[19] O estêncil é uma técnica de pintura que utiliza o molde vazado ou máscara para aplicar um desenho em qualquer superfície.
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. O peso dos Tempos. IN: SESCSP. Levantes. São Paulo, 2018. Catálogo de Exposição. Disponível em: https://issuu.com/sescpinheiros/docs/levantes_completo_issu
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A Política das Imagens na Exposição Levantes. ZUM. Revista de Fotografia, São Paulo, 23 de Janeiro de 2018. Exposições. Disponível em: https://revistazum.com.br/exposicoes/selligman-exposicao-levantes/
SERBENA, Carlos Augusto. Imaginário, ideologia e representação social. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. 2003.