Imagens e levantes em Curitiba: uma cartografia das intervenções urbanas

Fotocronografias
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8 min readSep 21, 2023

Ariadne Grabowski

http://lattes.cnpq.br/5142973056705772
https://orcid.org/0000-0001-5263-4783
afsgrabowski@gmail.com
Doutoranda em Design pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Teoria e História do Design. Mestre em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, na linha de pesquisa Mediações e Culturas (2021). Possui formação em Bacharelado em Design pela UTFPR, com habilitação em design gráfico e de produto (2016). Graduação-sanduíche na Universidad de Sevilla (US) pelo Programa Ciência sem Fronteiras (2014–2015). Participa dos grupos de pesquisa: Design e Cultura (UTFPR) e Cartografias da Cultura Material Recente (UFPR). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.

Resumo: Neste ensaio, a partir da ideia de levante, percorro possíveis sentidos para as intervenções urbanas presentes em Curitiba (Paraná, Brasil). As mensagens mapeadas estão espalhadas pela cidade, em bairros como São Francisco, Centro Cívico e Centro. As frases e expressões que visam mobilizações políticas, também circunscrevem uma multiplicidade de imaginários materializados no espaço público curitibano. Minha intenção, para além de uma reflexão, é apresentar o registro e a circulação desses fragmentos como possibilidades de levantes.

Palavras-chave: Levante. Imaginário. Intervenção urbana. Curitiba.

Imágenes y insurrecciones en Curitiba: una cartografía de las intervenciones urbanas

Resumen: En este ensayo, basado en la idea de insurrección, exploro posibles significados para las intervenciones urbanas presentes en Curitiba (Paraná, Brasil). Los mensajes mapeados están dispersos por toda la ciudad, en barrios como São Francisco, Centro Cívico y Centro. Las frases y expresiones que tienen por objeto movilizaciones políticas, también circunscriben una multiplicidad de imaginarios materializados en el espacio público de Curitiba. Mi intención, además de una reflexión, es presentar el registro y la circulación de estos fragmentos como posibilidad de insurrecciones.

Palabras clave: Insurrección. Intervención urbana. Imaginario. Curitiba.

Images and uprisings in Curitiba: a cartography of urban interventions.

Abstract: In this essay, starting from the idea of uprising, I explore possible meanings for the urban interventions present in Curitiba (Paraná, Brazil). The mapped messages are scattered throughout the city, in neighborhoods such as São Francisco, Centro Cívico, and Centro. The phrases and expressions that aim at political mobilizations also circumscribe a multiplicity of imaginaries materialized in the Curitiba public space. My intention, beyond a reflection, is to present the record and circulation of these fragments as a possibility of uprising.

Keywords: Uprising. Urban interventions. Imaginary. Curitiba.

O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações. Esse é o trecho inicial de “Juízo Final”, música composta por Nelson Cavaquinho[1] em 1973[2]. Essa frase, na voz de Clara Nunes[3], teve ampla repercussão nas redes sociais no domingo de 30 de outubro de 2022, segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Aqueles que compartilhavam o trecho, faziam menção à derrota de Jair Bolsonaro[4] na eleição e a possibilidade de voltar sentir uma fagulha de esperança. No ensaio “O peso dos Tempos” de Didi-Huberman (2018), é possível estabelecer uma relação com essa ideia. O autor cita Freud[5] para narrar a respeito da indestrutibilidade do desejo, “algo que nos faria buscar uma luz, apesar de tudo, por mais fraca que fosse”[6].

Uma das maneiras que Didi-Huberman explica o conceito de levante é por meio da alegoria do ponto de luz que guia os prisioneiros para “atravessar as trevas”. Para entender essa metáfora, é preciso lembrar que a luz existe como esperança perante os “tempos sombrios” ou “tempos de chumbo”. Chumbo. Arma. Política armamentista[7]. Como não pensar nas questões urgentes ligadas às barbáries da atual política brasileira? Didi-Huberman coloca uma questão: “Não temos, a toda hora, que levantar nossos tantos fardos de chumbo? Não precisamos, para tanto, levantar a nós mesmos e, forçosamente (…) levantarmo-nos todos juntos?”[8]. O autor pontua que “não há uma escala única para os levantes: eles vão do minúsculo gesto de recuo ao mais gigantesco movimento de protesto”[9].

Nesse sentido, neste ensaio as imagens são apresentadas como materializações de imaginários insurgentes que se levantam contra os “tempos sombrios” no Brasil. As imagens são constituídas de frases e expressões que visam mobilizações políticas, e se configuram como um gesto de levante porque permitem elaborar imaginários, ou seja, meios pelos quais se mobilizam afetivamente as pessoas (SERBENA, 2003).

Márcio Seligmann-Silva (2018) entende que as imagens de levantes podem ser classificadas em “imagens de ruptura, de revolta; as palavras rebeldes exclamadas e inscritas em muros e livros; imagens das lutas e conflitos; imagens de lutas pela justiça, memória e verdade”. Assim, localizo essas imagens como as “palavras rebeldes”, fragmentos de lutas e/ou reivindicações políticas as quais estão inscritas na cidade.

Realizei as imagens deste ensaio com a câmera do meu celular em Curitiba (Paraná, Brasil) entre março de 2021 e outubro de 2022, à medida em que eu encontrava pela cidade cartazes, adesivos e lambes. Caminhar por estas ruas faz parte da minha rotina, visto que moro na região central da cidade e, na época que realizei a maioria desses registros, trabalhava perto do Centro Cívico, bairro onde os principais prédios governamentais estão localizados. Estabeleço estas imagens como parte de uma cartografia[10] orientada pelos percursos que realizei em Curitiba:

01. “Dia 29 o estado massacrou os professores” foi a frase que encontrei na Rua Brigadeiro Franco, com uma rasura ilegível na segunda linha, onde, suponho, poderia estar indicado o mês de abril. Nesta data, no ano de 2015, a Polícia Militar atacou servidores estaduais que protestavam em frente da Assembleia Legislativa, em Curitiba. É um dia constantemente lembrado pela memória do massacre contra os servidores do estado.
02. “Minto”, registrei na Comendador Macedo, perto de casa, em meados de junho de 2021. A palavra, acompanhada de uma ilustração do presidente do país, faz um trocadilho com o apelido de Jair Bolsonaro, que é chamado de “mito” por seus apoiadores. A expressão nos lembra que Jair Bolsonaro mente.
03. Ainda sobre o governante, na Rua XV de Novembro — grande via pública exclusiva para pedestres e localizada no centro comercial da cidade — , a frase “Bolsonaro se aproveita da pandemia para atacar o povo” é repetida pelo menos 5 vezes até a borda rasgada do papel. A sentença faz alusão à conduta do presidente durante a pandemia de Covid-19, onde 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se medidas de controle, como o distanciamento social e a vacinação, tivessem sido implementadas no país[11].
04. Com o mesmo sentido, “Brasil é o único país do mundo onde o presidente se uniu com o coronavírus para matar a população”, apareceu na Rua São Francisco, em meio a outros cartazes com diferentes mensagens. Esse mosaico de imagens, resume a aura da “Rua do Fogo”[12], que fica no Centro Histórico de Curitiba[13], bairro onde muitas manifestações culturais convergem atualmente.
05. Na mesma rua, “Revide” nos provoca com uma ilustração que reconheço como sendo da Pussy Riot[14], grupo de punk rock russo. O símbolo da banda indica que essa mensagem pode ter um viés feminista, e parece ser um convite a revidar politicamente em diversos sentidos.
06, 07 e 08. Sobre “TIRANO”, faço a leitura em sílabas: ti-ra-no. Mais uma vez o foco da mensagem diz respeito ao presidente da República e à sua forma de governo autoritária. Bem como um par de lambes chamado “Milícia”. No cartaz à esquerda (rasgado ao meio, onde completo mentalmente com as letras que faltam), um texto explicativo aparece ao lado: “um poder paralelo, que não integra as forças armadas ou de polícia de um país composto por militares, paramilitares ou civis armados. De acordo com a Anistia Internacional, as milícias utilizam da força para extorquir a população em determinados territórios urbanos ao redor do mundo”. Abaixo, o número 117, que indica o modelo do desenho do fuzil ilustrado na sequência do texto. Ao que tudo indica, a escolha deste armamento em particular é uma menção à arma encontrada na casa do suspeito de atirar em Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes. Vereadora do Rio de Janeiro, Marielle era mulher negra, LGBT, socióloga e defensora dos Direitos Humanos, que foi assassinada em um atentado ao carro onde estava, junto com o motorista Anderson Gomes[15]. Do lado direito, a colagem que denuncia quem seria “A Milícia”: na frente de uma laranja, a família presidencial — Flávio, Jair, Eduardo e Carlos Bolsonaro[16].
09. “Corpo livre estado laico” possivelmente reflete sobre a contradição de um estado laico que nega o direito de mulheres ao próprio corpo e ao aborto seguro.
10. Na frente de um mercado, “BOLSOCARO”, título que materializa a indignação da população com os preços do óleo diesel, da carne moída, do gás de cozinha, da gasolina e da cesta básica[17], atribui o porquê da inflação: “culpa do Bolsonaro”.
11. Já “¿Puede ser libre un analfabeta?”[18] li no caminho para a aula, e me fez pensar no que entendemos, afinal, como liberdade.
12. Em outro percurso, depois de tomar um café, me deparei com as sentenças: “Aborto já é seguro pra quem tem $$$”, “saúde é autonomia” e “ocupa: rua, rede, urna”. Fiquei com uma pergunta na cabeça: era possível desassociar essas três frases?

Nesses trajetos, pude reconhecer que as ações necessárias para realizar as intervenções (como pintar, desenhar, colar) deixam algumas pistas e indícios na materialidade da cidade. A partir da técnica do estêncil[19], por exemplo, de acordo com a posição do molde, é possível imaginar que não houve tempo disponível para que a intervenção fosse feita com precisão. Essas ações também pressupõem um imaginário sobre como se deram as gestualidades de quem produziu as intervenções. Em que momento e/ou sob quais circunstâncias as intervenções foram realizadas? Do mesmo modo, ações que indicam interferências de outras pessoas, como as palavras que são cortadas ou “censuradas”, evidenciam o estabelecimento de um caráter dialógico dessas imagens. O que também possibilita uma imaginação sobre a passagem do tempo entre uma manifestação e outra. Nesse caso, as letras apagadas indicam o tempo como uma instância constitutiva da visualidade das intervenções urbanas.

Se pensarmos na cidade como um campo social onde a disputa pelo seu uso ocorre não apenas materialmente, mas também simbolicamente, então as imagens que habitam muros, paredes, postes e diversas outras superfícies, também produzem o imaginário. Assim, as intervenções nas superfícies urbanas representam uma das formas pelas quais as mobilizações sociais são possíveis. Afinal, é preciso, antes de tudo, fazer agir uma forma (uma imagem, um levante) para assim visualizarmos “a luz que há de chegar”.

[1] Nelson Cavaquinho (1911–1986) foi um cantor, compositor e violonista brasileiro.
[2] “Juízo Final” é uma canção composta por Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. Foi gravada em 1973 no álbum homônimo do sambista.
[3] Clara Nunes, nome artístico de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro (1942–1983), foi uma cantora e compositora brasileira.
[4] Jair Messias Bolsonaro (1955-) é um militar reformado e político brasileiro, atualmente filiado ao Partido Liberal. É o 38.º presidente do Brasil desde 1.º de janeiro de 2019, tendo sido eleito pelo Partido Social Liberal.
[5] Sigmund Freud (1836–1939) foi um neurologista e psiquiatra austríaco criador da psicanálise e uma personalidade influente no campo da psicologia.
[6] DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 37.
[7] A política armamentista, atualmente defendida por Jair Bolsonaro, é o processo pelo qual um país procura armar-se com o intuito de proteger-se de outro.
[8] Ibidem, p. 38.
[9] Ibidem.
[10] Recorro à ideia de cartografia descrita por Martín Barbero (2004) que, para além do conceito de “mapas”, não representa apenas fronteiras, mas possibilita a construção de imagens das relações e entrelaçamentos durante os processos metodológicos.
[11] FOLHA DE SÃO PAULO (2021), G1 (2021), AGÊNCIA SENADO (2021).
[12] Nome popular da Rua São Francisco.
[13] O Centro Histórico de Curitiba é conhecido por abrigar um conjunto de edificações de importância histórica e cultural. Compreende quinze quadras que pertencem aos bairros São Francisco e Centro, limitando-se ao entorno das praças Tiradentes, José Borges de Macedo, Generoso Marques, Garibaldi e João Cândido.
[14] Pussy Riot é um grupo de punk rock feminista russo que se tornou conhecido por realizar shows e eventos de manifestação política, em prol dos direitos das mulheres e contra políticas governamentais discriminatórias na Rússia. O grupo também ficou famoso pela oposição ao presidente russo Vladimir Putin.
[15] Informações retiradas do Instituto Marielle Franco (2022). O Instituto foi criado pela sua família com a missão de inspirar, conectar e potencializar milhares de jovens, negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade.
[16] Flávio Nantes Bolsonaro (1981) é um empresário, advogado e político brasileiro, filiado ao Partido Liberal. Eduardo Nantes Bolsonaro (1984-) é um policial federal e deputado federal pelo estado de São Paulo desde 2018, filiado ao Partido Liberal. Carlos Nantes Bolsonaro (1982-) é um político brasileiro e atualmente cumpre seu 5º mandato como vereador do município do Rio de Janeiro filiado ao Republicanos. Os três são filhos de Jair Bolsonaro (ver nota 4).
[17] Os preços informados são respectivamente: óleo diesel (R$6,90 por litro), da carne moída (R$92 por quilograma), do gás de cozinha (R$150 o botijão com 13 quilogramas), da gasolina (R$8,24 por litro) e da cesta básica (R$803). Nos doze meses até agosto de 2022 o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) indicou alta de 8,73% nos preços (FOLHA DE SÃO PAULO, 2022).
[18] “Um(a) analfabeto(a) pode ser livre?” (tradução minha).
[19] O estêncil é uma técnica de pintura que utiliza o molde vazado ou máscara para aplicar um desenho em qualquer superfície.

Referências

DIDI-HUBERMAN, Georges. O peso dos Tempos. IN: SESCSP. Levantes. São Paulo, 2018. Catálogo de Exposição. Disponível em: https://issuu.com/sescpinheiros/docs/levantes_completo_issu

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A Política das Imagens na Exposição Levantes. ZUM. Revista de Fotografia, São Paulo, 23 de Janeiro de 2018. Exposições. Disponível em: https://revistazum.com.br/exposicoes/selligman-exposicao-levantes/

SERBENA, Carlos Augusto. Imaginário, ideologia e representação social. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. 2003.

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