Lembranças viajantes de espaços poéticos urbanos

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6 min readJun 22, 2019

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Travelers memories of urban poetic spaces

Wendell Marcel Alves da Costa[1]

Resumo: Este ensaio define as lembranças viajantes como atividades mentais de revisitação de imagens de experiências em cidades. Referem-se a práticas em espaços “comuns” da cidade, como becos, ruas, parques, avenidas, pontes e viadutos. Aqui, lembramos dos espaços poéticos urbanos, que são pequenos e cotidianos. Por meio de etnografias de rua, nossa pesquisa apresenta doze imagens de experiências vividas em temporalidades significantes, logo, abduzem sentidos afetivos e contra-afetivos em espaços poéticos urbanos. Dessa forma, mostramos a cidade como um lugar potencial para a imaginação simbólica das pessoas que praticam os espaços “comuns” e fabulam leituras oníricas na dimensão das lembranças viajantes.

Palavras-chave: Lembranças viajantes; espaços poéticos; cidade.

Abstract: This essay defines travelers memories as mental activities of revisiting images of experiences in cities. They refer to practices in “common” spaces of the city, such as alleys, streets, parks, avenues, bridges and viaducts. Here, we remember the urban poetic spaces, which are small and everyday. Through street ethnography, our research presents twelve images of experiences lived in significant temporalities, thus, they abduct affective and counter-affective senses in urban poetic spaces. In this way, we show the city as a potential place for the symbolic imagination of the people who practice the “common” spaces and they celebrate dreamlike readings in the dimension of travelers memories.

Key words: Travelers memories; poetic spaces; city.

[1] Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Cientista Social pela UFRN. Associado da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Integrante do Grupo de Pesquisa Linguagens da Cena: imagem, cultura e representação (CNPq). E-mail: marcell.wendell@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6669730006727241.

Lembranças viajantes é um conceito para se referir as atividades imaginativas de revisitar na lembrança imagens de espaços em temporalidades vividas no passado afetivo. São imagens de espaços conhecidos e reconhecidos durante viagens de férias, trabalho, compromissos rápidos em sua própria cidade, em outras cidades, estados, países. Nessas viagens a curtas e longas distâncias, a pé, de ônibus, metrô, skate, bicicleta ou carro/moto, cria-se uma paisagem simbólica da cidade visitada e dos tempos afetivos construídos na viagem: quais sensações, afetos e sentimentos foram guardados sobre os espaços visitados, observados, vividos em temporalidades constituídas por tempos acidentados?

Os tempos acidentados são fugas ao tempo cotidiano, esvaziado pelas possibilidades das experiências, pois “eliminar o imprevisto ou expulsá-lo do cálculo como acidente ilegítimo e perturbador da racionalidade, é interdizer a possibilidade de uma prática viva e ‘mítica’ da cidade” (CERTEAU, 2014, p. 281). Nesse sentido, a prática de caminhar, perambular e se perder na cidade — como forma de reconhecer a cidade — é prática para a combustão do fluxo de imagens urbanas que vão fabricar imaginários sensíveis do urbano, resgatas no presente pelas lembranças viajantes.

Em outras palavras, andar pela cidade faz revelar uma cidade escondida em cantos, lugares, vielas, ruas, avenidas, becos, parques, nos espaços “comuns” pouco visitados e vividos (COSTA, 2017), mas que possuem — pela ausência e presença de pessoas — a substância do afetivo (COSTA, 2018a). É desse afetivo como elemento das narrativas dos espaços — gostar, negar, visitar, “passar longe”, assombrado, onírico, obscuro — que queremos dizer neste ensaio (COSTA, 2018b).

Nossas lembranças viajantes são incursões individuais e subjetivas às imagens urbanas guardadas sobre experiências em localidades das cidades, viajam nas imaginações simbólicas e constroem códigos e signos urbanos (DURAND, 1993). Ao passo que o cotidiano das pessoas se apresenta como modalidade da vida vivida programada, as lembranças viajantes são instigadas por imagens que viajam no fluxo da memória, são reapresentadas ao consciente, alcançam outras significações daquelas inferidas no ato do registro ocular, ou seja, voltam como lembranças que passeiam nos trânsitos da memória afetiva.

As lembranças viajantes as vezes são materializadas em blocos de nota no celular, em cadernos e diários, fotografadas, filmadas, publicadas em redes sociais, ou apenas trazidas ao presente no pensamento pelas lembranças acionadas pelos sentidos do corpo: os cheiros penetrantes na memória dos milhares de ingredientes no Mercado 4 de Assunção; a bela paisagem arquitetural e o ar de nostalgia do Parque da Pampulha, em Belo Horizonte; a sensação de frescor e o sentimento de saudade que nunca se viveu no Cais e Porto, em Barreiras; a mudança estrutural das ruas e avenidas no Centro do Recife, são alguns dos exemplos pessoais de experiências urbanas.

Desse jeito, as imagens desses lugares e das situações vividas sofrem processos intensos de ressignificações nas temporalidades vividas no momento presente, então as lembranças viajantes passeiam no fluxo das memórias em tempos passados e presentes — do “antes” e do “depois” (ELIAS, 1998) ou no sistema de instantes (BACHELARD, 1988). A duração dessas temporalidades não é fechada em si, mas sim aberta a acréscimos, justaposições, cruzamentos, interposições de outras temporalidades urbanas.

Em síntese, nossas lembranças viajantes estão situadas no campo, vivenciaram e sentiram o calor, o frio, o medo e a alegria das experiências vividas, que apesar de serem compartilhadas em algumas situações, são pessoais e afetivas. Com destaque, é importante salientar que também as viagens de retorno — para lugares já visitados e praticados — navegam nas lembranças imaginárias revisitadas nas lembranças viajantes, construindo assim paradigmas dialéticos sobre a cidade imaginária — pensada, narrada e imaginada.

Neste ensaio apresento doze imagens de espaços poéticos urbanos — que são pequenos e cotidianos e contextualizados nos tempos acidentados da cidade — fruto de etnografias de rua (ECKERT; ROCHA, 2003) que carregam em seus contornos arquitetônicos, cores, cheiros e narrativas um sentido afetivo e contra-afetivo. As cidades representadas neste ensaio são, respectivamente: Barreiras-BA, São Paulo-SP, Fortaleza-CE, Salvador-BA, Brasília-DF, Recife-PE e Natal-RN.

Parte da pesquisa teórica foi elaborada durante minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com orientação da professora Dra. Lisabete Coradini, e intitulada “Cinema, imaginação e espaços poéticos memoriais: antropologia do imaginário no cinema pernambucano de Kleber Mendonça Filho”. Particularmente, as lembranças viajantes dos espaços poéticos urbanos podem ligar-se a outras visões dos mesmos espaços, concebidas em narrativas sociais artísticas e sociais, de cunho simbólico e afetivo para os que visualizam os espaços, a cidade se faz enquanto campo imaginário — presente no momento e marcado nas memórias das pessoas.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Editora Ática, 1988.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.

COSTA, Wendell Marcel Alves da. Memórias, narrativas políticas e dicotomias da cidade: olhares fílmicos sobre Recife-PE. Iluminuras, Porto Alegre, v. 18, n. 45, p. 238–268, ago./dez, 2017.

COSTA, Wendell Marcel Alves da. Fugas e medos gays: Praia do Futuro e o cinema transnacional das sensações geográfico-afetivas. Temática, ano XIV, n. 9, setembro, 2018a

COSTA, Wendell Marcel Alves da. Pontos de memórias: análise imagética das relações socioespaciais em Barreiras-BA. Cadernos NAUI, v. 7, n. 13, jul-dez, 2018b.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993.

ECKERT, Cornelia. ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras, v. 4, n. 7, 2003.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.

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