Mapeando graffiti: uma experiência pedagógica

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6 min readJun 7, 2018

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Fabricio Barreto[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: O ensaio que segue integra minha pesquisa de dissertação, cujo objeto é o graffiti da região portuária de Pelotas/RS, área antiga da cidade que hospedou um imponente pólo industrial. Hoje, parte dos prédios das fábricas estão em ruínas e a aparência de abandono e degradação tornou-se ambiente de prática do graffiti. Sob a perspectiva desta arte urbana e assumindo a caminhada como técnica de apreensão da cidade, apresento pressupostos e desenvolvimento de oficina realizada com alunos do ensino fundamental.

Palavras-chave: Graffiti. Percepção. Caminhada. Paisagem Urbana. Educação.

Mapping graffiti: a pedagogical experience

Abstract: The test that follows incorporates my dissertation research, whose object is the graffiti of the port region of Pelotas/RS, ancient area of the city that hosted an impressive industrial pole. Today, part of the plant buildings are in ruins and the appearance of abandonment and degradation became graffiti practice environment. From the perspective of this urban art and taking the walk as a technique of seizure of the city, I introduce assumptions and development workshop conducted with students of basic education.

Keywords: Graffiti. Perception. Walking. Urban landscape. Education.

[1] Mestrando no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
CV lattes: http://lattes.cnpq.br/3082951793368318

Conhecer a cidade é apropriar-se de parte de um conhecimento do mundo, dos saberes e fazeres dos habitantes em suas experiências e práticas cotidianas que o etnógrafo compartilha em sua meta-observação, desvendando a lógica de situar seu próprio ser em relação ao ser do Outro que se desloca na cidade. (ECKERT&ROCHA, 2013:22)

Segundo Tim Ingold (2005), o mapear assemelha-se a conhecer na medida que as pessoas se movem de um lugar para outro em uma região. Isso não significa que o conhecimento seja parecido com um mapa, ou que mapear seja o mesmo que elaborar um mapa. O mapa é a forma visível que expressa uma determinada maneira de relacionamento dos indivíduos com o espaço geográfico, nos oferecendo uma representação pré-objetiva das coisas no espaço independente de algum ponto de vista particular. Enquanto o mapa tem a marca do espaço institucionalizado com suas normas que regulam os acessos e as práticas sociais, o mapear se constitui no caminho. O desafio aqui é não suprimir o conhecimento gerado pelo movimento de lugar para lugar, eliminando as práticas e itinerários que contribuíram para sua produção. Pelo contrário, o propósito é trazer à tona o vivenciado, os movimentos de idas e vindas pelos quais desenvolvemos o conhecimento de um ambiente e coisas, estabelecendo conexões e equivalências entre lugares. Busco chamar a atenção para o fato de que conhecer requer movimento.

Uma escultura, por exemplo, exige ser vista em movimento, por alguém que percorra seu entorno. Como aponta Peixoto, é a partir de uma “dialética de andar e olhar que se constitui a experiência escultórica” (2003:179), uma experiência corporal que nos possibilita assimilar a cidade, seja pela visão, pelo tato, pelo contato, pelos pés. “O pitoresco pressupõe um caminhante, alguém que constrói sua percepção a partir do movimento, não do olhar” (PEIXOTO, 2003:179). Portanto, percebemos enquanto nos movemos e não apenas nos intervalos entre movimentos. Santaella nos diz que “a proposta de Merleau-Ponty (1994:48) é considerar a percepção como o primeiro acesso que temos às coisas e como fundamento de todo conhecimento” (2012:18), logo, conhecemos enquanto nos movemos. Esta afirmação está baseada no fato de que a observação não consiste em ter um ponto de vista fixo sobre o objeto, mas em variar o ponto de vista mantendo fixo o objeto. “Percepções no mundo real não envolvem um observador estacionário, […], mas um observador ativo que constantemente movimenta seus olhos, cabeça e corpo com relação ao ambiente” (SANTAELLA, 2012:59). São vários pontos de vista simultâneos: mais atrás, adiante, mais à frente, do outro lado, mais acima. “Essa visão [ou percepção] ambulatória ocorre ao longo daquilo que Gibson (1979:195–197) chama de ‘trilha de observação’” (INGOLD, 2005:86). Assim, a escultura não é vista de alguma parte, mas de parte nenhuma, ou melhor, de toda parte. A partir dessas considerações, é possível afirmar que conhecemos enquanto caminhamos, e não antes de caminhar. Portanto, para assimilarmos a cidade e, consequentemente, os graffitis, é necessário vivenciarmos ambos através da caminhada.

Estas diretrizes orientaram a realização da oficina que tive a oportunidade de ministrar para alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Francisco Simões, em Pelotas/RS. A atividade se desenvolveu em torno de caminhada, previamente roteirizada, para visualização do graffiti na região portuária pelotense. O propósito da atividade visava oportunizar aos participantes a identificação de técnicas e diferenciação de traços do graffiti, constituindo uma base para assimilação da dinâmica que envolve a aplicação de inscrições urbanas nas superfícies da cidade. O graffiti é formado por códigos que muitas vezes são incompreendidos por aqueles que não estão envolvidos com a prática. A leitura de escritas urbanas requer aprendizado e treino do olhar para reconhecimento das grafias desta arte de rua. A caminhada, portanto, foi seguida de informações que instrumentalizaram a apreensão e assimilação destas inscrições. Antes de iniciarmos a atividade, cada aluno recebeu um mapa da região que iríamos percorrer, sobre o qual, foram incentivados a realizar marcações durante a caminhada. O percurso era de aproximadamente 4km com previsão de 2h de duração. O ritmo de caminhada deveria permitir uma observação contínua seguindo o fluxo do andar e parar. Uma caminhada sistemática, intensa, que se deixasse impregnar pelos estímulos sensoriais durante o percurso.

Segundo Michel de Certeau (1998), o ato de caminhar está para o sistema urbano assim como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. Caminhar, portanto, implica em três efeitos enunciativos: a apropriação do sistema topográfico (como a apropriação de uma língua), a realização espacial do lugar (como a realização sonora da palavra) e a relação entre posições diferentes (enunciação verbal como alocução, põe em jogo contratos entre colocutores). Neste sentido, Certeau encontra uma primeira definição para o ato de caminhar como espaço de enunciação e, com isso, sugere uma retórica da caminhada. O que inicialmente era a planificação de uma mera representação espacial em forma de mapa, ganhou outros contornos, nuances e significados.

Referências:

CERTEAU, Michel de. 1998. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Ed. Vozes. 3ªed. Petrópolis.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho. 2013. Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana. Porto Alegre, Ed. UFRGS.

GIBSON, James. 1979. The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin.

INGOLD, Tim. 2005. “Jornada ao longo de um caminho de vida — Mapas, descobridor-caminho e navegação”. Religião e Sociedade, 25(1):76–110.

MERLEAU-PONTY, Maurice. 1994. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes.

PEIXOTO, Nelson Brissac. 2003. Paisagens Urbanas. São Paulo: editora SENAC São Paulo.

SANTAELLA, Lucia. 2012. Percepção: fenomenologia, ecologia, semiótica. São Paulo: Cengage.

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