O trabalho das imagens nas experiências do confinamento em hospitais-colônia

Fotocronografias
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6 min readSep 1, 2020

Daniele Borges Bezerra[1]
Claudia Turra-Magni[2]

Resumo: Este ensaio revela sobrevivências da experiência de vida em hospitais-colônia[3], lugares criados para a profilaxia da antiga lepra. Mais do que imagens do trabalho, é o trabalho das imagens que queremos aqui destacar.

Palavras-chave: trabalho das imagens; montagem; confinamento; hanseníase; leprosário.

The work of images In experiences of confinement in colony hospitals

Abstract: This essay reveals survivals of the life experience in colony hospitals, places created for the prophylaxis of the ancient leprosy. More than images of the work, it is the work of images that we want to highlight here.

Key-words: image work; assembly; confinement; leprosarium.

[1] Professora substituta no Departamento de Antropologia e Arqueologia, Universidade Federal de Pelotas
borgesfotografia@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6278-3838
http://lattes.cnpq.br/0831071373455034

[2]Professora do Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Pelotas
clauturra@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-3478-7708 http://lattes.cnpq.br/8774264386533161

[3] Este ensaio é desdobramento da tese “A ressonância afetiva das memórias como meio de transmissão para um patrimônio difícil: monumentos em antigos leprosários” (BEZERRA, 2019), e baseia-se em pesquisa na Colônia Santa Isabel/MG (CSI) e no Hospital-Colônia Itapuã/RS (HCI).

“A vida dos doentes no asilo-colônia deveria ser semelhante à dos sãos, com distrações, conforto e trabalho” (MAURANO, 1944, p. 140).

Disseram: “tu vai, fica três mês lá, melhora um pouco depois vem embora”. E tô aqui até hoje. Cheguei e logo comecei a trabalhar.

Era as irmãs que cuidavam daqui antigamente. E eu trabalhava de garçom. Trabalhei uns 15 anos, depois foi mudando (PEDRO, pseudônimo, in memoriam, depoimento oral. Viamão, 2017).

“Moro no hospital a minha vida inteira […] Eu tinha uns 9 anos quando me internei a primeira vez e agora tô com 80. A vida é corrida […] As casinhas eram tudo cheia […] e hoje tá tudo caindo” (LEONORA, pseudônimo, depoimento oral. Viamão, 2017).

“Ali no pavilhão dos homens, quando eu trabalhei, de vez em quando eu via umas sombras também. […] Agora, o interessante é que depois que tirou as correntes, nunca mais ninguém viu fantasma aqui. Quer dizer que eles também tava preso aqui(QUEIROZ, depoimento oral. Betim, 2016).

“Eu tinha 15 anos, recém ia começar a viver. Naquele tempo, em 1958, ainda tinha preconceito graúdo. As mães não podiam ter os filhos, e os parentes não podiam visitar” (VALDETE, pseudônimo, depoimento oral. Viamão, 2017).

“Trabalhei doze anos no cemitério de zelador e de coveiro. Agora eles não fazem mais cova, agora é túmulo” (ONOFRE, pseudônimo, depoimento oral, Viamão, 2017)

Muita gente não sabe do sentimento que a gente tem quando é internado numa colônia fechada. […] Nós quando criança, a gente não podia passear dentro da colônia, não podia passear não. (…) E a gente andava, tudo em fila indiana, de mão pra trás e de cabeça baixa. Era um regime tão autoritário! […] (QUEIROZ, depoimento oral. Betim, 2016.)

Minha mãe mandou Raimunda afastar e cruzar os braços pra trás, mas eu não. Do jeito que minha mãe ficou, eu fiquei. Aí ela foi castigada, e como eu tinha aproximado dela, eu apanhei muito, apanhei demais, fiquei o dia todo sem comer, de castigo. (DAS DORES, depoimento oral. Betim, 2016[4]).

Não era tão somente de sofrimento e dor que viviam os doentes que foram isolados compulsoriamente. Pensar dessa forma é imaginar que cerca de 15.000 seres humanos eram um bando de imbecis, lamentando sua sorte todo o tempo e esquecendo-se de viver. A natureza humana, felizmente tem um poder de adaptação extraordinário [e faz com que] o ser humano se amolde a um novo modo ou sistema, e até transformando o meio em que vive (RUBIO, Eu denuncio o estado, 2007, p.42).

“A história já diz isso ‘você tem que conhecer o passado para você trabalhar o presente, pro futuro ser diferente’, né?!” (QUEIROZ, depoimento oral. Betim, 2016.)

[4] Comentário referente à foto P/B mostrada pela interlocutora de unhas pintadas, em que aparecem duas meninas com a mãe ao centro.

As fotos nos ângulos superior esquerdo e direito, evidenciam uma mesma postura corporal “com as mãos para trás, como as freiras mandavam” (ERMEICIANO, informação oral, 2016).

A partir de pesquisa realizada em dois hospitais-colônia criados entre as décadas de 1920 e 1960 Daniele Bezerra (2019) abre espaço ao trabalho das imagens como meio de transmissão de patrimônios difíceis. Na confluência de imagens de arquivos, relatos e fotografias da autora, revelam-se memórias de vida e labuta geradas a partir das vivências em confinamento compulsório. Mais do que imagens do trabalho, é o trabalho das imagens que queremos aqui destacar.

Nos termos de Samain (2012, p. 161), as imagens “olham para nós”, “reacendem velhas lembranças e outras imagens” e, sobretudo, “interrogam nosso tempo presente”. É assim que a fotoelicitação (BANKS, 2009) junto a antigos moradores destes leprosários, exemplifica como as imagens trabalham no processo de pesquisa, acionando memórias, provocando emoções, pensamentos, reverberações, ressonâncias. Longe de serem representações cristalizadas do real, as fotografias continuam ativas no tempo (WARBURG, 2015), e possuem um “poder epidêmico” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 35) que desafia a invisibilidade característica de tais lugares.

Assim, na extroversão destas vivências dolorosas, o trabalho das imagens fez-se igualmente significativo, de modo que a ressonância afetiva destas memórias evoca a duração de uma experiência iniciada com a internação compulsória e reativa “sentimentos duráveis” (CHAUMONT, 2000, p.175) atrelados ao adoecimento e à estigmatização social. Estas emoções que sobrevivem como fantasmas em evocações involuntárias, nas ruínas e ressignificações daqueles Hospitais-Colônia, convocam a noção de “sobrevivência” desenvolvida por Didi-Huberman (2018), inspirado em Warburg. Compreendidas em sua potência anacrônica como uma “superfície de aparição dotada de vida” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.70) as montagens verbo-visuais aqui apresentadas convocam os conceitos de fantasmagorias e imagem dialética (BENJAMIN, 2009). No atrito entre temporalidades heterogêneas e sobrepostas, elas não almejam ilustrar situações de trabalho nos leprosários, mas fazer com que essas imagens trabalhem na reverberação daquelas vivências dolorosas, para que clausuras totalitárias e desumanas não se reproduzam.

Referências:

BANKS, M. Dados visuais para pesquisa qualitativa. São Paulo: Artmed editora, 2009.

BENJAMIN, W. Paris, capital do séc. XIX. In: Passagens. São Paulo: Editora UFMG. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

BEZERRA, D. B. A ressonância afetiva das memórias como meio de transmissão para um patrimônio difícil: monumentos em antigos leprosários. 2019. Tese (Doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural) Universidade Federal de Pelotas — Pelotas, 2019.

CHAUMONT, J.-M. Du culte des héros à la concurrence des victimes. Criminologie. v. 33, n. 1, 2000. 167–183.

DIDI-HUBERMAN, G. Images malgré tout. Les Éditions de Minuit, 2003.

________. Cascas. Serrote: Uma Revista de Ensaios, Artes Visuais, Ideias e Literatura. São Paulo, n. 13, p. 99–133. 2013.

________. A imagem queima. Tradução: Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa, 2018.

MAURANO, Flávio. Tratado de Leprologia: História da Lepra no Brasil e sua distribuição geográfica. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra,1944.

NUNES, F. A. V. (Bacurau). À margem da vida: Num leprosário do Acre. Petrópolis: Vozes, 1978.

SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Unicamp, 2012.

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