O trabalho humano-canino na truficultura chilena

Fotocronografias
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7 min readJun 24, 2023

Luisa Amador Fanaro[1]

luisafanaro@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6249-5481
http://lattes.cnpq.br/8167351407012319
[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFSCar
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Resumo: Neste ensaio visual, minhas intenções são apresentar o trabalho de humanos e cães no contexto do cultivo de trufas negras (Tuber melanosporum) no Chile. A partir do registro fotográfico das diferentes práticas co-constituídas por cães trufeiros, truficultores e trufas, resultante de pesquisa de campo realizada entre os meses de março e agosto de 2022, pretendo demonstrar que o trabalho de caçar trufas é caracterizado pela mútua afetação e só é possível com o comprometimento humano-canino.

Palavras-chave: Relações humano-animal; Trabalho animal; Cães; Cultivo de trufas.

Human-canine work in Chilean truficulture

Abstract: In this visual essay, my intentions are to present the work of humans and dogs in the context of black truffle (Tuber melanosporum) cultivation in Chile. From the photographic record of the different practices co-constituted by truffle dogs, truffle farmers and truffles, resulting from field research conducted between march and august 2022, I intend to demonstrate that the work of truffle hunting is characterized by mutual affectation and is only possible with human-canine commitment.

Keywords: : Human-animal relations; Animal work; Dogs; Truffle cultivation.

As trufas são os corpos frutíferos de fungos que mantêm uma relação de simbiose com certas espécies de árvores — no caso da trufa negra (Tuber melanosporum), com a encina española (Quercus ilex) e o carvalho turco (Quercus cerris) –, e crescem e amadurecem abaixo da terra, junto às raízes arbóreas. No Chile, seu cultivo teve início nos primeiros anos do século XXI, e seu desenvolvimento foi idealizado como uma alternativa produtiva para pequenos e médios agricultores que, mesmo em pequenas extensões de terra, poderiam desenvolver uma atividade extremamente rentável — o quilo da trufa negra pode alcançar, facilmente, os mil e duzentos dólares.

Atualmente, passadas mais de duas décadas de sua implantação, os pomares trufeiros em território chileno ocupam por volta de 450 hectares, distribuídos pelo Chile central, nas regiões Metropolitana, Libertador General Bernardo O’Higgins, Maule, Ñuble, Biobío, Araucanía, Los Ríos e Los Lagos. Ali, meus principais interlocutores são os irmãos Rafael e Víctor Henríquez, dois dos sócios-fundadores da Agrobiotruf, uma empresa sediada em Talca, na região de Maule, especializada na produção e venda de árvores micorrizadas, no assessoramento técnico e na implantação de pomares trufeiros em território chileno. Enquanto Rafael, engenheiro florestal, realiza as visitas técnicas para avaliar o manejo silvo-agrícola das trufeiras, Víctor, com estudos em veterinária, se ocupa dos cães e de sua preparação para o trabalho em questão.

Hoje em dia, de acordo com eles, os principais caçadores (não humanos) de trufas são os cães: são de fácil transporte e manutenção, têm alto rendimento de trabalho, boa capacidade de aprendizagem, um olfato excelente e, por fim, não são comedores naturais de trufas. Em 2009, depois de muitos anos de espera, a primeira trufa negra chilena foi encontrada por Víctor e seu cão, Harry, um Border Collie, um dos primeiros cães trufeiros no Chile e na América do Sul. De acordo com Víctor, ele e Harry aprenderam juntos a caçar trufas; foi uma aprendizagem conjunta, já que tudo era, à época, uma novidade. Em suas palavras, “a relação entre a trufa e a árvore é uma relação de simbiose, assim como deve ser a relação entre o humano e o cão trufeiro”. Se, por um lado, é preciso trabalhar com o ciclo biológico do fungo e respeitar sua sazonalidade, por outro, é preciso constituir um vínculo muito forte com seu cão caçador, já que, como me disse um truficultor, “o cão é fundamental e, sem ele, não encontraríamos trufa nenhuma”. Ademais, “o pleno funcionamento de qualquer trabalho que envolva humanos e animais depende, sempre, do esforço e da vontade coordenados de ambas as partes” (FANARO; LIMA; KOOSBY; VANDER VELDEN, 2021, p. 4).

Desde 2019, Víctor realiza cruzamentos entre cães das raças Terrier Chileno e Border Collie, e o resultado, em suas palavras, é o “cão trufeiro chileno” por excelência: tem a energia e a inteligência do Border Collie, e a personalidade e a tenacidade do Terrier Chileno. Na Agrobiotruf, os cães trufeiros são ensinados, desde o nascimento, a caçar trufas; aprendem a associar o aroma, a rastreá-lo e, por fim, a marcar sua localização com as patas. Em todas as etapas do aprendizado, os animais devem ser premiados com petiscos quando fazem corretamente o que lhes é demandado, de forma que sejam estimulados e motivados a continuar. Para eles, a aprendizagem precisa ser um jogo. Isso também foi notado em outros contextos de preparação e treinamento de cães caçadores (CORKRAN, 2015; CRUZADA, 2019).

Cada etapa do ensino é um longo processo. Após aprenderem a associar o aroma das trufas como algo que lhes deve interessar, os cães são ensinados a rastreá-lo e apontá-lo com o focinho, para, em seguida, aprenderem a marcá-lo com as patas. As três primeiras etapas — associação, rastreio e marcação — são realizadas com a ajuda de um señuelo, um tipo de isca, e de azeite trufado. Por último, quando os cães já sabem o que devem fazer — marcar a localização do aroma com as patas –, realizam um curto treinamento com trufas congeladas e, em seguida, são levados para marcar trufas frescas em trufeiras produtivas, já na temporada de caça, ou colheita, que, no Chile, vai da última semana de maio à primeira semana de setembro.

Entre cão e truficultor, o aprendizado também é mútuo. A convivência de anos com cães trufeiros fez de Víctor um exímio conhecedor desses animais. Como já mencionado, ele e Harry aprenderam juntos a caçar trufas; foram dez anos de companheirismo e cumplicidade. Com Snoopy, um Terrier Chileno que agora ocupa o lugar de Harry, falecido em 2019, já são seis anos compartilhando experiências. Por conta de seu vínculo com esses cães, seu olhar é um olhar treinado, experimentado — em outros termos, Víctor tem uma visão especializada, seletiva (GRASSENI, 2004, 2005). Não sem razão, um truficultor se impressionou com a forma com que Víctor percebia quando os cães marcavam uma trufa e ele, muitas vezes, não. Em suas palavras, “é preciso estar muito associado com seu cão, é preciso conhecê-lo muito bem”. Nesse sentido, caçar trufas exige um treinamento constante de atenção (GRASSENI, 2004, 2005) — ou, nos termos de Tim Ingold (2000), uma educação para a atenção — e seu aprendizado, portanto, é um processo social de coparticipação (GRASSENI, 2005).

De acordo com Víctor, os cães “se conectam” com o aroma das trufas. No fim das contas, esse trabalho depende da comunicação entre cães e trufas através de um cheiro — e, também, do desenvolvimento entre cães e humanos de “formas de se comunicar sobre as sinalizações químicas das trufas” (SHELDRAKE, 2021, p. 40). Em tais circunstâncias, em que é preciso, nas palavras de Víctor, “imaginar a rede de micorrizas que está abaixo do solo”, seria impossível saber a localização das trufas sem o auxílio canino. Como em outros contextos cinegéticos, o cão permite ao caçador, ou, neste caso, ao truficultor, “o acesso a um mundo para ele inacessível” (CRUZADA, 2019, p. 261, tradução nossa) e invisível.

Referências:

CORKRAN, C. “An extension of me”: handlers describe their experiences of working with bird dogs”. Society & Animals, Ann Arbor, v. 23, n. 3, p. 231–249, 2015.

CRUZADA, S. M. Encuentros de vida y muerte: antropología transespecie y mundos ampliados entre cazadores y animales en el suroeste extremeño. Sevilha, Andalucía, 2019. Tese de doutorado, Universidad de Sevilla.

FANARO, L. A.; LIMA, D. V.; KOOSBY, M. F.; VANDER VELDEN, F. Introdução ao dossiê Trabalho animal, trabalho humano. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, v. 6, n. 2, p. 2–12, 2021.

GRASSENI, C. Skilled vision. An apprenticeship in breeding aesthetics. Social Anthropology, v. 12, n. 1, p. 41–55, 2004.

GRASSENI, C. Disciplining vision in animal biotechnology. Anthropology in Action, v. 12, n. 2, p. 44–55, 2005.

INGOLD, T. The perception of the environment: essays in Livelihood, Dwelling and Skill. Londres: Routledge, 2000.

SHELDRAKE, M. 2021. A trama da vida: como os fungos constroem o mundo. São Paulo: Fósforo/Ubu Editora, 2021.

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