Pesca e Prosa

Fotocronografias
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7 min readSep 3, 2020

Alexsânder Nakaóka Elias [1]

Resumo: Este ensaio faz parte do acervo que produzi para a mostra coletiva “Ofício e Memória”, organizada pelo “Grupo de Pesquisa Memória e Fotografia” (GPMeF/Unicamp), entre os anos de 2012 e 2013. A exposição, promovida pelo importante festival Hércules Florence de Fotografia, teve o intuito de dar a ver ofícios tradicionais passados oralmente de geração para geração, isto é, que persistem no tempo apesar da contínua atualização dos processos produtivos, fruto do avanço das tecnologias capitalistas.

Palavras-chave: Ofício, memória, narrativas, peixeiro.

Fishing and Prose

Abstract: This essay is part of the collection that I produced for the collective exposition named “Profession and Memory”, organized by “Memory and Photography Research Group” (GPMeF/Unicamp), between the years 2012 and 2013. The exposure, which was promoted by the important festival Hércules Florence of Photography, had the intention to show traditional professions transmitted by orality from generation to generation, thus, that persist over the time despite the continuous updating of productive processes, the result of the advance of capitalist technologies.

Key words: Profession, memory, narratives, fish seller.

[1]Doutor em Antropologia Social(Unicamp, 2018) / Mestre em Fotografia e Cinema (Unicamp, 2013) — Pesquisador do LA’GRIMA/Unicamp; VISURB/Unifesp e LEPPAIS/UFPel
alexdefabri@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6746-0464
http://lattes.cnpq.br/9631991512840338

Eu aprendi o trabalho desde pequeno desse mesmo jeito, com meu pai, família, mas comecei a minha própria barraca de peixes com 28 anos. Aí eu conheci a minha esposa na feira e vim embora com ela. E tô até hoje! As coisas boas é que tudo é divertido! Na feira você vem todo dia e conhece um monte de gente! Agora, o ruim é acordar cedo e no frio, porque pegamos muito no gelo. Pra fazer compras eu acordo meia-noite e meia. Aí vou no Ceagesp, carrego e venho pra cá. Agora, o ruim mesmo é o trânsito! Eu moro em São Paulo e pra pegar a marginal eu fico, tem dias, duas, três horas. Mas dá pra descansar, sim! Eu durmo depois de uma novela das sete, umas cinco, seis horas por dia. Agora, no trabalho aqui em Campinas não tem confusão! A gente conversa muito, né? E todos são bacanas! Aí a gente indica pros fregueses, pra levar esse ou aquele peixe. O pessoal pergunta qual é o melhor pra fazer esse ou aquele prato… Eu vou falando mesmo não entendendo bem, eu vou falando, né? E receita tem que dar! E se não sabe, a gente inventa! (Mitsuhiro Fukushima, conhecido como “Seu Édson”, peixeiro em Campinas/SP, 2012).

O presente ensaio verbo-visual é composto por fotografias produzidas para a mostra coletiva itinerante denominada “Ofício e Memória”, organizada pelo “Grupo de Pesquisa Memória e Fotografia” (GPMeF/Unicamp) entre os anos de 2012 e 2013 e que contou com 11 expositores-fotógrafos de diferentes áreas das humanidades. A exposição, que ocorreu no Centro Cultural de Inclusão e Integração Social (CIS -Guanabara, vinculado à Unicamp) e no Parque das Águas de Campinas, integrando a programação do “VI festival Hércules Florence de Fotografia” (2012), teve o intuito de dar a ver ofícios tradicionais que foram e são transmitidos oralmente, de geração para geração. Isto significa dizer que tais profissões persistem no tempo apesar da atualização dos processos produtivos capitalistas, conservando traços do antigo, de forma ressignificada.

Por meio de fotos e de relatos orais coletados via pesquisa de campo, compus o ensaio “Pesca e Prosa” [2], que durante a exposição dialogava com as demais produções — fotógrafo lambe-lambe, maquinista, alfaiate, barbeiro, sapateiro, borracheiro, luthier, jardineiro, cesteiro e vidreiro — caracterizando um trabalho pensado e elaborado coletivamente. Nas minhas imagens, evidencio o ofício de peixeiro de Mitsuhiro Fukushima, mais conhecido nas feiras de Campinas (SP) como “Seu Édson”, um interlocutor que carrega as características dos “narradores” de Benjamin (1994), personagens que chamam a atenção por possuírem “traços grandes e simples” que os caracterizam e destacam. De fato, “Seu Édson” é um excelente contador de histórias, cuja capacidade performática foi adquirida a partir da “experiência” (Ingold, 2013; Kofes e Manica, 2015; Turner, 2008), forma de conhecimento que passa de pessoa para pessoa e que seria, para Benjamin (1994, p. 198), a fonte a que recorrem todos os narradores.

Assim, procurei construir o ensaio visual de forma relacionada com as narrativas de “Seu Édson”, dando ênfase ao seu ofício aprendido “desde pequeno desse mesmo jeito”. O intuito com as imagens, portanto, é o de mostrar um trabalho artesanal a partir de um olhar cuidadoso, focado nos detalhes dos processos de limpeza, pesagem, cortes e escolha dos peixes e frutos do mar que serão comercializados. Além disso, é necessário dizer que também produzi fotografias com o “Seu Édson” indicando aos fregueses “pra levar esse ou aquele peixe” e dando ou inventando receitas “mesmo não entendendo bem”. Porém, optei por não utilizá-las no presente ensaio por motivos éticos, visto que não possuo os direitos de imagem dos clientes; e estéticos, já que o intuito da exposição para a qual o material foi produzido era centrado no aspecto manual de ofícios antigos que resistem atualmente.

Dessa forma, ao pensar a Antropologia e o trabalho etnográfico como um movimento de estudar e aprender “com”, a partir da relação entre as experiências de vida do (a) pesquisador (a) e dos seus interlocutores (as), parece viável traçar, ainda, uma reflexão paralela sobre o trabalho de fotógrafo por mim realizado e o ofício de peixeiro do “Seu Édson”. Isto porque a fotografia, coinventada nas décadas de 20 e 30 do século XIX na Europa e no Brasil (Kossoy, 2006[3]), mudou o paradigma artístico na medida em que as tecnologias — inicialmente as máquinas portáteis, depois a crescente facilidade de impressão de cópias das imagens e, para coroar, o advento das inovações digitais — nos fizeram avançar para uma “era da reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 2012, Flusser, 2009) que levanta questionamentos sobre o conceito de “aura” e de “autoria” artística. Neste sentido, os ofícios de peixeiro e de fotógrafo (a) profissional parecem se adaptar às mudanças dos modos de produção e ainda resistem na contemporaneidade mantendo, um mais e o outro menos, suas características primordiais.

[2] Contudo, na exposição coletiva apresentei um trabalho reduzido, composto por oito fotografias.

[3] A fotografia foi coinventada por Hercule Florence na Vila de São Carlos, atual cidade de Campinas (SP), conforme comprovado por Boris Kossoy (2006).

Referências:

KOSSOY, Boris. Hercule Florence: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: EdUSP, 2006.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.

________________. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197–221.

INGOLD, Tim. Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture. Londres: Routledge, 2013.

KOFES, Suely; MANICA, Daniela. (orgs.). Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. Rio de Janeiro: Eduf, 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2009.

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