Pichação/graffiti em Santa Maria: imagens, piscadelas e coisas que os olhos não podem ver

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6 min readJun 7, 2018

Rodrigo Nathan Romanus Dantas[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: Este ensaio apresenta imagens de itinerários de campo da etnografia que desenvolvi no mestrado, na qual busquei compreender a construção da inteligibilidade dos acontecimentos acerca da pichação/graffiti em Santa Maria. Essas narrativas visuais sugerem inversões, recombinações e transbordamentos semânticos das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/errado, luz/sombra, belo/feio…) que tendem a dar o tom do debate público sobre o tema. Formas heterodoxas de classificação.

Palavras-chave: Pichação/graffiti. Categorias binárias. Transbordamentos semânticos. Imagens.

Pichação/graffiti in Santa Maria: images, winks and things eyes can not see

Abstract: This essay presents images of itineraries of the ethnographic research that I developed in the master’s degree, in which I tried to understand the construction of the intelligibility of the events about pichação/graffiti in Santa Maria. These visual narratives suggest inversions, recombination, and semantic overflows of binary categories (legal / illegal, clean / dirty, right / wrong, light / shadow, beautiful / ugly …) that tend to set the tone of public debate on the subject. Heterodox forms of classification.

Keywords: Pichação/graffiti. Binary Categories. Semantic overflows. Images.

[1] Professor e historiador, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. Lattes:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4319731A0

Uma das primeiras questões que aparecem nos debates sobre pichação/graffiti: “Qual é a diferença entre pichação e graffiti?”. Costumo dizer que, do ponto de vista da lei, pichação é a pintura feita sem a autorização do proprietário ou gestor do imóvel, algo ilegal, e o graffiti é a prática autorizada, legal. Do ponto de vista dos indivíduos que riscam e colorem as paredes da cidade, entretanto, a fronteira entre as duas classificações é bastante porosa, ou seja, os praticantes transitam entre elas. Em geral, os grafiteiros, os que pintam de forma autorizada, são ou já foram pichadores em algum momento de suas trajetórias. Há também uma questão de status e reconhecimento. Em um contexto x, um indivíduo pode se identificar como grafiteiro ou artista, em uma situação y, o mesmo sujeito pode preferir se identificar como pichador, vandal, como dizem. Por isso, uso os termos unidos e, ao mesmo tempo, separados pelo sinal gráfico de uma barra: pichação/graffiti e pichadores/grafiteiros. Além do mais, no vocabulário dos pichadores/grafiteiros de Santa Maria, há termos híbridos: artista criminoso, vandal art, grapixo… Em linhas gerais, para o Estado o que está em jogo na classificação é a questão do direito à propriedade; para os pichadores/grafiteiros, são as questões estéticas e de reconhecimento. Este ensaio traz algumas imagens dos caminhos que percorri pela cidade para chegar a essas formas heterodoxas, não binárias, de classificação da prática de riscar e pintar as superfícies urbanas. Ensaia-se, aqui, uma leitura pós-estruturalista do estruturalismo (Viveiros de Castro 2008), um olhar atento às ondulações e fraturas do ato universal de classificar. A narrativa começa em uma loja de street art, propriedade de um dos principais pichadores/grafiteiros de Santa Maria, desdobrando-se pelas ruas.

Imagem 1_______________________________________________________________ Imagem 2
Imagem 3_______________________________________________________________ Imagem 4

Nas imagens 1 e 2, vemos que, por parte da loja, enquanto estabelecimento comercial, há a necessidade de construir sua visibilidade (RANCIÈRE 2005) a partir da classificação estatal, ou seja, a que distingue pichação (ilegal, não autorizada, crime) e graffiti (legal, autorizado, arte); mais especificamente, mostrar-se como um lugar que trabalha com street art (arte de rua). No entanto, essa iniciativa de adequação à norma é endereçada principalmente aos burocratas da fiscalização municipal e aos visitantes “de primeira viagem”, pois, para quem está mais atento e familiarizado com os termos e gírias próprios dos pichadores/grafiteiros, os transbordamentos em relação à dicotomia saltam aos olhos em qualquer mirada. Na imagem 3, por exemplo, temos um quadro, também pendurado na parede da loja, onde há um desenho e a frase “Viva o grapixo art”, um termo híbrido. No detalhe de uma das camisetas (a azul claro) comercializadas pela loja, na imagem 4, há a estampa que diz: “Rabiskx Graffiti Bombardeio Pixo”. Rabisco, bomb e pixo são termos que remetem à prática ilegal. Nesse sentido, como bem assinalou Clifford Geertz (1978), é importante saber distinguir uma “piscadela” de um “tique nervoso”. Os avisos colados nas paredes da loja (imagens 1 e 2), que tratam pichação e graffiti como pares opostos, encenam uma espécie de “piscadela” entre os pichadores/grafiteiros, pois estes sabem muito bem que as coisas são mais complexas.

Essa distinção e, ao mesmo tempo, esse trânsito entre as classificações pichação (crime, ilegal…) e graffiti (arte, legal…), em um jogo de visibilidade/invisibilidade, assim como a variedade e mistura de termos (grapixo art, rabisco, bombardeio, pixo…) inscritos em tais artefatos (nos avisos, anúncios, quadros, camisetas…) espalhados pelo interior da loja, também se reproduzem nos muros e paredes da cidade, bem como nas falas dos pichadores/grafiteiros.

Imagem 5___________________________________Imagem 6__________________________________ Imagem 7

Nas imagens 5, 6 e 7, há inversões. 5 e 6 são pinturas feitas de forma autorizada, legal (graffiti, do ponto de vista da lei), no muro de escolas. Na imagem 5, lê-se, entretanto, o detalhe “So + pixo”, que pode ser traduzido para “sou mais pixo”, quiçá, “prefiro o pixo”. De mesma forma, na imagem 6, vemos um personagem que diz “I love vandal”, ou seja “eu amo vandal”, sendo que vandal, no vocabulário dos pichadores/grafiteiros, é um termo que faz referência à prática ilegal. Já na imagem 7, a inversão se dá no sentido contrário, um stencil (molde vazado) que diz “somos todos grafiteiros” (segundo a definição estatal, aqueles que pintam de forma autorizada), feito de forma não autorizada, ilegal (pichação, do ponto do Estado), na parede de um salão paroquial.

Imagem 8_______________________________________________________________ Imagem 9

Nas imagens 8 e 9, podemos ver que, da parte dos pichadores/grafiteiros, não há uma renúncia total às classificações depreciativas e rotulações que frequentemente lhes são atribuídas. A partir delas são redefinidos os sentidos de se ser praticante da pichação/graffiti e os elementos de distinção social. Na imagem 8, uma pichação, na lateral de um edifício, assinada por um pichador que se coloca como “ladrão de paredes”. Na 9, um que assinou em um muro “poluição visual”.

Essas imagens são uma pequena amostra de como se dão os transbordamentos, as inversões e as recombinações das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/errado, belo/feio, visível/invisível…) do ato universal de classificar. Não se trata simplesmente de pichação (ilegal, sujo, feio, errado, crime…) versus graffiti (legal, limpo, bonito, arte…), mas também de grapixo art, pixo, vandal, arte de rua, roubo de paredes, poluição visual…. Mais do que um ato de significação do mundo, trata-se de uma significação com o mundo, trânsito entre ordenação e desordenação.

Imagem 10

Referências:

GEERTZ, Clifford. 1978. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar.

RANCIÈRE, Jacques. 2005. A Partilha do Sensível. São Paulo: EXO experimental.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo. Conferência ao Colóquio Lévi-Strauss: un siglo de reflexión, Museo Nacional de Antropología, México, 19 de novembro de 2008.

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