Pixo-narrativas e estética da fachada

Fotocronografias
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5 min readJun 7, 2018

Adauany Zimovski[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: O presente ensaio fotográfico foi realizado num percurso pelas ruas centrais de Jacareí, município localizado a 90km da cidade de São Paulo. A constatação da presença massiva da pixação nas superfícies urbanas pode revelar-se como a possibilidade de uma outra leitura desse importante fenômeno urbano.

Palavras-chave: pixação, Jacareí-SP, discurso, estética da fachada

Abstract: This photographic essay was carried out along the central streets of Jacareí, a municipality located 90km from the city of São Paulo. The observation of the massive presence of the pixação in the urban surfaces reveals the possibility of another reading of this important urban phenomenon.

Keywords: pixação, Jacareí-SP, discourse, aesthetics of the façade

[1] Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
(Mestra em História, Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAV-UFRGS).
http://lattes.cnpq.br/4237105909618056

A s formas e condutas codificadas da pixação são muitas vezes indicadas como uma das causas da sua repulsa pela sociedade, pois é algo que não conseguimos ler, ou seja, um código que não dominamos, não partilhamos dos significados dessas inscrições. A partir desta perspectiva, somos não-alfabetizados. Por essa razão, muitas pesquisas em diferentes campos (antropologia, sociologia, psicanálise, artes visuais, entre outros) oferecem elementos que possibilitam uma aproximação à essa alteridade. A pixação, como toda escrita manuscrita, é o testemunho de uma narrativa singular de quem a escreve, ou seja, é a escritura de uma subjetividade coletiva fundamentalmente urbana. Dessa forma o discurso ganha vigor ao evidenciar o local da fala, enaltecendo suas formas próprias e até mesmo uma grafia própria (pixação com “x”)[2], operando pequenas mudanças linguísticas conforme os usos práticos e cotidianos da língua, uma espécie de escrita vernacular.

Segundo Michel Foucault, em todas as sociedades a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2003, p. 9). O imaginário da pixação estabelece um contraponto aos discursos hegemônicos sobre a marginalidade, que devido a sua amplitude e legitimação são considerados “oficiais”.

A psicanalista Ludmilla Zago constrói um interessante paralelo ao associar essa atividade tão extrema ao conceito de parresia[3], citando Foucault que, por sua vez, retoma o termo da Grécia antiga. Para ele, “a parresia deve ser procurada do lado do efeito que seu próprio dizer-a-verdade pode produzir no locutor” (FOUCAULT, 2010, p. 56). Assim, o discurso da pixação envolveria inevitavelmente um risco ao seu enunciador para além do risco que ele próprio se impõe (o risco de ser preso, de cair). Logo, para Zago, a dificuldade de assimilação do pixo na convivência da cidade se dá pela sua honestidade inconveniente, uma “coragem [de dizer a verdade] que não pretende convencer nem ensinar”.[4]

Marcia Tiburi elabora a ideia de uma estética da fachada, conceito que permeia seu pensamento em torno da pixação e diz respeito a um jogo de aparências que alterna opacidade e visualidade no contexto da construção de uma visão de mundo — e simultaneamente de um mundo visual:

Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O direito ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais séria do que a sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. [A pixação] é efeito do mutismo nascido no cerne da democracia e por ela negado ao fingir a inexistência de combates intestinos e velados. A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade. (TIBURI, 2010)

A estética da fachada explica como a porção superficial da propriedade privada carrega em si a eloquência e a lógica do poder simbólico. É nesse “lugar”, ou seja, o lugar transformado em conceito, que se desenvolve a ideia de que o cinza ou o branco sejam neutros. No entanto, a “neutralidade” é um dado em si que produz à sua maneira um discurso sobre o qual a pixação exerce uma espécie de horror vacui, o temor ao espaço “em branco”. É também uma forma de ruinenlust, conceito usado para explicar uma relação de prazer diante de ruínas. A ruína é a urbanidade selvagem, cuja deterioração é seu apelo erótico. Ao leitor da pixação fica implícito o convite a ver além dessa escrita-código, a resgatar, através de suas frestas, uma reflexão sobre o perecível e a obsessão pela manutenção contidas na estética da fachada.

[2] Escrita com “x”, pixação designa um tipo de intervenção nativa de São Paulo. Esta grafia é utilizada por seus praticantes, cuja principal característica é o alfabeto codificado e estilizado. A forma dicionarizada, escrita com “ch” se refere ao ato de escrever ou rabiscar dizeres de qualquer espécie e apresenta geralmente a literalidade ou legibilidade.

[3] Segundo Foucault, parresia é frequentemente traduzida por ‘fala franca’, ‘liberdade de palavra’, sendo que um dos significados originais da palavra é ‘dizer tudo’ (FOUCAULT, 2010, p. 42).

[4] Seminário “Juventude e Pixação — Marcar/Ser marcado”, realizado pelo Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, em julho de 2013. Disponível em: https://www.mixcloud.com/paraleila/pixo-al%C3%A9m-do-bem-e-do-mal-por-ludmilla-zago/. Acesso em: 07 nov. 2017.

Referências:

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

__________. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982–1983). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

TIBURI, Marcia. Pensamento PiXação. In: Revista Cult, nº 135, 2010. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/pensamento-pixacao/. Acesso em: 13 nov. 2017.

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