Quando a galeria é a cidade

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6 min readJun 6, 2018

Ronaldo de Oliveira Corrêa[1]

Edição n° 4 — Arte urbana

Resumo: O texto problematiza a cidade como suporte e mediação para um tipo de experiência urbana cada vez mais comum, a intervenção de agentes das visualidades contemporâneas. Recorro à coleção do projeto da série_na rua_em Curitiba. Esse projeto é uma coleção de imagens produzidas na etnografia da e na cidade de Curitiba- PR. Proponho refletir a respeito dessas plásticas para problematizar como essas intervenções transpõem não somente uma relação estética, mas também, uma revisão de práticas de arte.

Palavras-chave: etnografia de rua, colagens, arte urbana.

When the gallery is the city

Abstract: The text problematizes the city as support and mediation for a kind of urban experience that is becoming increasingly widespread — the intervention of agents of contemporary visualities. I turn to the collection of the project da série_na rua_em Curitiba (in_the_street_in Curitiba series). This project is a collection of images produced in the ethnography of and in the city of Curitiba-PR. I propose to reflect on these plastics to problematize how these interventions transpose not only an aesthetic relation but also a revision of art practices.

Keywords: street ethnography, collage, urban art.

[1] Universidade Federal do Paraná, Setor de Artes, Comunicação e Design, Departamento de Design.
http://lattes.cnpq.br/3869130149433615

INTRODUÇÃO

Esse texto apresenta a cidade como suporte e mediação comunicacional para um tipo de experiência urbana cada vez mais comum, a saber, o uso das superfícies da cidade como galeria para a intervenção de agentes que chamo de especialistas das visualidades contemporâneas. Recorro a uma coleção do projeto da série_na rua_em Curitiba. Esse projeto é uma coleção de imagens digitais produzidas na etnografia da e na cidade de Curitiba-PR, realizada desde 2008. A coleção é organizada nas categorias: colagens, inscrições e pinturas, estêncil e instalações.

Tomo a categoria das colagens como objeto de estudo. Esse gênero permite discutir não somente aspectos plásticos de sua materialidade, mas, e sobretudo, os conteúdos temáticos. Esses conteúdos, instância comunicativa entre o agente e a sociedade, provoca o interlocutor a responder aos questionamentos de forma reflexiva, ou mesmo ativa (interferindo, rasgando, sobrepondo, etc.).

Esclareço que trabalho a partir de registros e não diretamente com os objetos plásticos; por consequência disso, a colagem é mediada pela imagem e pelas intencionalidades do fotógrafo, sendo os recortes parte da materialidade da intervenção. Problematizo como essas intervenções que encontramos diariamente transpõem não somente uma experiência estética de construção e intervenção da paisagem urbana, mas também, e principalmente, uma revisão de conceitos e práticas no tempo presente.

A GALERIA-MURO. NO MURO A MATERIALIDADE DAS VOZES SOCIAIS

O percurso não foi traçado, optei por vagar pelas ruas de Curitiba. Minha disposição era a de fazer nada, deixar-me atravessar pelos prédios e casas, pelos ritmos de abertura das lojas e comércios de rua e pela experiência de estar na cidade. O caderno de notas foi atualizado no telefone celular e sua multifuncionalidade (câmera, mapa, arquivo). A única decisão tomada foi olhar para o pequeno, o ínfimo; aquelas marcas que se mimetizam ou conflitam com a publicidade, colonizam os muros, as portas, o mobiliário urbano (diário de campo, out., 2016).

Foi em 2017 que li o “Tentativa de esgotamento de um local parisiense” do Georges Perec. Esse autor francês esteve presente nas minhas leituras, seja para a fuga literária, seja para o enfrentamento da escrita sobre o cotidiano. O “Tentativa de esgotamento…” possibilitou-me a reflexão sobre o registro e anotação de rastros deixados por um tipo especial de ator social que denomino especialista na (re)construção da paisagem urbana; a saber, artistas, designers, militantes, poetas de rua, entre outros, que ocupam a cidade como suporte e mediação para marcar sua presença e voz.

Perec nos convida à experiência de estar na cidade. Um convite radical de ultrapassar a objetividade da vida espetacular da cidade e atentar para os acontecimentos insignificantes da vida cotidiana. Ele nos provoca a enxergar a cidade como um ato consciente (SILVA, 2016). E, assim, buscar o sentido e a presença do tempo na cidade contemporânea. Acredito que o tempo de Perec seja similar às rítmicas da vida urbana (ROCHA e ECKERT, 2013).

“Esboço de inventário de algumas coisas estritamente visíveis” (PEREC, 2016:14). Dessa forma inicia o dia 1, narrado por Perec na sua tentativa de esgotar a Praça Saint-Sulpice, em Paris. Tomo esse início para o inventário imagético de coisas que encontro no meu caminho: uma parede verde contém uma mulher sentada a olhar para nós na calçada. Uma porta fechada de onde um homem velho caminha no ar. Uma caixa de fios onde um religioso, em vestes ornamentadas, carrega sua própria cabeça. Em uma parede, bem pequeno, o encontro de um homem caracol e uma mulher alface. Em um orelhão, uma mão florida sustenta palavras de ordem. Em outro muro, uma manifestação de solidariedade feminista. Uma moça vira as costas para a calçada. Em uma caixa, um desejo frustrado: “quero morar em Curitiba”. Nessa mesma caixa, uma assertiva: “Lute como uma garota”. Perto da padaria, uma análise sociológica da política nacional. Na escadaria da galeria do TUC, corpos desnudos interpelam nosso moralismo. Ao lado desse desnudamento, palavras de ordem e amor. Numa parada de ônibus, um telefone nos comunica “o problema são os outros”, mas “a solução são os outros”. Num poste de iluminação, uma sobreposição nos pergunta “quem é o inquilino que mora em mim?” e, sobre essa, uma moça torna visível as resistências às prescrições para os corpos. Como uma crítica poética, um leve dançarino salta a catraca que poderia ser do ônibus, do cinema ou da vida.

TENTATIVA DE FALAR SOBRE O QUE NÃO TEM IMPORTÂNCIA

“Há muitas coisas na praça Saint-Sulpice (…) Grande número, se não a maior parte, dessas coisas já foram descritas, inventariadas, fotografadas, expostas ou arroladas. Meu propósito (…) foi mais o de descrever o restante: aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância (…)” (PEREC, 2016: 11)

Movido por esse propósito apresentei nesse texto a superfície da cidade como um suporte e mediação para as vozes sociais que constituem a experiência urbana. A cidade, constructo histórico e humano, é atravessada por matérias que se acumulam em seus muros e que a fazem ter múltiplos significados e agentes. Por vezes, naquilo que não se pretende importante, interpelações são realizadas e respondidas. “Algumas letras do alfabeto”, “alguns símbolos convencionais” e “algumas cifras” configuram algumas aberturas passageiras para a vida urbana. Basta olhar (com o barulho de tráfego por trás) para esgotar o lugar e, assim, reconstruir ou contranarrar as figurações da vida social.

Referências:

ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. 2013. (orgs). Etnografia de Rua. Estudos de Antropologia Urbana. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

SILVA, R. L. 2016. “Prefácio: Experiência do inútil, enfim”. In: PEREC, G. Tentativa de esgotamento de um local em Paris. São Paulo: Gustavo Gili. pp. 7–10.

PEREC, G. 2016. Tentativa de esgotamento de um local em Paris. São Paulo: Gustavo Gili.

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