Vol. 03 num.06–2018 Tempos de crise e a (in)vulnerabilidade do viver cotidiano em contextos urbanos

Fotocronografias
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5 min readDec 22, 2018

Organização e Apresentação
Cornelia Eckert
Felipe Rodrigues
Nicole Rigon

A expansão vertiginosa dos cenários urbanos e a crescente diversificação populacional nos espaços públicos produzem desigualdades e vulnerabilidade frente à imprevisibilidade das mudanças sociais, políticas e econômicas que caracterizam esses contextos. Diante da instabilidade, o medo e a insegurança emergem como reações a essa condição, produzindo novos agenciamentos e transformando as formas de sociabilidade nos espaços das cidades.

As regiões centrais de cidades e as áreas de desindustrialização são povoadas por acontecimentos, por equipamentos e por rastros de degradações patrimoniais que marcam processos cíclicos de mudanças socioeconômicas. O meio urbano, segundo o sociólogo Ezra Park, acentua os efeitos das crises (1979, p. 50) e as mudanças socioeconômicas podem estar marcadas por feições da crise em alguns contextos históricos.

Considerando a relação entre imagens e cidades como principal interesse do corpo editorial, reunimos nesta edição cinco estudos etnográficos que abordam aspectos da crise urbana em distintos contextos sociais e históricos. Chamamos atenção para as múltiplas feições da crise e as vulnerabilidades do viver urbano sob distintas perspectivas, seja pela perspectiva das marés, dos trilhos de trem ou das intervenções e transformações urbanas. O rastro que perpassa cada uma das perspectivas é o da construção de resiliência e/ou resistência frente a iminente transformação associada à crise.

O primeiro ensaio permite deslocarmo-nos pelas ruas de bairros de camadas médias e no Centro Histórico da cidade de Porto Alegre observando os efeitos da cultura do medo na tessitura urbana ornamentada com inúmeros aparatos de segurança. Em seu ensaio Cornelia Eckert e Felipe Rodrigues registram as paisagens de uma cidade onde se mesclam arames farpados, câmeras de segurança, cercas elétricas, guaritas e muros, evocando as formas agonísticas do viver urbano. Suas imagens nos convidam a imaginar as formas de resiliência e as práticas de reinvenção da vida cotidiana no contexto das grandes cidades brasileiras.

Marina Bordin e Nicole Rigon mostram em seu ensaio a rápida ascensão dos protestos silenciosos através de intervenções artísticas nos muros da cidade no contexto das eleições presidenciais brasileiras em 2018. Nesse contexto, a criação de coletivos políticos e o surgimento do movimento #elenão protagonizado por mulheres confrontavam os discursos de ódio produzidos contra as minorias e fortaleceram os movimentos sociais. As intervenções nos muros marcaram significativamente a cidade em protestos contra a ascensão de ideologias totalitárias. Rompendo com as fake news no mundo virtual, a resistência comunica sua existência nos muros da cidade.

Na temática das intervenções urbanas Fabrício Barreto e Leonardo Palhano Cabreira questionam em seu ensaio o estigma atribuído à prática do graffiti como agenda da degradação nas cidades. Comparando relatos acerca de uma cidade portuguesa e sua experiência em Porto Alegre/RS, os autores enfatizam as propriedades expressivas e artísticas em detrimento de uma visão que encerra o graffiti como prática criminalizável.

No âmbito da crise no mundo do trabalho e nos transportes, a decadência do sistema ferroviário foi um marco nas transformações socioeconômicas. A crise desse sistema teve implicações no cotidiano dos habitantes cujos modos de vida e relações de trabalho estavam associados à existência da rede ferroviária. No contexto brasileiro, acompanhamos os efeitos da ruptura do modelo ferroviário brasileiro na memória dos trabalhadores das ferrovias e suas famílias na cidade de Pelotas através do ensaio de Guillermo Goméz. O “baque” e o “horror” ocasionados pela ruptura drástica de um modo de vida organizado pelo trabalho nas ferrovias criam imagens de esvaziamento e ruínas de uma ferrovia em decomposição. A crise do tempo é vivenciada pelos habitantes que vivem perto dos equipamentos da antiga ferrovia ao acompanhar a natureza tomar conta dos trilhos anunciando o fim da linha.

Ainda nos trilhos do sistema ferroviário Ana Silva, Luciano Barandiarán e seus orientandos estudam os efeitos desta crise no contexto argentino. Ao final do século XX a falência de uma empresa estatal levou à decadência da rede ferroviária local, impactando os trabalhadores e a população que vivia no entorno das estações. O ensaio mostra a decadência e a crise do sistema mas também a ressignificação das estruturas abandonadas. A ressignificação das ruínas e a ocupação dos espaços abandonados das ferrovias cujos trilhos não levam a lado algum, mas unem-se na criação de memórias, trazem à cena a “memória dos ferros” registrada pelos autores neste ensaio.

A resistência ganha formas sobre a água no ensaio de Lorena Volpini, que retrata em imagens a maior favela da America Latina em palafitas. O avanço sobre as águas reinventa as formas de habitar e faz emergir a “luta das palafitas”, movimento de defesa contra as remoções. As manifestações artísticas na cidade declaram sua adesão a luta ao retratar as palafitas em murais de graffitti. O estudo sobre a construção de casas sobre a maré, das memórias e da cidadania sobre as águas em Alagados, na Enseada dos Tainheiros foram a inspiração de Lorena Volpini para a elaboração deste ensaio.

O ensaio de Cícero de Oliveira Pedrosa Neto e Flávio Leonel Abreu da Silveira contextualiza a catástrofe ambiental no município de Barbarena, região metropolitana de Belém, em decorrência do vazamento de rejeitos de minérios nos mananciais hídricos do município. O caso teve severas consequências à diversas vilas da cidade, entre elas territórios quilombolas e indígenas, e também às populações ribeirinhas. As imagens narram feições da crise ambiental a partir da catástrofe e seus desdobramentos, envolvendo diversos atores políticos e sociais.

Matheus Cervo registra em seu ensaio a luta e a resistência dos habitantes de bairros na zona sul de Porto Alegre em defesa da preservação ambiental e contra o loteamento da região. Através de narrativas autobiográficas dos habitantes da região e da participação em um movimento comunitário de preservação ambiental, o autor constrói uma narrativa sobre a luta e o engajamento na defesa ambiental do antigo balneário.

As formas de resistência no contexto da zona sul porto alegrense adquirem novas formas no ensaio de Carmem Lúcia Thomas Guardiola e Roberta Deroma. Em um território em disputa no bairro Belém Novo as autoras abordam o movimento de retomada das terras na Ponta do Arado pelos indígenas Mbya Guarani. Além da luta pelo direito à terra, a retomada carrega em si significados simbólicos potentes de preservação dos valores ligados às cosmologias indígenas.

Agradecemos pelas nobres contribuições dos(as) autores(as) que participaram desta edição enriquecendo o conteúdo visual e reflexivo para pensarmos as formas e os devires da crise na atualidade em contextos urbanos. Desejamos a todos(as) uma boa leitura!

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O portal fotocronografias objetiva divulgar ensaios fotográficos que resultem de pesquisas etnográficas e de estudos antropológicos.