Vol. 05 num.10–2019 — Errâncias, derivas e etnografia de rua: as imagens insurgentes de um caminhar pela cidade

Fotocronografias
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Published in
7 min readJan 3, 2020

Organização e Apresentação
Camila Braz da Silva
Fabrício Barreto

Caminhar diz respeito a humanidade desde os tempos mais remotos. Faz parte do ser humano o deslocar-se, sobretudo, por meio da caminhada. Caminhar é produzir lugares (Careri, 2013), uma ação que se constitui como ato perceptivo e criativo. De Certeau (1998) nos apresenta sua função enunciativa: caminhar ao mesmo tempo é leitura e escrita do território.

Para Paola Jacques (2012) a experiência errática afirma-se como uma possibilidade de resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento da experiência urbana a partir da modernidade. Na etnografia de rua, como preconizado pelas antropólogas Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha (2013), o desafio é “experienciar” a ambiência da cidade, e o exercício da caminhada pode incluir a “câmera na mão”, se conformando não só como momento de reconhecimento do antropólogo em sua pesquisa, mas também como intervenção/interação com a investigação.

Entendendo o viés interdisciplinar da abordagem, esta edição de Fotocronografias abriu espaço para uma reflexão sobre um escopo categórico que envolve a caminhada como procedimento de pesquisa. Em meio a derivas, errâncias, deambulações e nomadismos, reunimos trabalhos que se aderem a técnica da etnografia de rua, onde a câmera fotográfica é ferramenta de investigação. Assim, nos propomos a incentivar um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, evocando uma comunidade de intérpretes da cidade moderna, narradores urbanos provocados pelos deslocamentos não só de seus corpos, mas também, das alteridades citadinas.

Caminhar na cidade é perceber seus cheiros, suas sonoridades, seu clima, suas imagens, suas temporalidades. O caminhante constrói sua percepção a partir do deslocamento, no movimento. Dentre as classificações associadas a caminhada, destacamos a errância, que pressupõe o perder-se na cidade. Esta é a proposta que apresenta Fabricio Barreto — ao narrar uma experiência errática em uma cidade que lhe é familiar — Pelotas, Rio Grande do Sul. Uma experiência que se intensifica à noite, aguçando os sentidos e a atenção. Perder-se na urbe é romper com as regras do jogo, ignorar direções predispostas à orientação de caminhos pré-estabelecidos. Quando as regras são outras, a cidade é outra.

Na mesma direção, entre perder-se e localizar-se, Letícia Lampert interage com as cidades em escalas globais. A partir de colagens, a artista visual sobrepõe camadas e constrói paisagens possíveis de situar múltiplos lugares. Sua experiência, enquanto caminhante, conduz a derivas visuais por São Paulo, Xangai, Nova York, Paris, Montevidéu e Porto Alegre. As imagens nos provocam a procurar fragmentos do lugar conhecido e do desconhecido, que se misturam e se compõem.

Ana Claudia França nos projeta para a efervescência cultural de Barcelona. A capital da Catalunha, uma cidade cosmopolita com suas ruas recheadas de turistas, transborda arte urbana. A autora traça o olhar sobre a intervenção artística “Me Lata”, em sua narrativa sensível e afetiva nos convida a uma errância pelas ruas dos bairros Born, Raval, Barceloneta e Gótico. De Barcelona, nos deslocamos para Madri. Lá, Flávio Henrique Silva e Sousa nos apresenta às sonoridades da música callejera madrilenha a partir de registros fotográficos do festival La Calle Suena en Primavera. Flávio sugere uma deriva, um deixar-se levar, através do belo, sutil, íntimo e emocional, em momentos de intercâmbio, sociabilidade e arte de rua.

Thais Schuler, na condição de tour leader, conduziu turistas pelas ruas do Cairo por diversas vezes. O turismo contemporâneo, que tem sua origem mais remota no nomadismo humano, exige agilidade e precisão em seus deslocamentos. Ainda que sua atividade lhe imponha um certo imaginário turístico, Thais rompe com as imagens produzidas dentro dessa perspectiva e atenta o olhar para o Cairo além do cartão postal, registrando outras dinâmicas do cotidiano da cidade. O cotidiano também é a abordagem de Ricardo Luis Silva. Seus registros estão voltados para o ordinário, o banal de nosso dia a dia. Faz disso coleções do que não se percebe, do que não tem sentido perceber. O pitoresco pressupõe um caminhante. No seu ensaio, a cidade se revela em uma coleção de coisas amarelas.

Desvelar (ou revelar) a cidade é também explicitar dissensos e conflitos entre interesses divergentes. Eloisa Lemos nos traz o bairro Jaraguá, em Maceió/AL, uma região muito antiga tombada pelo patrimônio histórico do Estado. Em contradição a seu tombamento, abre-se margem para o abandono e a deterioração das construções urbanas. Suas fotografias apresentam intervenções artísticas que passam a ressignificar esta região. Algo semelhante é exposto no ensaio de Clodomir Cordeiro de Matos e João Pedro Santiago. O trabalho explicita a tensão entre o crime organizado e a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará, na qual há uma tentativa de pacificação do espaço público através de apagamentos simbólicos das expressões de conflitos locais manifestados nos muros da periferia da capital cearense, Fortaleza.

A tensão entre poder público e sociedade civil é a abordagem de Lucas Sargentelli. O autor retrata a traumática remoção da Vila Autódromo, localizada no Rio de Janeiro, ao nos apresentar Denise. O pesquisador e a antiga moradora da vila caminham juntos pelos percursos que ela realiza diariamente e nos propõe pensar esses espaços da cidade que são tomados da população e esvaziados de sentido. O trabalho de Isabella Maricatto, Emanuela Di Felice e Matheus Gomes Barbosa também evoca tensões do ambiente citadino. Na proposta metodológica destes urbanistas, a caminhada enquanto prática estética, conduz as pesquisadoras e os pesquisadores a zonas periféricas da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Com isso, expõem espaços limiares de terras indecisas, ambíguas, instáveis e híbridas. Áreas de conflito onde é possível registrar a fugacidade do devir da cidade, as resistências locais a essas transformações infraestruturais da cidade e o lugar da memória nesse processo.

A etnografia de rua é a base fundante dos trabalhos que seguem. É também ferramenta imprescindível de uma linha de pesquisadoras e pesquisadores, que providos da “câmera na mão”, lançam-se em caminhadas (sistematizadas ou não) pela urbe. Assim como no ensaio apresentado por Joanna Sevaio, no qual narra o cotidiano diurno e noturno da Cidade Baixa, um bairro boêmio de Porto Alegre/RS, investindo na cidade sob o viés de seus movimentos, fazendo deslocamentos por entre os lugares do bairro, atenta aos modos compartilhados de estar e viver neste lugar.

Jeferson Carvalho da Silva, relata os encontros vividos na cidade de Viçosa, Minas Gerais, em um processo de mapeamento e registro do inesperado, o pesquisador direciona seu olhar para os movimentos cotidianos das ruas e as formas de apropriação dos espaços urbanos pelos citadinos. As autoras Débora Wobeto e Karen Ambrozi Kaercher nos apresentam um exercício fotográfico resultante de caminhada etnográfica pelo centro da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A provocação está na contradição da pulsão intensa dos centros urbanos sob um olhar mais lento, proposto pelas pesquisadoras. Os retratos produzidos pelas autoras reúnem fragmentos das ruas, da arquitetura e das pessoas na cidade. Arlindo da Silva Cardoso e Fernanda Rechemberg nos apresentam uma experiência etnográfica por meio de fotografias realizadas na procissão de Santo Antônio de Pádua, padroeiro do bairro Bebedouro, Maceió, Alagoas. A cada procissão, ato de deslocamento em si, um universo de elementos e imagens aparecem no processo de significações e ressignificações das expressões de religiosidade.

Por fim, apresentamos o trabalho de Leonardo Palhano Cabreira, José Luís Abalos Júnior e Camila Braz da Silva, um fragmento da exposição “Paisagens, Cotidiano e Sociabilidades no Litoral Norte Gaúcho: um mergulho etnográfica na memória ambiental”, realizada pelo Núcleo de Antropologia Visual (Navisual/PPGAS/UFRGS). A ideia de captar, registrar e compreender aspectos das paisagens no litoral gaúcho foi motivadora para pesquisadoras e pesquisadores construírem suas narrativas imagéticas acerca do desafio de se deslocar em diferentes ambiências. As imagens testemunham registros de situações da pesquisa etnográfica em processo, desde a interação com possíveis interlocutores e mesmo com colegas de pesquisa em sua postura de captação, o clique da foto, espelhando a prática do registro.

A partir da breve apresentação dos trabalhos que compõem esse dossiê, agradecemos às autoras e aos autores pelas nobres contribuições que participam desta edição, enriquecendo o conteúdo visual e reflexivo para pensarmos os deslocamentos como prática metodológica em contextos urbanos.

Referências

CARERI, Francesco. Walkscapes. O caminhar como prática estética. São Paulo: ed. Gili, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Ed. Vozes. 3ªed. Petrópolis, 1998.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho. Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana — Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2013.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.

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O portal fotocronografias objetiva divulgar ensaios fotográficos que resultem de pesquisas etnográficas e de estudos antropológicos.