Vol. 06 num. 11 -2020- Imagens Feministas ou Feminismos em Imagens

Fotocronografias
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10 min readMay 1, 2020

Organização e Apresentação
Fabiene Gama[1]
Marielen Baldissera[2]
Thayanne Freitas[3]

Feminismo é uma palavra que tem muitos significados. Ser feminista ou mesmo antifeminista, no senso comum, pode significar uma multiplicidade de coisas, por vezes antagônicas, por vezes não. Enquanto área de conhecimento, contudo, os estudos feministas já existem desde, pelo menos, a década de 1970. E abordam temas como a construção social dos gêneros, as relações de poder e dominação entre homens e mulheres, o ativismo das mulheres, a maternidade, relações hetero e homoafetivas, os impactos das interseccionalidades na vida das mulheres, etc.

Este vol 06, n. 11 de Fotocronografias, “Imagens Feministas ou Feminismos em Imagens” nasceu do desejo de reunir, em uma coletânea, ensaios fotográficos que colocassem em evidência algumas reflexões feministas a partir da produção imagética. Há imagens feministas? Como se dariam as discussões feministas em imagens? Estas foram algumas das questões que nos nortearam. Buscando respostas para elas, esse número apresenta ensaios que abordam diferentes intersecções entre a Antropologia, a Fotografia e os Estudos Feministas. São pesquisas que dialogam com as discussões sobre imagens, realçando a pluralidade de abordagens, ao mesmo tempo em que as teorias feministas — no plural — as direcionaram para um escopo teórico comum. São trabalhos oriundos de diversas regiões do Brasil (nordeste, sul, sudeste, centro-oeste) e áreas de pesquisa (artes visuais, antropologia, sociologia, tecnologia e sociedade, etc.) que apresentam uma multiplicidade de questões autodeclaradas feministas.

Para nós, são treze trabalhos que apontam para um conjunto de temas, perspectivas e questões relevantes para os debates que envolvem a produção visual feminista contemporânea. Dando início ao número, Heloisa Nichele de Oliveira aborda a trajetória da fotógrafa paranaense Fernanda Castro em “Mulher fotografa Mulher”. A autora utiliza a narrativa documental como caminho para uma reparação histórica da fotógrafa que, assim como outras mulheres, teve seu legado invisibilizado. Com ênfase em uma exposição fotográfica ocorrida na Alemanha, cuja temática deu nome a este ensaio, Oliveira revela as nuances de um percurso pouco conhecido, discutindo questões de gênero presentes na produção fotográfica de Castro. Na sequência, o ensaio de Maria José Barral Villas Boas aborda a participação das mulheres no Nego Fugido, performance que ocorre na comunidade de Acupe, distrito de Santo Amaro, Bahia. A autora parte da sua vivência com o grupo entre 2012 e 2020 para problematizar o papel das mulheres no grupo cultural. Com ela, descobrimos que as mulheres, ainda que numericamente minoritárias, exercem funções essenciais para a manutenção e organização das atividades do grupo. A narrativa fotográfica apresenta a atuação delas em vários momentos, revelando suas participações.

O ensaio seguinte, de Ester Paixão Corrêa, denominado “Mulheres de mochila pela América do Sul”, apresenta mulheres que transitam e viajam pelo território sul-americano. Corrêa parte de sua experiência como pesquisadora, mochileira e feminista para apresentar elementos que caracterizam o ato de viajar. Repleto de aprendizados, relações e reflexões que perpassam pelos feminismos, a experiência do deslocamento torna-se politizada e influencia seu olhar fotográfico. As imagens revelam mulheres em trânsito, destacando as trocas culturais, pensamentos e expressões artísticas que surgem quando essas pessoas se encontram. Já Maria Alice Nunes Costa, em “Quem decide? Foto-Elicitação pela Legalização do Aborto”, apresenta manifestações contra a criminalização do aborto ocorridas em 2017 no Rio de Janeiro. O texto nos convida a refletir sobre o aborto a partir da problematização de quem dita as leis e de como essas decisões afetam diretamente na vida de mulheres. Partindo de uma metodologia proposta pelo sociólogo e fotógrafo John Collier, “photo-elicitation” (traduzido por “fotoelicitação”), Costa encadeia imagens que suscitam questões ao mesmo tempo em que dão pistas para possíveis respostas, ainda que temporárias.

“Feminismos em pauta e voz” é o ensaio subsequente, de Amanda Antunes, resultado de sua monografia de graduação, defendida em 2018, sobre o rap de mulheres nas periferias de Brasília. Para a autora, o rap feito por essas mulheres é um espaço de reivindicação que, ao dialogar com perspectivas feministas, principalmente o feminismo negro, comunga diretamente com a história do movimento hip hop em seu caráter político. As mulheres encontraram no rap um lugar de fala e de denúncia, de valorização de identidades periféricas e de fortalecimento dos movimentos negros e suas pautas. Ao acompanhar essas rappers, a autora produziu um conjunto de imagens, criando narrativas a partir da metodologia fotoetnográfica. Na sequência, acolhemos o trabalho de Fabiane Urquhart Duarte, “Mujeres Libres, ni un paso atrás”, que aborda a última marcha 8M Binacional que aconteceu na fronteira entre o Brasil e Uruguai, ocorrida em março deste ano, um pouco antes da pandemia da Covid-19 se intensificar no Brasil. Ao retratar mulheres em protesto junto aos cartazes produzidos, a autora realça a pluralidade cultural que envolve o entrelaçar dos diferentes idiomas, ao mesmo tempo em que suas companheiras compartilham reivindicações coletivas.

“Até onde ela vai” é o título da contribuição de Desirée Ferreira. A pesquisadora fotógrafa percorre ruas da Zona Sul de Porto Alegre capturando imagens enquanto escreve em seu diário de campo os desafios encontrados ao ocupar o espaço público. Em seus trajetos, Ferreira registra não apenas barreiras físicas que impedem e mudam suas rotas, mas também obstáculos sociais e subjetivos que se relacionam em uma trama fotográfica. Já Estefânia Young, em “Noxaí”, constrói uma narrativa ficcional. Ela cria uma comunidade em que mulheres carregam pedras durante toda a sua vida, fazendo alusão aos pesos que suportam e aos desafios vividos por elas. As imagens tomam proveito da potência do ficcional e da imaginação, trazendo poses negociadas entre pesquisadora e interlocutoras, impulsionadas pela narrativa textual. Assim como toda boa ficção, ela nos ajuda a pensar melhor sobre nossa realidade.

Em “Bordamos para incidir”, Ralyanara Moreira Freire acompanha mulheres da cidade de Altamira, no Pará, e de Santiago do Chile, que utilizam o bordado como forma de denúncia e reflexão sobre questões que afetam diretamente suas vidas, individual e coletivamente. Freire produz uma narrativa texto-imagética que chama a atenção para a força do bordado como atividade ao mesmo tempo política e artística, ressaltando o protagonismo dessas mulheres em suas lutas e reivindicações. No ensaio intitulado “Narrativa visual sobre o parto humanizado: ‘O renascimento de Dany’”, Leila Patrícia de Lima Irineu e Sabrina Bronzatto apresentam a sequência fotográfica de um parto realizado em casa, buscando compreender como as mulheres se apropriam deste momento para construir novas narrativas de si. Na história apresentada, acompanhamos a horizontalidade da relação entre assistência e parturiente. As imagens, produzidas antes, durante e depois do parto, capturam detalhes da experiência que aconteceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte.

O ensaio seguinte, “Cessão, não Sessão, Seção”, de Raquel Basilone é parte da sua pesquisa de mestrado em Psicologia Social na UFRGS. O trabalho apresenta práticas de membros de uma comunidade BDSM na cidade de Porto Alegre. Por meio de corpos expostos e camuflados, objetos e técnicas, visualizamos imagens que entrelaçam prazer e dor a partir de relações negociadas e mediadas pela câmera. A pesquisadora se coloca como fotógrafa e praticante, incutindo um olhar íntimo ao que está sendo observado.

Já “Postais para outra história da arte”, de Lívia Bittencourt Auler, é um ensaio que tematiza as mulheres lésbicas e o modo como suas relações afetivas (não) foram retratadas na história da arte. A autora cria imagens através de colagens que cruzam obras reconhecidas pelo cânone artístico com fotografias antigas que ela encontra de mulheres compartilhando afeto. Por fim, apresentamos o ensaio “Berenice e Lu em arquivos de cinema”. Neste trabalho, Ana França apresenta uma pesquisa realizada em arquivos sobre a história de Berenice Mendes e Lu Rufalco, duas cineastas paranaenses. Seu objetivo, ao revisitar suas trajetórias, é fazer emergir a história das mulheres no cinema brasileiro.

Os treze ensaios aqui reunidos apresentam uma gama diversa de histórias, narrativas e imagens sobre mulheres, produzidas por mulheres. Ao organizarmos a apresentação deste número, imaginamos, nós mesmas, uma narrativa para ele: um movimento que vai do espaço público ao privado, com interconexões. Começamos com a trajetória de uma fotógrafa negra que rompeu barreiras e participou de uma exposição no exterior, colocando-se presente não apenas nas ruas, ao fotografar, mas também em outro país, ao exibir seu trabalho. Na sequência, observamos a atuação de mulheres e meninas em performances públicas do Nego Fugido, trazendo exemplos visuais dessas que ocupam locais vistos como de domínio masculino. Em seguida conhecemos mochileiras, mulheres viajantes que se conectam com mulheres indígenas pelo que carregam nas costas, pelos passos dados e pelo território percorrido e compartilhado com cumplicidade. Entramos em contato com outras mulheres que carregam algo, dessa vez cartazes com frases de ordem, em manifestações que tomam as ruas do Rio de Janeiro e da região fronteiriça do Brasil com o Uruguai. Em conexão com elas, encontramos mulheres que fazem parte do circuito do hip hop e transformam suas palavras de protesto em arte, poesia e música. Em seguida, refletimos sobre a experiência de uma mulher que, apesar de estar na rua, teme o que pode acontecer com ela por estar sozinha nesse espaço. Uma fotógrafa que sente medo ao fotografar no espaço urbano e compartilha suas palavras consigo mesma, em um diário.

Essa experiência de vulnerabilidade e impotência ao ocupar um espaço público nos faz retornar para o universo privado e íntimo: ensaios que apresentam mulheres em contato com outras mulheres lidando com situações especificamente “femininas”, do espaço da casa, da conexão com a natureza, dos trabalhos manuais. O ensaio ficcional sobre Noxaí faz a transição nesse retorno, justamente por abordar novamente o que as mulheres carregam, mas de maneira simbólica, por metáfora que aponta para os fardos sociais. As pedras fazem contraposição às mochilas que levam à exploração e ao desbravamento de novos caminhos. Nesta cidade do interior, não há novas surpresas, apenas as mesmas velhas regras seguidas por gerações e gerações, passadas de avó para mãe para filha. Outra habilidade que geralmente é herdada e aprendida por meio de outras mulheres é a do bordado, o manejo de agulhas e linhas. Mas, nesse caso, o bordado aparece como uma ferramenta política utilizada em um espaço seguro e de troca. Há um movimento contemporâneo em alguns espaços feministas que busca um retorno a atividades que foram delegadas às mulheres, ressignificando esses atos, que são tomados de sentido e ação de combate. As mensagens bordadas se comunicam com as mensagens dos cartazes que são levados para a rua.

Ao pensar em ressignificação, trazemos uma conversa entre ensaios que redefinem a experiência de uma velha conhecida das mulheres: a dor. Aqui vemos a dor do parto e a dor no sexo transformadas em prazer, autonomia e poder. São também esses ensaios que trazem novas relações com o masculino, o pai que auxilia sua parceira no nascimento de seu bebê e o homem que aceita ser dominado sexualmente por sua parceira. Seriam possíveis — e necessárias — aberturas para novas masculinidades?

Fechamos nossa narrativa com dois ensaios que clamam por revisões históricas de personagens femininas que, dentre tantas outras, necessitam ser relembradas e dignificadas em suas trajetórias. Imagens de arquivos da história da arte são retrabalhadas para dar visibilidade a mulheres lésbicas e suas relações amorosas. Essas mulheres que amam mulheres aparecem em representações não relacionadas ao usual tratamento pornográfico produzido por e para o olhar masculino. E, por fim, mulheres cineastas, companheiras de jornada e de carreira, apresentadas em recortes de jornais em um trabalho de memória e poesia. Mulheres produtoras de imagens, como todas que se entrelaçam nos ensaios aqui presentes.

Ao construirmos nossa interpretação histórica nessa edição da revista, encadeamos os ensaios de forma que o início e o fechamento tratassem de imagens resgatadas de arquivos, do desejo de recuperação de um passado oculto. Assim, buscamos apontar para um movimento que segue em espiral, em um esforço contínuo de pesquisadoras feministas que, ao mesmo tempo em que produzem novas imagens sobre as mulheres (ou de seus pontos de vista), também ressignificam imagens históricas de outras mulheres, por vezes invisibilizadas. Ainda há muitas histórias que precisam ser resgatadas ou mesmo ressignificadas, e muitas mais a serem construídas para um futuro em que o público e o privado sejam lugares de pertencimento em que o medo não se faça presente.

Desejamos que estes ensaios possam afetar outras pessoas a construírem novas histórias — por que não? — feministas.

[1] Fabiene Gama
Professora Adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Co-coordenadora do Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/UFRGS) e é parte do Grupo de Pesquisa CODEs — Corpos e decolonialidades em saúde (UNICAMP/CNPq).
fabiene.gama@ufrgs.br

[2] Marielen Baldissera
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), bolsista CAPES. Mestra em Artes Visuais na linha de Poéticas Visuais e Bacharela em Artes Visuais pela UFRGS.
marielen.baldissera@gmail.com

[3] Thayanne Tavares
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), bolsista CNPQ. Mestra em Antropologia na linha de Gênero e Sexualidade e Bacharela em Serviço Social pela UFPA.
thay.tfreitas@gmail.com

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