Grupo D’Alma

Marcelo Garcia
fotografista
Published in
5 min readFeb 10, 2018

24.11.2017, Sesc Belenzinho, São Paulo.

O Sesc Belenzinho eventualmente apresenta shows dentro do projeto “Álbum”, em que convida músicos para interpretar discos marcantes de suas carreiras na íntegra. O projeto procura resgatar títulos expressivos da música brasileira e apresentá-los ao público em formato de show, revitalizando a memória cultural do país. Discos considerados clássicos por apresentarem em seu conteúdo inovações estéticas que influenciaram gerações, trazendo à tona o contexto político e a estética de uma época. Em novembro, por três dias, o trio de violões D’Alma foi convidado a apresentar seus três primeiros álbuns, tocando todas as músicas na ordem em que aparecem nos discos. O show de A quem interessar possa, lançado em 1979, aconteceu no dia 24.

O D’Alma foi formado no final da década de 1970, por André Geraissati, Rui Saleme e Cândido Penteado, que se conheceram na lendária escola do Zimbo Trio, o CLAM. Geraissati é o único membro origial, e o trio instrumental é hoje completado por Ulisses Rocha e Nelson Faria.

As músicas do trio são curtas, se comparadas com o que se costuma fazer em termos de violão instrumental, e sua pegada quase pop, acessível, quase esconde a complexidade de seus arranjos. A divisão de papéis dentro do grupo é mais ou menos a mesma: Ulisses toca violão clássico com cordas de náilon usando os dedos, André toca violão folk com cordas de aço usando palheta e Nelson toca um Godin com cordas de náilon usando palheta ou os dedos conforme a música. A estrutura das músicas segue a tradição de música instrumental e jazz: toca-se o tema, cada um faz um solo ou improviso, repete-se o tema e fim. Geralmente um deles faz a harmonia enquanto os outros dois executam o tema e, enquanto um improvisa, os outros dois apresentam a harmonia. Por trás desta estrutura aparentemente rígida, porém, as diferenças de estilo e a individualidade de cada músico dão a cada faixa um brilho próprio.

Entre as músicas do álbum, cada integrante teve um momento solo. Geraissati executou “Black mountain side”, do Led Zeppelin, cuja afinação em DADGAD é velha conhecida do violonista, que chegou a gravar um álbum com este nome, gravado inteiramente nesta afinação. Dos três, é o mais intuitivo e tem o timbre propositadamente menos polido.

Nelson Faria apresentou uma belíssima versão de “Manhã de Carnaval”, de Luís Bonfá, repleta de dinâmicas perfeitas. Mas foi Ulisses Rocha quem tirou o fôlego da plateia com seu número solo. Rocha é um dos melhores violonistas que já vi. Seu timbre é limpíssimo e controlado, denotando um grande domínio técnico, mas seu uso de dinâmicas e variações de andamento mostram que esta assombrosa técnica está a serviço de uma sensibilidade elevada. Um músico excepcional. O único problema foi não dizer o nome da música para o público. Eu, que infelizmente não a conhecia, fiquei sem saber.

Além dos shows, a série também apresenta um material gráfico muito criativo, em forma dos velhos compactos de vinil de sete polegadas, com fotos e um encarte escrito por um crítico musical em que o álbum e o músico ou a banda são devidamente contextualizados. O encarte de A quem interessar possa foi escrito por Thales de Menezes, e eu reproduzo aqui uma parte do texto que ressalta a importância do D’Alma e desse primeiro álbum no contexto da época:

O Grupo D’Alma lançou seu primeiro disco, A quem interessar possa, em 1979. O cenário era especialmente favorável à música instrumental. No Brasil e no mundo. As fusões do jazz com outros gêneros cumpriam então anos de consolidação de uma nova música. A oferta do som instrumental era forte e variada. Capaz de atrair admiradores do jazz dito tradicional, das formações eruditas, do rock, de rítmos africanos e, e no Brasil, de música popular de alcance nacional ou de sotaques regionais.

Nesse quadro, o Grupo D’Alma surgiu como um trio de violões com influências de jazz e música brasileira. (…) Na época, os grandes nomes da música instrumental, consagrados ou emergentes, produziam longas faixas, muitas próximas do formato de suítes. Encadeavam passagens variadas para dar espaço a uma demonstração da técnica de seus integrantes. A quem interessar possa já demonstrou o trio ligado a uma condição de modernidade, antecipando a máxima de que, muitas vezes, menos é mais. As músicas dessa primeira fornada do Grupo D’Alma são curtas.

Thales aponta ainda o contexto em que surgiu o álbum, constatando que, hoje, seu impacto dificilmente se repetiria:

A força do disco nasce da soma de duas condições muito difíceis de repetição em outras oportunidades. Primeiro, a inegável carga de talento dos três instrumentistas. (…) Em segundo lugar, era claro que o público ávido por boa música tinha na época uma relação mais intensa com as chances de encontrar sons que pudessem satisfazer seus anseios. As pessoas dedicavam mais tempo exclusivo para apreciar seus discos. Sem a urgência de hoje, com essa demanda pulverizada que espalha o consumo de música de modo rápido e raso, o fã tinha condição de dedicar um bom tempo para escutar um álbum da primeira à última faixa.

Mais fotos dessa apresentação podem ser vistas em um álbum que mandei para minha conta no Flickr:

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