Fé em estranhos

Danilo Bortoli
Four Track
Published in
5 min readOct 5, 2014

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Foto acima no The Big Picture

Um lamento digno de gente ingrata de primeiro (terceiro) mundo: As caixas de som que, durante um bom tempo, serviram com áudio tudo que saía do meu computador hoje em dia não tem muito propósito senão o de causar frustração em mim. São relíquias dos anos noventa que insistem em fabricar neste novo século, eu diria: dois blocos pretos que, quando quiseram, serviram bem quando executavam o som de algum vídeo falado do YouTube ou quando eu escutavam pop ruim. Nada muito específico ou que exigisse mais do que as caixas poderiam suportar. Ledo engano o meu.

Há cerca de dois meses, estimo, a duas caixas de som começaram a ter um funcionamento — melhor dizendo, um comportamento, destas duas caixas personalíssimas — estranho, não típico em relação ao que elas teriam usualmente. Não que elas fossem responsáveis por grandes orquestrações em termos de qualidade de som — longe disto —, mas o som que elas emitem deixou de ser o aceitável desde aquele tempo já mencionado: tudo ficou mais grave, os ruídos se intensificaram e a qualidade ficou insuportável.

Minha primeira reação foi a de incredulidade. Depois percebi que não poderia exigir muito de produtos tão antigos (tanto em modelo quanto em ideia — olá, anos noventa) e cujo preço não conhecia mais. Aposto que não pagaram muito por aquilo aqui em casa.

Não haveria muito o que ser feito. Não escuto muito mais música senão através dos fones de ouvido do celular. Há tempos que não tenho a ideia do que seria escutar música com interrupções do som do próprio ambiente. Admito que não sinto falta de distrações além das necessárias — distrações que te lembram que o que está sendo ouvido foi criado por um ser humano, mesmo que a inspiração inicial tenha um quê de divindade.

Ao longo do tempo, ao longo destes meses, acabei me acostumando com o desconforto de, nos finais de semana, sentar à frente do computador (pois são nos finais de semana que disponho deste tipo e quantidade de tempo para realizar coisas assim) e escutar música que não respeite nenhum conceito de “fidelidade” sonora. Aos poucos, abandonei a música pop, já que ela depende muito deste ideal de fidelidade para ser convincente, e parti para música que não precisa de tanta sisudez na estética. Em outras palavras, música que soa normal mesmo quando em condições adversas de reprodução.

Só fui reparar na diferença entre as canções e álbuns que escuto no celular e as que escuto no computador, graças ao estado das minhas caixas de som, quando me deparei consciente(mente), escutando Primate, de Kevin Drumm.

http://kevindrumm.bandcamp.com/album/primate

Qualquer coisa que Kevin Drumm esteja tentando realizar — e isto é um trabalho para outro post por aqui —, a distorção das minhas caixas de som está amplificando. O desrespeito à forma (pelas minhas caixas não corresponderem fielmente ao que era estipulado pelo disco de Drumm) acaba criando algo mais que não era previsto. E isto acaba interferindo na maneira com se escuta (eu escuto, colocando de outra forma) este disco aqui.

Primate é para ser pensado, realmente, como um disco desconfortável — o próprio Tiny Mix Tapes tem um guia (bastante póetico e inconsequente) num post minúsculo para ouvi-lo — mas eu me pergunto se eu gostaria dele tanto quanto eu gosto dele (ou seja, de maneira um tanto quanto indiferente, mas eu chego lá um dia talvez) se o escutasse da maneira limpa — se é que isto existe.

Porém, este tipo meu de racionalismo é perigoso, eu admito: eu acabo tratando música de uma maneira materialista — e mais materialismo nesta abordagem só faria mal ao raciocínio deste post — ao falar somente da forma que Primate é executado. Este post, então, não é uma defesa explícita da distorção na escuta de música, mas uma defesa do que deveria ser óbvio: limpidez quando se fala de música nem sempre é uma boa jogada.

Shah Marai

Primate é ininteligível por natureza, eu aposto: em qualquer circunstância, ele soaria tão impenetrável quanto eu aposto que ele é. Mas eu também divago: arrisco dizer que a pobreza da minha caixa de som não melhora ou piora a minha reação à Kevin Drumm. Como se mescla ruído com ruído — reflexão sonora com pobreza sonora (das minhas, hum, pobres caixas de som)— pode-se dizer que não haveria outra forma de escutar Primate. Fim de tópico portanto.

Enquanto Primate acaba tendo a mesma repercussão quando executado de maneira distorcida ou não (mesmo com seus defeitos sendo amplificados pelas caixas de sons ruins), pergunto o mesmo sobre o disco novo de Andy Stott, Faith in Strangers.

Andy Stott, Faith in Strangers

Ao contrário do trabalho de Kevin Drumm, Faith in Strangers pede mais que simples amplificação. A cacofonia nas canções de Stott, por exemplo, levam ao máximo os graves das minhas caixas de som, quando, em condições consideradas normais, não haveria necessidade alguma de se utilizar algum grave. O resultado é que tudo é direcionado aos synths e wobbles, sobrecarregando tudo mais que pode ser processado pelas minhas caixas. O efeito é parecido quando tento tocar esta canção de James Blake utilizando as caixas.

O resultado vai mais além do que simples releitura. Tudo pende para uma interpretação apartada da música em si. Tudo é amplificado. O que antes era simples modismo se transforma em alienação. O que era romantismo, com os graves a todo vapor (com as caixas não conseguindo processar o mais simples dos drones em um disco de techno) vira desespero jogado em vozes desconexas.

Acaba sendo uma lição importante estas distorções: há muitas formas de se escutar música, mas a que a mais valorize seja a de escutá-la de acordo com suas proporções e limitações. Com ouvidos abertos à sua beleza e sua ocasional transgressão, mesmo que isto signifique observar mudanças em caixas de som. Este pode ser um início para entender as particularidades de cada canção (há um Universo em cada uma, digo) e estudá-la com o espírito aberto.

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