O ponto de virada

You Don’t Know Me At All
Four Track
Published in
4 min readMay 5, 2015

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Sobre ‘Vulnicura’, de Björk

Björk sempre foi uma mulher personagem. Não que isso seja novidade para ela ou para a arte. A diferença parece estar na quebra, de como Vulnicura se apresenta como um personagem que nos faz vislumbrar seu criador.

Vulnicura é um álbum de separação, algo entre um grito magoado durante uma briga e um longo diário de uma relação que naufragou cheia de mortos e feridos. O que conseguimos ver nesse espaço — mesmo que por um momento, ou de forma oscilante — é uma Björk que se apresenta uma casca de personagem, pela primeira vez. Em cada um de seus discos ela assumiu uma imagem específica, uma persona definida e que ao mesmo tempo se liga de forma emaranhada com a cantora. Uma amálgama que escapa por entre os dedos quando se tenta separar seus estratos.

Um exército de si mesma

Um inventário de mulheres que não se deixam passar em branco. Talvez essa seja um breve resumo de que papéis Börk assume a cada obra. Em Debut nos deparamos com uma espécie de recém-formada em alguma escola de música, uma garota tímida que toma um microfone e tenta mostrar tudo que sabe, do jazz ao house clássico dos anos 90. Em Post, a garota que é consumida e que consome a cidade numa catarse arrebatadora. Em Homogenic, uma guerreira nórdica cibernética, que parece ser a ponte entre o que é artificial e orgânico, ocidente civilizado e terras tribais. Vespertine nos mostra uma noiva invernal cercada de uma intimidade maliciosa, cheia de intenções escorregadias a canção explorada. Médulla vemos alguém feito de pura materialidade, carne, osso, dentes, voz e cérebro — tudo invadindo cada célula em busca de matéria para compor uma obra. Volta é uma andarilha colorida, andando de costa a costa com trompetes e tochas. Biophilia parece ser alguém que traduza a ideia do indivíduo educado, da entidade que compreende os níveis abstratos da arte e da ciência dura como o ponto das duas retas paralelas que se cruzam no infinito — os problemas de natureza emocional parecem ser um molde matemático que se traduz nas órbitas planetárias ou atômicas. Do grande ao pequeno, é alguém que busca soluções elegantemente exatas para teorias musicais ou para a natureza das relações pessoais.

E são Björk. Todas essas. Ao mesmo tempo. Quem é a mulher que Vulnicura nos apresenta? E, principalmente, porque nesta enxergamos alguém muito mais humano que todas as outras vezes que Björk nos apresentou um novo disco?

Metabjörk

Talvez pelo efeito de credibilidade e materialidade da música, a voz e a presença nos dão a sensação de que o narrador e autor são a mesma pessoa; talvez pela presença esmagadora da cantora em cada uma de suas obras, como sempre fez; temos sempre a impossibilidade de dizer onde acaba e onde começa Björk e personagem. Como alguém que vê uma pessoa fantasiada num trem fantasma de um parque de diversões e tem medo , mesmo sabendo que tudo ali é maquiagem e figurino. Temos um certo fascínio por aquelas diversas pessoas que Björk nos apresenta.

O que acontece então quando ela nos apresenta seu lado mais despedaçado e, principalmente, mais humano e comum do que ela jamais foi? Não, Vulnicura não é uma Björk completamente despida de disfarces. Mas a personagem — uma mulher que está ferida mas entende a dor como cura — aqui tira a máscara no meio do processo e se revela como Björk. Sim, a pessoa que juntou acordes e escreveu letras. A cantora e compositora. A islandesa que virou icone fashion. A esposa e mãe de dois filhos. Como algum ser misterioso de uma peça teatral que tira a máscara no meio do espetáculo. Sabemos que há um autor/ator. Sabemos que ali há alguém de carne e osso e que é igual a nós. Mas ao mesmo tempo traduz a dor de uma forma arrebatadoramente bela que nos faz pensar sobre como é especial e se difere de nós no campo do sensível. É paradoxal, mas Björk interpreta a si como nunca havia feito antes. Talvez por ser o recorte mais trivial que já tenha feito sobre o bizarro objeto que é o (des)amor.

Sobre o propósito dos diários

O que investigamos aqui é o diário uma tragédia. O encarte do disco, por exemplo, traz datas referentes ao término da relação com o então parceiro Matthew Barney. É um paratexto impossível de se ignorar. Todas as páginas desse diário são escritas com uma série de avisos sobre o quanto aquilo é, na verdade, humano. “Moments of clarity are so rare, I better document this”. O questionamentos de culpa, maternidade, família, sexo, afeto, necessidade, posse. Tudo é colocado em um processo de arquivamento, quase um inventário de dores e dúvidas. Björk parece querer que alguém leia tudo isso depois.

Não apenas a ideia do diário, que é escrito em uma mistura de auto-análise e ordenamento de discurso freudiano. Ou a ideia de uma missiva confessional a alguém — se pensamos o disco como também uma experiência que finda na apreciação coletiva. Nem de uma dramaticidade da dor — ela existe, ela tem atos, mas não chega a se cristalizar como tal. O que está em jogo em Vulnicura é principalmente a criação de um artefato histórico para uma Björk -expectadora, uma mulher que virá depois, sozinha, para ler. Como quem deixa um texto alguns dias na gaveta para tentar olhar tudo sem o vício do autor.

Ela virá sem a companhia da novata, da garota-catarse, da guerreira, da noiva invernal, da mulher carnal, da andarilha e da asceta. Alguém que poderá ver como ela mesma escreveu um dos momentos mais dolorosos de sua história. A Björk que lê é a mesma que escreveu, mas com experiências outras. “Still here, but in different places”.

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