A declaração de amor ao cinema em Surpreendente!, de Maurício Gomyde

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
7 min readJan 26, 2018

Uma informação sobre mim: sou apaixonada por livros cujas diagramações sejam diferenciadas, e mais ainda por aqueles autores que enchem suas obras de citações tocantes ou inspiradoras.

A notícia boa que já inicia essa resenha: na obra “Surpreendente!”, escrita pelo paulista Maurício Gomyde e publicada pela editora Intrínseca, a gente encontra os dois atributos citados acima.

Mas eu juro que parei com a overdose de “dois pontos”, e preciso falar sobre o quanto esse livro mexeu com as minhas emoções, para bem e para mal. Socorro, meus amores. Eu não sei o que sentir direito até agora.

Obra publicada pela editora Intrínseca, em 2015

O plot do livro já começa com uma cena que parece ser o final de tudo. Pedro, o personagem principal, está na beira de um precipício, com os amigos gritando para que ele não faça uma enorme besteira. Depois de deixar o leitor em estado de choque, a narrativa retorna para 50 dias antes daquela cena.

Pedro tem 25 anos, é recém-formado em audiovisual e trabalha em uma locadora de filmes da periferia da cidade. Além disso, ele faz uma espécie de trabalho voluntário no último CineClube do lugar, exibindo filmes clássicos e comentando-os (ou falando sozinho, no caso) com os poucos expectadores que ficam até o final das sessões. Querido por todos, e o legítimo sonhador incurável, Pedro é aquele cara que acredita na cultura como forma de fazer a diferença na vida de alguém, seja como forma de evolução ou de motivação.

Mais um detalhezinho importante sobre Pedro é o problema que ele tem na visão. Ele foi diagnosticado, desde o nascimento, com uma séria degeneração na retina, que deveria deixa-lo cego em uma questão de meses. Ele, porém, se tornou uma daqueles milagres positivos da medicina. A degeneração simplesmente estagnou lá pelos seus 20 anos, e ele pôde viver quase normalmente, com 0% de visão periférica e 70% da visão central.

Os personagens que mais aparecem no decorrer da história, além de Pedro, são os amigos mais fofos e leais que a gente respeita. Fit é o melhor amigo e também respira pelo cinema, Mayla é funcionária e sobrinha da dona do CineClube, e Cristal também passa a trabalhar no local, tornando-se a maior “crush” de Pedro.

“Surpreendente!” é um livro muito agradável de ler, e prende o leitor desde o início, por já começar com uma cena impactante e ter capítulos bem curtos. A escrita de Gomyde é de fácil compreensão, mas não peca em beleza e fluidez. A narrativa consegue alternar entre momentos felizes e melancólicos, e faz essas transições de maneira natural; ainda sobre detalhes mais “técnicos” da escrita, o livro tem narrativa linear e possui poucas cenas de flashback, que são inseridas para nos apresentar à infância de Pedro e ao relacionamento dos pais dele, Carlo e Ariadne.

A minha experiência com esse livro foi cheia de “mas”. Gostei, mas acho que podia ser melhor; adorei isso, mas aquilo foi desnecessário; e etc. A começar pelo protagonista Pedro, que dividiu meus sentimentos a cada capítulo, já que em alguns momentos eu achava ele um fofo, e na página seguinte o achava muito imaturo.

Ao mesmo tempo em que adorei a descrição enxugada (e mesmo assim completa) dos cenários e personagens, a forma como o romance entre Pedro e Cristal começa é muito clichê, com aquelas frases em estilo provocante e inocente, cheias de “me surpreenda” e “pode esperar”. Achei isso super desnecessário porque fica claro, desde o início, que os dois vão namorar.

Como já mencionei, a personalidade de Pedro me pareceu meio desconexa em alguns momentos. Ele já é um adulto com suas 25 primaveras, e em alguns momentos da trama aparenta ser decidido e forte. Mas tem algumas atitudes dignas de um adolescente, e mesmo tendo amigos extremamente leais a ele, os deixa sem saber de um fato importantíssimo de sua vida.

Desde a sinopse, ficamos sabendo que Pedro e os amigos vão fazer uma viagem onde irão filmar imagens para algum filme — ainda sem roteiro — que ajudará o protagonista a ganhar um grande prêmio. Mas a impressão que o livro me passou foi uma tentativa de viagem de autodescobrimento, que ficou sem profundidade suficiente para tocar o leitor.

Em vários momentos da leitura, sentia como se houvesse uma tentativa de cativar o leitor pela contemplação das cenas à volta do personagem principal: os amigos sendo felizes, ele curtindo todo o entorno; uma juventude sem problemas ao mesmo tempo em que um grande conflito paira sobre a mente de Pedro. Tudo muito bonito e bem descrito, mas (olha ele aí de novo, o “mas”) para que isso tocasse no coração do leitor, sinto que faltou aprofundamento na história de cada um deles, e faltou, ainda, um contexto psicológico de Fit, Mayla e Cristal. Sabemos o que Pedro está pensando, mas os amigos dele são apenas três pessoas — que não conhecemos — e que estão se divertindo.

Os personagens são fofos e ótimos amigos, mas não foram muito além disso na minha compreensão. Dessa forma, nas cenas em que o drama adolescente é construído com um toque mais poético, não me senti cativada como deveria.

De qualquer maneira, uma das coisas que gostei na narrativa foi a homenagem que ela presta ao cinema. Percebemos que a paixão pelos filmes é o que guia a vida do protagonista e o conecta ao grupo de amigos. Além de ser muito legal ver as referências que eles fazem às obras cinematográficas que amamos, o conceito do “cinema felicidade” em que Pedro acredita é encantador. Eu também acredito demais na cultura como forma de educação, aprendizado e evolução do ser humano, e encontrar um personagem que prega isso foi incrível.

Aliás, essa esperança no crescimento pessoal dos seres humanos é uma das coisas que podemos pegar como um ensinamento notável em “Surpreendente!”. A cultura, englobando literatura, música, cinema, teatro, artes plásticas e etc, não precisa servir como um simples entretenimento de fácil digestão. Toda forma de arte pode agregar conhecimento e instigar as pessoas a buscarem por cada vez mais. Quando eu assisto “A Lista de Schindler”, por exemplo, eu fico curiosa em saber quem foi esse tal de Oskar Schindler na vida real. Pesquisando sobre ele no Google, eu vou acabar pesquisando sobre a Segunda Guerra Mundial; e quem sabe, a partir de um único filme, eu me interesse de forma permanente em estudar mais sobre a história do mundo.

Além de essa crença ser disseminada em “Surpreendente!” pelo personagem principal, a alusão a tantas obras clássicas do cinema pode levar os próprios leitores de Maurício Gomyde a se interessarem, também, pela sétima arte.

Outras reflexões que eu senti nessa narrativa, e que merecem ser pontuadas, dizem respeito à valorização dos pais e dos amigos. No decorrer da narrativa, Pedro vai percebendo o quanto os amigos são essenciais em sua vida, por estarem sempre ao seu lado, o impulsionando em seus sonhos e oferecendo vários ombros para ele chorar. E mesmo mantendo um comportamento meio clichê com os pais na maioria do tempo (aquele estilo de “meus pais não me entendem”), ele se preocupa com os problemas do casal e acaba percebendo, em determinado momento, o quanto o pai e a mãe fizeram uma diferença enorme na sua essência. Sério, uma diferença que eu estou louca pra contar. Mas não vou, porque seria um baita spoiler.

Porém, as questões mais interessantes e gerais do livro, além das citadas acima, me pareceram ser o altruísmo e o incentivo a aproveitar cada momento. Pedro sente que foi abençoado por Deus e pelo destino, com a degeneração da visão milagrosamente estagnada. Ele se sente completo em cada cor que consegue enxergar, curte os momentos de lazer e de trabalho, e adora ajudar os mais pobres (de conhecimento) com aquilo que entende melhor: cinema. Assim, ele tenta fazer com que mais corações sejam tocados pelos filmes que fizeram diferença em sua própria vida.

As questões que a história parece levantar são bem simples, e as encontramos todos os dias: será que vale a pena, realmente, ajudar o próximo? Quem ganha mais com isso? E valendo a pena, eu me disponho a fazer isso no cotidiano? Não importa se dando um prato de comida, apresentando um filme necessário de ser assistido ou apenas dando um abraço em alguém, o livro inspira o lado altruísta do leitor.

Fica aqui uma dica de livro interessante, com alguns pontos que considerei super falhos, mas com outras características bem agradáveis. Se você procura um livro tranquilo, rápido, com poucas camadas de narrativa e uma ótima escrita, “Surpreendente!” vale a leitura.

E fico feliz em resenhar por aqui mais uma obra nacional. #LeiaNacionais

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.