A minha leitura é diferente da sua

Sobre um mesmo livro e várias experiências diferentes

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
6 min readFeb 21, 2018

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Foto: Pixabay

O ano era 2008. Tinha um livro novo chegando, e de repente ele virou moda nacional. Todo mundo lia, todo mundo corria para o cinema para assistir a adaptação em longa metragem, e todo mundo só falava daquilo. Sim, era Twilight. Ou Crepúsculo, como @ leitor@ preferir.

Vivi o período em que todo mundo me julgava porque eu ainda não tinha lido aquela obra imperdível e até assisti ao filme pra entender o porquê de tamanho falatório. Tá bom, eu achei o filme bem fofo, mas confesso que histórias de vampiro nunca foram o meu forte.

Depois do período em que eu “precisava-ler-Crepúsculo”, os anos seguintes trouxeram um novo clima. Agora eu estava certa em nem ter lido aquela “baboseira”. Acabei sem entender: o livro era bom ou não era?

Agora, 10 anos depois do hype em cima dos sugadores de sangue, estou aprendendo a ter uma visão um pouco mais abrangente da literatura, e já consigo entender o que dividia tanto a opinião das pessoas. Se eu não tinha vontade de ler Crepúsculo enquanto 80% da população se apaixonava pelo Edward Cullen (ou pelo Jacob), é tão somente porque somos pessoas diferentes. E não tem nada de errado nisso.

Na obra “Para Ler Romances como um Especialista”, o professor Thomas C. Foster afirma que os personagens dos livros vivem porque nós vivemos. Assim, os personagens e o contexto deles em um livro não são finalizados, não têm características absolutas. Pelo contrário, Foster acredita que a construção de uma história ficcional é feita apenas em parte pelo autor, que deixa uma finalização a ser determinada por quem vai ler a mesma história. Em resumo: somos responsáveis, como leitores, por compreender o que um escritor quer passar e completar as lacunas com nosso próprio conhecimento e imaginação.

Não sou a Miss Estudos Literários de 2018, e ainda não tenho certificado por algum conhecimento em literatura. Mas falando como uma apaixonada por histórias, já quero dar uns pitacos por aqui, e concordo humildemente com a visão de Foster. Ela me parece bem sensata e realista, visto que uma mesma obra é capaz de despertar diferentes interpretações; não fosse assim, não existiriam encontros para discussão entre leitores ou mesmo os booktubers opinando sobre o que leem.

Essa é uma das qualidades da literatura, meus amores. Ler não é apenas entender o óbvio do que está escrito, mas compor nossa própria interpretação do conteúdo. Os livros abrem portas para que mudemos nossa forma de enxergar a vida real, para que possamos refletir sobre questões curiosas ou necessárias da nossa existência. E para isso, seria raso demais esperar que todas as deduções nos fossem entregues já prontas pelos escritores.

Na construção de uma história, cumprimos a nossa parte como leitores de acordo com a chamada “bagagem cultural” que acumulamos até o momento.

Uma experiência de leitura é única para cada pessoa, e pode sofrer influência de vários elementos:

★ Os conhecimentos gerais do leitor podem complementar a recriação mental das ambientações em locais menos conhecidos, das vestimentas em uma história de época, de gírias antigas ou palavras já em desuso, de temas mais complexos envolvidos na história, do cenário político e social em que a história está inserida e etc.

★ O nível de foco e atenção ao que está lendo faz a diferença no quanto se pode reter das informações sobre personagens, enredo e plot twists. Muitos autores colocam informações importantes em trechos que parecem desnecessários, é sempre bom lembrar.

Foto: Ben White/Pexels

★ Além do conhecimento, as experiências pessoais, sociais e culturais do leitor também influenciam na empatia dele com personagens, recriação de ambientes e compreensão dos acontecimentos. Quando o leitor consegue se identificar com a obra que lê, a compreensão dela se torna ainda mais acessível.

★ O ambiente onde a leitura é feita também influencia na forma como o texto é assimilado pelo leitor. Ler com pressa ou em locais muito barulhentos pode não permitir uma verdadeira imersão no livro.

★ Também é interessante que, antes de embarcar em uma obra clássica ou muito complexa, o leitor faça uma pesquisa rápida (cuidando com os spoilers) sobre o que o plot envolve: o período histórico, os costumes sociais e a cultura da época em que o livro foi escrito; além de outros detalhes interessantes que acrescentem no contato com o livro.

Quero salientar que as percepções acima são pessoais, de acordo com a minha própria experiência e de outros leitores com os quais já conversei ou assisti vídeos sobre literatura no YouTube. Porém, mesmo que não tenham se originado com teóricos da área das Letras, acho válido compartilhar, para que pensemos juntos sobre esse assunto.

Outro ponto interessante a se levar em conta é o fato de que, espontaneamente, nós mudamos de opinião em vários momentos da vida. Vamos evoluindo e amadurecendo convicções pessoais, assim como nosso intelecto, e me parece extremamente natural que não enxerguemos uma história já lida anteriormente pelo mesmo prisma. Assim, é okay se você adorar um livro hoje, e daqui a uma década ou menos, não entender porque tinha curtido tanto aquele livro meio “fraquinho”. Talvez não seja o livro que é fraquinho, é apenas você que já está madur@ demais para sentir a mesma afeição por ele.

E se mudamos de opinião ao ponto de não entendermos nossos próprios gostos, o que sobra para concordar com os gostos e opiniões alheias então? Porque todo mundo precisa adorar ou odiar em conjunto determinada obra?

Se cada pessoa tem uma percepção única a respeito de uma obra literária, nada mais normal do que divergir de opinião sobre esse assunto. Voltando à obra de Stephenie Meyer, citada lá no início, eu posso ler Crepúsculo e achar o livro fraco, não enxergando profundidade nos personagens. Você, por outro lado, pode achar a história ricamente delineada e ter a obra como uma de suas favoritas da vida. O que impede isso?

O que me encanta na literatura é, justamente, essa liberdade que temos para interpretá-la. Mesmo que críticos renomados deem sua opinião, mesmo que vejamos resenhas positivas ou negativas na internet, continuaremos com nossas dúvidas. Mas os livros ainda estarão ali, esperando que você tenha sua própria experiência e formule suas opiniões sobre ele. E melhor ainda, essa leitura pode provocar discussões saudáveis e interessantes entre os leitores. Os booktubers e clubes de leitura estão aí por conta disso, os blogs e revistas literárias também. A Bookish Brasil também, afinal de contas!

Caso você já tenha lido e ainda não tenha conseguido refletir sobre um livro, não precisa se preocupar. Ele ainda estará ali, esperando o momento em que você se sentirá preparad@ para fazer uma releitura. Porque não existe problema em fazer uma segunda, terceira ou décima leitura; o que interessa é você absorver o máximo que aquela narrativa tem para te contar.

Licença mores, mas vou pegar como exemplo a minha experiência pessoal com o clássico de Fitzgerald, “O Grande Gatsby”. Na minha primeira leitura, feita para um trabalho da faculdade, achei o livro muito lento, sem grandes acontecimentos. Por algum motivo, tive vontade de lê-lo de novo uns dois anos depois. Para a minha surpresa, me apaixonei pela obra, e enxerguei toda a carga dramática e sonhadora que ela carrega, assim como o personagem singular que é o protagonista, Jay Gatsby.

Para mim, essa é a grande qualidade de manter uma estante cheia dentro de casa. Ter os livros sempre por perto, até que chegue o dia em que eu me motive para lê-los de novo, e de novo, e mais outras vezes quando sentir que estou preparada para entendê-los. Atualmente, mesmo os livros que leio no celular ficam guardadinhos no meu aplicativo do Kindle, porque nunca sei quando vou querer ler algumas passagens ou as obras inteiras de novo. E por mais que o meu tempo de vida seja pouco para ler todos os livros que eu gostaria, consigo entender que a qualidade da leitura é vinculada diretamente à receptividade do leitor, no momento em que ele se dispõe a abrir a mente para conhecer aquela história.

Essa receptividade frente a uma mesma obra literária é diferente em cada leitor, assim como todas as outras “variáveis” que refleti com vocês nesse texto. E todas essas peculiaridades fazem com que, mesmo lendo uma mesma obra, a minha leitura seja diferente da sua. Isso é normal, e digo mais: isso é incrível.

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.