Benjamin Button: uma história de desconstrução

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
8 min readJan 8, 2018
Edição publicada pela editora L&PM, em 2016

Todos nós, inegavelmente, acordamos com objetivos pelos quais trabalhamos, e vamos dormir com um planejamento do que fazer no dia seguinte. Buscamos melhorar nossa vida amorosa, financeira, profissional; e claro que, para isso, também procuramos toda forma de bem-estar possível. Batalhamos por tantas coisas e resolvemos todas as pedras que pipocam pelo caminho.

Tudo isso tentando adiar o que conhecemos como “o ciclo natural das coisas”. Fomos ensinados por parentes que foram advertidos por ancestrais (e essa linha do tempo parece não acabar nunquinha), que há uma ordem estática que rege a vida: nós nascemos, crescemos, vivemos, envelhecemos e morremos.

Isso é tão definitivo, não?
Na cabeça de Francis Scott Fitzgerald, o autor de grandes obras como O Grande Gatsby e Suave é a Noite, essa ideia não parecia tão definitiva e incontestável assim.

Benjamin Button é um bebê nascido no meio do século XIX, filho de uma família aristocrata estadunidense, e muito esperado pelos pais. Ele nasce em um hospital, porque o bebê de uma boa família não poderia nascer em outro lugar menos elegante.

O que a situação financeira da família não pode evitar é que o menino nasça com a aparência e o estado de saúde de um senhor idoso, inclusive já falando e pedindo por uma bengala. Nem preciso citar o choque do pai, Roger Button, ao dar de cara com o filho no hospital, em um ambiente tomado pelo choque e as caras assustadas das enfermeiras.

Como pode ser a vida de alguém que vive tudo ao contrário? Alguém que não envelhece, e enquanto todos que conhece ganham rugas, vai se tornando mais e mais jovem?

Essa é a premissa básica de O Curioso Caso de Benjamin Button, obra escrita por Fitzgerald e publicada pela primeira vez em 1922.

“A ideia de vestir o filho com roupas de homem lhe provocava repulsa. Se, digamos, conseguisse ao menos encontrar um traje de menino bem grande, poderia cortar aquela barba comprida e horrorosa, tingir o cabelo branco de castanho e, assim, dar um jeito de ocultar o pior, conservando em parte a autoestima — sem falar em sua posição na sociedade de Baltimore”

Francis Scott Fitzgerald foi um dos autores da chamada “geração perdida” dos anos 20, e nasceu em meio a uma família americana de classe média. Mesmo não sendo tão cheio de posses e dinheiro, ele se interessava pelo modo de vida e as diferenças entre as classes ricas e pobres.

O autor da obra, F. Scott Fitzgerald.

Grande parte de sua obra têm como característica a ironia (e as alfinetadas maravilhosas!) ao retratar os poderosos e seus costumes, em uma forte crítica à parcela da sociedade interessada apenas em status e poder.

Na obra em questão, não é diferente.

O livro se passa na cidade de Baltimore, nos Estados Unidos. O período histórico é 1860, logo antes da Guerra Civil Americana. A narrativa começa em meio a correria de Roger Button, que precisa chegar ao hospital a tempo de ver a esposa dar a luz. Desde as primeiras frases, já é possível notar o tom de zombaria que permeia a obra.

O narrador da história é em terceira pessoa, e mesmo sabendo tudo que acontece ao redor, acompanha mais de perto as emoções e reações do patriarca da família Button. Ele não se identifica e, em alguns momentos, utiliza um recurso que — por não saber nomear de outro jeito — chamo aqui de “quebra da 4ª parede”, tal como o entendemos no cinema. Dessa forma, há uma conversa entre o narrador e o leitor, em que ele expõe opiniões próprias e fala sobre detalhes externos à própria narrativa.

Essa característica do narrador só auxilia na ironia que marca a história, e ajuda na compreensão dos pontos fantásticos que são explorados. O narrador se porta como se estivesse sentado a nossa frente, nos contando uma história que aconteceu há muito tempo.

“O que vão dizer?”

Desde que Benjamin nasce, percebemos que o pai tem dificuldade em aceitá-lo por conta da diferença do bebê frente ao padrão que ele tinha em mente. A causa de tamanha preocupação do senhor Button é bem clara: o que os outros vão pensar? O que a sociedade vai dizer de um homem distinto como ele, tendo um filho tão incomum?

Benjamin passa seus primeiros anos tentando se adequar ao imaginário do pai, enquanto a mãe segue omissa. Tão omissa, aliás, que não dá para contar em uma mão a quantidade de vezes que ela aparece na história. Mas enquanto tenta ver graça em chocalhos e em brincar com outras crianças, Benjamin é sempre disfarçado do que ele realmente é; Roger pinta seus cabelos, apara sua barba e o veste com as roupas que os outros esperam ver uma criança vestida.

Literatura fantástica? Pero no mucho

Não vou me estender muito na história, pois o conto é bem curtinho (na edição da L&PM mais recente, tem apenas 50 páginas). Mas o interessante nesse plot é que, mesmo que se assemelhe a uma fantasia, pela situação de alguém nascer idoso e rejuvenescer até virar um bebê, a história carrega questões extremamente reais e muito — mas MUITO MESMO — atuais.

É possível dizer que O Curioso Caso de Benjamin Button é uma narrativa de formação às avessas, e alguns dos temas abordados em suas poucas páginas são:

  • a valorização das aparências em detrimento da essência interior dos seres humanos,
  • a visão depreciativa e a desvalorização dos idosos,
  • o interesse financeiro e/ou pelo poder,
  • e a influência da mídia sobre a opinião do público.

Essa influência da mídia na sociedade se faz presente de uma maneira muito atual: em determinado momento, a imprensa especula sobre a vida de Benjamin, relembra a “polêmica” de seu nascimento diferente e traços incomuns, e traz os fatos ao público de forma espetacularizada.

Não se parece com o que vemos hoje, nesse exato momento, assim que você acessa aos maiores portais de notícia da internet?

Imagens do filme: Divulgação — Warner Bros. France/Paramount Pictures

O que mudou entre os dois Benjamins

Primeiramente, ao falar sobre a adaptação do livro para o filme homônimo de 2008, preciso ressaltar uma coisinha: ele não é uma versão fiel da obra de Fitzgerald. Não entendo a parte mais técnica das definições do cinema, mas isso fica claro desde que o filme começa, e também quando lemos na sinopse que os nomes de personagens e vários detalhes importantíssimos do enredo do livro são alterados ou excluídos.

Mas isso não é demérito para o filme, de jeito nenhum. São dois desdobramentos diferentes e igualmente interessantes para uma mesma premissa.

Sob a direção de David Fincher e o roteiro escrito por Eric Roth (mesmo roteirista de Forrest Gump, filme que é o amor da minha vida), o Benjamin do cinema ganha um ar poético e bondoso. O filme tem o mesmo título do livro mas, como bem afirma a crítica do site Omelete, é levemente baseado na obra literária. Levemente mesmo.

O contexto histórico muda, e Benjamin nasce — nas telas — em 1918, ao final da Primeira Guerra Mundial. Ao invés de ser cuidado pelos pais biológicos, ele é deixado na porta de um lar para idosos, onde é adotado pela cuidadora dos velhinhos, personagem essa que nem passou pela cabeça de Fitzgerald ao escrever o conto.

Não chorei com o livro, mas…

Eu juro que não tenho fama de chorona no cinema, mas como já citei agora há pouco, o filme tem uma atmosfera bem mais acolhedora do que o livro. A obra de Fitzgerald tem um narrador distante, mais próximo do leitor do que dos personagens, e ele descreve um ambiente de frieza, interesse e aparências da aristocracia.

A “moral da história”, ali, é voltada para uma crítica em relação a impotência dos homens frente ao destino final da morte, e, também, uma certa especulação do “e se”: e se nascêssemos idosos? E se fôssemos capazes de modificar essa dita ordem natural?

No filme, porém, a vibe é outra.

O fato do Benjamin de Fincher ser deixado na porta de um lar de idosos tem seu sentido, pois o personagem acaba sentindo-se em casa, acolhido por aquelas pessoas cuja aparência e condições físicas se aproximavam tanto das suas. Button passa a observar todas aquelas vidas, cheias de experiências boas e ruins, indo parar em um mesmo lugar de repouso final. Entende, assim, a brevidade da vida e o quanto ela pode se esvair em minutos; passa a valorizar cada momento e a desejar, mais do que tudo, viver tudo o que puder antes de respirar pela última vez.

Por saber o que é ser alguém com uma faceta interior completamente diferente do exterior, ele passa a escutar as histórias dos idosos com uma outra atenção, e a enxergar o lado interior das pessoas com quem convive e se relaciona. Entre esses detalhes da trama e a transformação física de Benjamin e do mundo que o rodeia, o filme apresenta uma sensibilidade tocante. E tá ok, eu assumo: chorei horrores com o final.

Momento ~ lição de vida ~ da história

Passamos nossos dias buscando por coisas materiais que dizem que precisamos, assim como acreditamos que, no final, tudo dará certo. Mas que final? Aquele em que todos nós deixamos esse mundo? Aquele, lá longe, que nunca sabemos explicar direito onde está?

O que essa história me ensinou, com a escrita direta de Fitzgerald e, ainda mais, com a ajudinha poética dada pelo filme, foi que o valioso mesmo é o agora. O presente. O que temos nesse exato momento. Right now.

Sim, meus amores, isso parece meio piégas. Mas fazer o quê?

A visão de um senhor idoso que rejuvenesce nos faz pensar em coisas muito boas à princípio: vitalidade, pílulas de remédios indo para o lixo, vida amorosa bombando, não ter rugas. Mas como Benjamin vai acabar entendendo, isso também acarreta em ver todas as pessoas que se ama irem embora, não poder manter um relacionamento (pois o conjuge está indo no seu caminho contrário de formação corporal e cognitiva) e, é claro, não ver seus filhos crescerem.

Obviamente, parece impossível encontrar um Benjamin Button por aí, mas essa é uma ficção para ser assimilada como alegoria da realidade. Não vamos rejuvenescer com a idade, mas podemos perder a consciência da nossa vida por relegá-la ao segundo plano. Podemos deixar de viver momentos preciosos assim como o personagem interpretado por Brad Pitt, sendo forçados a isso ou simplesmente deixando acontecer. Podemos nos sentir deslocados no meio da multidão, não apenas porque o mundo não aceita nossas limitações e diferenças físicas, mas porque nos sentimos desiguais.

Ao final dessa leitura, não pude deixar de me questionar a respeito de algumas coisas.

  • E se a ordem natural das coisas fosse diferente da que conhecemos? O que mudaria em nossa vida?
  • E se alguém que amamos viesse ao mundo de um jeito diferente do qual esperamos? Abandonaríamos ele ou ela por ser diferente dos padrões?
  • E se parássemos de dar tanto valor ao que os outros vão pensar? Quantas coisas faríamos diferente?

O apelo dessa história me parece não apenas útil, mas atemporal.

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.