Boa Noite e uma introdução à temas polêmicos

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
8 min readJan 7, 2018

Sabe aquele livro fofinho, com uma trama romântica ambientada na faculdade, onde tudo é lindo e com um clima mágico do início da vida adulta?

Bem, esse não é um livro assim. Ou não era para ser.

Obra publicada pelo selo Galera, da editora Record, em 2016

Boa Noite é a primeira obra solo da booktuber Pam Gonçalves, mesma co-autora do livro de contos “O Amor nos Tempos de Likes” e autora do lançamento “Uma História de Verão”.

Vou confessar uma coisinha pra vocês: não curto muito essas histórias fofinhas de faculdade, e acabo me interessando bem mais por aquelas obras que lascam com o nosso coração ou deixam a gente em choque por 5 dias, sabem?! Dessa forma, as minhas expectativas eram bem baixas quando comecei essa leitura. E a falta de expectativas, na vida de um leitor, é uma benção.

O plot do livro é bem tranquilo: Alina é uma jovem que está indo morar em uma república, para cursar o primeiro semestre de Engenharia da Computação. Ela é de Laguna (Santa Catarina) e precisa ir morar na cidade de Pedra Azul para estudar. Mas ela não apenas precisa. Ela quer. Assim como quer se reinventar, deixar a fama de certinha/CDF para trás e se sentir dona de uma personalidade forte. Dona da própria vida. Uma adulta cheia de experiências.

Alina vai morar na República das Loucuras (confesso, achei esse nome meio vergonha alheia. Desculpaê!) e lá começa a fazer novas amizades. Manu, a líder da república, é estudante de Comunicação e faz o estilo amigona e mãe de todos, o que me cativou um pouquinho na personagem. Talita e Bernardo estudam Administração e são namorados, e apesar dele não morar na pensão, vive por lá, pois os dois formam aquele casal que constrange meio mundo por “se pegar” em qualquer canto. Mas, tá bem, eles são queridos de qualquer jeito. Gustavo é aquele cara gente fina, bonito, perfeito e meio óbvio, mas que no mundo real parece não ser fácil de encontrar. Ele estuda Medicina e é o filho do dono do prédio onde funciona a república, mas não curte ter o controle de tudo, e deixa isso para Manu.

O livro se passa no período de seis meses, que é o primeiro semestre de Alina na universidade e em Pedra Azul. Ele começa mostrando a chegada da protagonista na república, e é narrado por ela em primeira pessoa. Com essa escolha narrativa, a Pam acertou em cheio ao nos colocar como leitores do que se assemelha muito a um diário contado pela estudante. A primeira pessoa nos tira o foco do restante da história, mas nos aproxima do ponto de vista de Alina ao ponto de entendermos o que ela sente, e sentirmos vontade de dar um sacode nela, de vez em quando.

Confesso, e não me espanquem por isso, que eu quis mandar a Alina se catar em alguns momentos. Ela me pareceu uma guria muito “levada pela maré”, no sentido de não ter opinião própria. Entendo que ela esteja em busca de novas experiências, mas em alguns momentos ela simplesmente faz o que mandam ela fazer. Confesso que não consegui me conectar tanto com ela por causa disso. Porém, da metade para o final do livro, ela ganhou mais a minha atenção, por se dar conta de que precisava amadurecer como parte da mudança que tanto procurava.

Como comentei nas redes sociais, eu estava em uma forte ressaca literária há pouco mais de um mês, e Boa Noite conseguiu me fisgar para uma leitura novamente. Isso se deve, em grande parte, à escrita da Pam que é muito simples e fluida. Ela fala como os adolescentes falam agora, em 2017. Na maioria dos momentos eu senti que o jeito de conversar, as gírias utilizadas e os comportamentos dos personagens, seriam os mesmos dos meus colegas da faculdade e do colégio.

Ela também consegue colocar algumas pontinhas de mistério no ar. Isso é bom e vai nos mantendo mais imersos na trama. Acabei me dando conta do que seria um desses mistérios, então somente o outro me trouxe aquela sensação de surpresa. De qualquer forma, para quem não se der conta antes, pode gostar ainda mais dessa característica na escrita da autora.

A parte mais interessante e real, que nos dá um certo tapa na consciência, é quando percebemos o olhar dos colegas para Alina na sala de aula. Como já mencionei, ela estuda Engenharia da Computação. Você deve ter uma ideia da diferença gritante na proporção de guris e gurias nas turmas de um curso desse, não é mesmo?! Em dado momento, ela cita que são 46 homens e 4 mulheres, incluindo ela própria. Desses 46, poucos guris tratam Alina e as 3 colegas (Luana, Sabrina e Júlia) com respeito ou cordialidade. As piadas começam na obviedade para alcançarem o mais baixo nível da degradação.

“Não pensei que fosse ligar para proporção homens x mulheres na sala de aula — quarenta e seis garotos e quatro garotas. Afinal, somos todos jovens adultos civilizados, que não estão mais no ensino fundamental para insistir em piadinhas sem graça sobre mulheres não terem direito de estarem ali. O pior é que até mesmo os professores estimulam o comportamento!”

No momento em que fechei o livro e, refletindo, me considerei “sortuda” por ter maioria de gurias na turma de Jornalismo da faculdade (quando estudava), me dei conta do quanto isso é ridículo. E do quanto isso precisa ser abordado na literatura para exercitar a nossa empatia.

Não há enrolações na escrita da Pam, e logo no início da leitura eu jurei que essa seria uma decisão 100% acertada. Porém, a sensação que foi crescendo em mim, conforme a leitura avançava, foi de que essa característica “direta ao ponto” acabou deixando a história rasa demais. Em momentos onde a personalidade e os sentimentos dos personagens poderiam ser mais explorados, percebemos alguns detalhes pairando no ar, e esvanecendo no parágrafo seguinte.

Ainda falando da abordagem rasteira sobre os temas, estes são, principalmente, a violência contra as mulheres em ambiente universitário e a sororidade entre as estudantes. Alina e as três colegas se unem, antes de qualquer outra razão, por pura sororidade. São quatro mulheres servindo de escudo uma à outra, contra 46 possíveis agressores. Sem incluir os professores nessa contagem.

O relacionamento de Alina com os colegas da república é bem agradável, mas não me afeiçoei a nenhum personagem de forma arrebatadora. Gustavo é um guri muito bom, e isso nem é spoiler de dizer, mas mesmo assim me pareceu bem ok. Manu é uma personagem que, para mim, roubou a cena no livro: real, cheia de nuances e um pouco mais aprofundada. Em alguns momentos, acabei achando graça de Alina porque a forma como ela fala de si mesma, com certa raiva e ironia de adolescente, me lembrou da personagem Mia Thermópolis, da série O Diário da Princesa de Meg Cabot.

A Pam consegue descrever os lugares e personagens de forma prática: dá os detalhes básicos para que a narrativa siga em frente. O que ainda será necessário saber, a personagem Alina vai descobrindo e nos contando com o passar das páginas. Com relação à descrição dos locais, me apaixonei pela maneira rápida e precisa com que ela descreveu os cômodos da república e as casas por onde passava. A imagem ficou clara na minha mente, e se fechar os olhos, consigo me imaginar na República das Loucuras (mas esse nome não dá gente…não dá!).

O problema mais básico de Boa Noite é perceptível ao enumerar os temas abordados por ele. Citando só os que eu me lembro de ter percebido em alguma cena, são: abuso sexual e verbal de estudantes, uso de drogas com ou sem coerção, intolerância por homofobia, racismo, sentimento de posse da mulher em um relacionamento abusivo, corrupção de órgãos privados e problemas familiares por causa do bendito padrão de beleza. Talvez eu esteja me esquecendo de algum tema ainda, mas enfim.

Não há o menor problema em abordar esses temas no livro. Aliás, eu adoro que eles sejam abordados, e foi exatamente por saber que ele falava sobre temas pesados e “tabus” que eu me interessei tanto em lê-lo. O probleminha é: são muitos temas pouco aprofundados. São temas sérios, que pedem por um conteúdo que “sacuda” o leitor, e são vistos em uma cena. Uma ceninha só.

Como li na resenha de um blog há algum tempo, Boa Noite poderia ser uma ferramenta literária de combate ao estupro e assédio de gurias em ambiente escolar (e fora dele). Mesmo que a ideia do plot tenha sido muito boa, parece que vários outros temas de debate do atual momento foram incluídos ao mesmo tempo, um a cada capítulo e com duração de uma página, sem uma decisão sobre qual das problemáticas merecia foco exclusivo.

Porém, se o livro não é 100% indicado para quem quer se aprofundar no tema da agressão e estupro de mulheres, ele não tira a oportunidade da autora Pam Gonçalves evoluir em sua escrita. É sempre bom ressaltar que eu não tenho conhecimentos técnicos em escrita e literatura, mas a opinião que compartilho aqui é de uma leitora. Falo aqui sobre a minha experiência com a leitura e sobre os aspectos positivos ou negativos do livro e também do autor. Acredito que, no início de uma carreira em qualquer área, você passa por um período de amadurecimento até que se torne o profissional que deseja ser. Para um escritor, funciona do mesmo jeito, e é super normal que, na primeira obra solo, a Pam não beire a perfeição. Ela pode (e deve) evoluir nos próximos livros, e mesmo em Boa Noite a escrita dela já prende e ampara o leitor, uma das coisas mais complicadas para se conseguir. Daqui para frente, ela tem muito potencial para mostrar.

Imaginando um cenário em que o leitor ainda não tenha lido obras mais pesadas, e esteja em busca de um primeiro contato com temas complexos, a obra é indicadíssima. Nesse caso, o que citei acima como defeitos se tornam características de fácil compreensão para jovens e adolescentes, auxiliando na aproximação gradual destes com o cenário delicado que é uma guria temendo seus próprios colegas de faculdade. Esse público tem a oportunidade de pensar sobre o tema com clareza e propor discussões sobre ele, por meio dos personagens e das cenas apresentadas por Pam Gonçalves. A literatura é um forte instrumento quando se trata de pensar a sociedade em que vivemos de forma crítica e, nesse sentido, Boa Noite já abre algumas portinhas nessa reflexão.

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.