Devaneios após a primeira leitura de Persuasão

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
8 min readJan 8, 2018

Não é muito fácil dizer o que senti com essa leitura. Persuasão me parece ser, em resumo, uma mistura de escrita admirável e personagens ótimos com uma narrativa morna, sem acontecimentos especiais ou “plot twists”. Obviamente, já destaco que sou uma leitora de primeira viagem no que se refere à Jane Austen, e talvez eu tenha feito uma escolha equivocada para esse primeiro contato com a autora.

Edição publicada pela editora Landmark, em 2012

Em Persuasão, Jane Austen nos conta a história de Anne Elliot, filha de um baronete chamado Sir Walter Elliot. Mesmo nem sendo tão nobre assim, Sir Walter faz o que for preciso para ser respeitado como um rico de alta classe, e determina na fortuna e na posição social o seu grau de educação e respeito por qualquer pessoa. Anne é a filha do meio dentre três irmãs, sendo Mary a irmã mais nova e Elizabeth a mais velha. A mãe morreu enquanto elas eram crianças novinhas, mas antes pediu a uma amiga chegada da família, chamada de Lady Russel, que cuidasse das meninas, por temer que Sir Walter não desse a educação e carinho necessários. Essa mãe sabia das coisas hein…

Como já se pode imaginar, no século 19 existiam duas formas principais de ascender socialmente: nascer em uma família de “bom nome” e/ou cheia de fortunas e posses, ou casar-se com um cônjuge que obtivesse as fortunas, posses e o tal nome respeitável. Quando uma pessoa não tinha a primeira opção e não conseguia realizar a segunda, seu destino era incerto, obscuro e digno de pena. Anne Elliot sabia disso, e a falta de esperança do pai em que ela conseguisse algum casamento rentável para a família era visível. A filha preferida de Sir Walter é Elizabeth, e isso é exposto nas entrelinhas do livro todo. Ela é a filha que pensa como o pai, é fútil e influenciável pela nobreza como ele também é, e busca pela mesma vida de elegância e pose que o pai almeja. Jane Austen nos mostra a diferença de tratamento pela forma como as irmãs são referidas na obra toda: Elizabeth como Senhorita Elliot, enquanto Anne é chamada apenas de Anne mesmo, como se não fosse parte da família.

E Anne é, realmente, uma peça fora do dominó da família Elliot. Mary, já casada, continua admirando-se com qualquer forma de nobreza que enxergue pelo caminho, e Elizabeth é pressionada a casar-se e mesmo assim se mantém ao lado do pai, concordando com suas ações. Anne, porém, tem pensamento próprio, convicções mais firmes e uma personalidade que não se abala com a rejeição que emana de Sir Walter. Ela sabe que é irrelevante para a família, e apenas aceita isso, prezando pela presença de quem realmente a ama: Lady Russel e…vá lá, Mary e a família de seu marido, os Musgrove.

“Mas Anne, cujo caráter elegante e trato gentil teriam lhe garantido um lugar de destaque em qualquer grupo dotado de real discernimento, não era ninguém nem aos olhos do pai, nem aos da irmã; sua palavra nada valia, seu papel era ceder sempre — ela era apenas Anne”.

A narrativa começa em meio à constatação de que a família Elliot anda meio mal de suas fortunas. Estão ficando com as economias escassas e precisarão, por mais que seja assustador, suspender boa parte de seus luxos. Frente à dificuldade financeira, a única escolha dos Elliot é se mudar para Bath, onde ainda terão condições de se manter como nobres, mesmo longe de sua mansão Kellynch Hall, em Somersetshire. Assim, a família passa a manter uma boa pose, mesmo que o dinheiro propriamente dito não seja condizente com a empáfia de Sir Walter.

Jane Austen utiliza a terceira pessoa para o narrador, e apesar dele ser onisciente, acaba focando mais nos sentimentos e reações de Anne. A narrativa volta ao passado em alguns momentos, para ambientar o leitor à vida dos personagens.

Entre o momento em que Anne conhece o capitão Frederick Wentworth e a separação deles, a história se passa rapidamente. Em menos de um capítulo, vemos Anne e Frederick se conhecendo e ficando juntos, a proposta de casamento e a felicidade deles, toda a torcida contra por parte dos Elliot e de Lady Russel, e a forte persuasão destes que força Anne a renunciar ao casamento com Wentworth. E sim, toda essa campanha contra Frederick se deu porque ele é aquele tipo de cara sonhador, incrível, mas sem um bom sobrenome e sem expectativa de ascender financeiramente. De uma forma que considerei até meio abrupta, vemos a história avançar em 7 anos. E sério, isso nem é spoiler.

Sete anos depois, em meados de 1816, representa muito tempo. Enquanto as regras de etiqueta social não mudam, o ar juvenil e a aura de beleza de uma jovem que ainda não casou parecem se esvair a cada minuto. Da mesma forma que o exterior, o psicológico das mulheres parece ter amadurecido. Anne, agora com seus 27/28 anos, não consegue esquecer Frederick e ao mesmo tempo não consegue encontrar um outro par. Diferente de outras mulheres de sua época, ela agora tomou a doida decisão de se casar com alguém que realmente ame. E em uma atitude mais “vida loka” ainda, ela não parece se importar muito com o que os parentes comentem sobre ela. Anne me pareceu, desde o início da leitura, aquele tipo de pessoa que podemos classificar como “pertencente ao deboísmo”. Diria mais: Jane Austen já conseguia mostrar o Girl Power presente na personagem, mesmo que o termo estivesse longe de existir.

A partir daí, a história parece bastante verossímil à vida, pois os acontecimentos que se seguem não têm nada de muito inesperado, dramático ou mirabolante. Os atuais moradores da casa de Kellynch Hall são parentes de Wentworth, e este é admirado pelo cunhado de Anne. Em vários momentos, os círculos sociais de ambos os colocam em uma proximidade embaraçosa. Só para mencionar: agora, sete anos depois, Frederick finalmente tem as posses e o sucesso profissional necessários para “pertencer a sociedade”. Acompanhamos os sentimentos de Anne, que entra em um conflito entre o sentimento de afeto que ainda sente por Frederick e a vontade de manter-se distante dele, por todo o embaraço e tristeza que ela causou ao romper com o capitão.

Mesmo que a escrita tenha uma beleza digna daquelas obras que queremos ler em voz alta, e mesmo que a trama “morna” busque refletir verossimilhança com a vida (estou aqui levantando hipóteses, humildemente, ok?), a realidade é que esse primeiro contato com Jane Austen foi um pouco mais enfadonho do que pensei que seria.

No início do livro, a trama engrenou muito rápido, os acontecimentos mais marcantes tomaram menos de um capítulo e parece que todo o resto foi marcado por cenas comuns, cotidianas, que me pareceram apenas retardar o final. Além disso, muitos parágrafos utilizavam pouca pontuação e era preciso várias releituras para compreender a quê eles se referiam. Aliás, para quem não está acostumado, eu indicaria anotar os nomes dos vários personagens que vão surgindo conforme a história avança. Sim, são muitos. E sim, todos são importantes e recorrentes.

Um ponto que preciso destacar é que, mesmo que a escrita de Jane Austen apresente alguns floreios, ainda pode ser considerada fluida quando pensamos na época em que Persuasão foi escrito. No século 19, a formalidade e as figuras de linguagem eram artifícios extremamente comuns na literatura. Austen foi na contramão dessa tendência, utilizando linguagem coloquial em seus textos, e retratando sempre a Inglaterra rural pela visão de uma mulher.

É perceptível, também, a influência da própria vida da autora na personagem de Anne. Ambas tiveram a oportunidade de se casar e declinaram, e ambas parecem prezar por valores que o resto da sociedade esquece, tais como o amor e a liberdade feminina da obrigação do casamento. Austen morreu sem se casar, e o preconceito dos parentes em relação à Anne talvez tenha sido o mesmo preconceito que a escritora viveu, por “ficar para a tia”.

Uma característica interessante que senti na escrita de Austen foi a ironia em prol da crítica à sociedade de sua época. Tal ironia é sutil, aparece algumas vezes, e aproveita cada aparição para expor os costumes arrogantes e aprisionadores da alta (e média) classe social da Inglaterra. Austen fala de tais costumes na voz das personagens, ou ainda, como uma narradora que parece concordar com os comportamentos, mas manifesta tal apoio de forma debochada.

“Acho que nenhuma jovem tem o direito de fazer uma escolha que possa ser desagradável e inconveniente para a parte principal de sua família, proporcionando relações indesejáveis aos que não estão habituados a elas.”

- pg. 44

São perceptíveis várias críticas ao comportamento egoísta e fútil das classes sociais da época, e vários personagens demonstram atitudes e pensamentos nesse estilo: desde o interesse descarado em casar as mulheres da família com homens ricos antes que elas “percam o prazo de validade”, até o interesse financeiro entre parentes e o carinho forçado com pessoas de alto nível de poder aristocrático, em busca de influência nos círculos sociais.

Observando bem, o “mocinho” Frederick Wentworth parece até expor uma superioridade do homem que vence na vida em prol de sua própria dedicação, sem depender de nomes ou heranças. Posso estar “viajando” demais, mas foi isso que senti durante a leitura.

O ensinamento principal que se pode pegar nessa narrativa, e esse vale para qualquer época da história, é o poder de decisão que precisamos ter sobre nós mesmos. No século 19, Anne Elliot não pôde se casar quando sabia que queria, e levou anos se corroendo por dentro ao pensar nas alegrias que havia deixado de viver. Hoje, a situação é diferente — graças a Deus! — mas ainda podemos levar essa máxima para a vida. Somos uma espécie de colcha de retalhos, onde cada retalho é uma experiência, conhecimento ou emoção que decidimos ter. Hoje as mulheres não precisam exclusivamente do casamento para alcançar a plenitude de suas vidas. Mas e quando conseguimos identificar o que nos faz plenos, nós corremos atrás disso? Buscamos pelo que tanto desejamos?

Ainda sou uma aprendiz de bookaholic, li apenas uma pequena parte de tudo que pretendo ler na vida, mas já me sinto feliz de ter conhecido a escrita de Jane Austen.

Foi meio enfadonho? Foi. Confesso.

Mas sou uma leiga no assunto, e quis transmitir pra vocês o que eu senti durante a primeira leitura de Persuasão, assim como as reflexões que a obra provocou em mim. Austen se revelou uma daquelas autoras cujos livros são destinados a várias releituras, em vários momentos da vida (e da maturidade) dos leitores.

Persuasão foi a última obra escrita por ela, já acometida pela doença que a levou à morte. Muitos dizem que essa foi sua obra mais séria e madura.

Assim como ela escreveu essa obra no auge de sua maturidade, vou esperar alguns anos até que a minha maturidade literária esteja um pouquinho mais avançada, e com certeza vou reler esse livro. Para qualquer pessoa que também tenha achado Persuasão meio chato, eu indico que faça o mesmo, porque empoderamento feminino e crítica social em pleno século 19, não foram coisas fáceis de escrever.

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.