O Grande Gatsby e a submissão às aparências

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
8 min readFeb 5, 2022

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Gostaria de dizer, primeiramente, que este texto contém spoilers. Não posso evitar contar alguns detalhes que fizeram a diferença na minha compreensão desta história e no que mais me tocou nela. Aviso dado, começo por ambientar aqueles que pouco ouviram falar nessa obra, que é vista como clássica da literatura estadunidense e obra-prima de seu autor, Francis Scott Fitzgerald.

A adaptação mais recente da obra: filme lançado em 2013, com direção de Baz Luhrmann. Outros filmes foram lançados com base na obra original, a qual me refiro nesse post — o livro escrito por F. Scott Fitzgerald.

A priori, O Grande Gatsby nos conta a complicada história de amor entre Jay Gatsby e Daisy Buchanan nos anos 20 do século passado, quando os Estados Unidos viviam o período pós-Primeira Guerra Mundial e o luxo, o jazz e a estética art déco viviam seu auge na alta sociedade. Em meio ao triângulo amoroso entre Gatsby, Daisy e o atual marido dela, Tom Buchanan, a narrativa nos apresenta a um ambiente de intrigas, traições, conflitos, frivolidade e falsa cordialidade. Toda a narrativa fica a cargo de Nick Carraway, primo de Daisy, que se muda para uma casa humilde (para os padrões do local) em West Egg e busca se estabelecer no concorrido mercado de ações de uma Nova Iorque glamourosa e em ascensão financeira. Afirmo que esta é a sinopse da obra “a priori”, pois dizer que o que une Gatsby a Daisy é amor ou paixão seria muito raso. A complexidade dos personagens nessa obra vai muito além de um simples amor desinteressado.

Jay Gatsby: nem vilão e nem mocinho, muito pelo contrário.

Jay Gatsby é o modelo do sonho americano que se torna realidade, um self-made man que nasce pobre e atinge a riqueza pelas próprias mãos — de formas escusas, que ninguém compreende mas que todos admiram da mesma forma, pois os fins justificam os meios quando se fala de conquistar dinheiro. Novo rico, Gatsby promove festas enormes na própria mansão, das quais mal participa e desconhece a maior parte dos frequentadores. Seu objetivo com as celebrações, porém, é muito mais simples do que o de ostentar a opulência da casa ou os comes e bebes finíssimos. Ele sonha em atrair Daisy Buchanan à sua casa, para que possa ganhar ao menos um minuto de sua atenção. Daisy, por sua vez, é uma garota que nasce em meio à riqueza e se torna uma bela e elegante melindrosa, desafiando as convenções de sua época ao ter vários casos amorosos, fumar e ousar se vestir com roupas curtas, escapando do que se conhecia como “belo, recatado e do lar” na década de 1920. Inteligente e desafiadora, ela se esconde sob uma carapaça de “bela e boba” para evitar o máximo possível de sofrimentos. Num período em que as mulheres eram instigadas a encontrarem estabilidade pessoal e financeira ao lado de um companheiro masculino, Daisy tem a coragem de tentar escolher um parceiro pelo qual nutra algum sentimento mais profundo, mesmo sentindo a pressão da sociedade para que tal escolha ocorra o quanto antes. Ela se apaixona por Gatsby anos antes do período abarcado no livro, ainda durante a Primeira Guerra, quando o conhece enquanto ele servia ao exército dos Estados Unidos. O casal é impossibilitado de permanecer junto por causa da guerra e, é claro, pela condição financeira de Gatsby, que não era abastado para bancar a garota e, portanto, para se relacionar formalmente com ela. Eles prometem se reencontrar após a guerra, mas os anos passam e Daisy enfrenta a forte pressão para que encontre um marido rico e forme uma família; ela, portanto, não consegue esperar por Jay, casando-se com Tom Buchanan, um jogador de futebol americano de família rica e respeitada na região.

Daisy Buchanan: uma melindrosa forçada a se acomodar.

Ao optar por um casamento que satisfaça as aparências, Daisy sucumbe a um relacionamento que hoje se caracterizaria, no mínimo, como tóxico: Tom a trai constantemente (enquanto defende a moral da família nobre e tradicional, é claro), e a trata com desprezo e desinteresse, tomando-a como propriedade adquirida por saber que ela não pode ir a lugar algum sem a estabilidade financeira que ele provê. Jay, por outro lado, a enxerga como um prêmio a ser conquistado, agora que finalmente adquiriu o dinheiro e as posses necessárias para um homem de sua idade. Ele nutre por Daisy uma admiração que beira a utopia, enxergando nela mais do que uma mulher: o símbolo da riqueza, da elegância e da perfeição. Ela é, para ele, aquele item de colecionador feito em quantidade limitada, pelo qual ele se dispõe a pagar o preço necessário até que consiga adquirir. O preço, nesse caso, são as enormes festas e a opulência de sua mansão, localizada de frente para a casa dos Buchanan, na península ao lado. Aliás, com o desenvolvimento da história percebemos cada vez mais essa questão: Gatsby acredita amar Daisy, mas o que ele realmente demonstra amar é a sensação de riqueza e poder que emana dela. Em certo ponto do romance, ele até mesmo diz a Nick que a voz suave dela o encanta e “é cheia de dinheiro”.

Gatsby, no que diz respeito aos vários sentimentos que nutre por Daisy, é um personagem bastante complexo, aliás. Ele cresceu em uma família pobre, ainda com o nome “de nascença” James Gatz, e sempre almejou ser rico e poderoso. Para isso fez tudo o que podia, inclusive abandonou os pais e mudou de nome, recebendo a preciosa ajuda de um mentor bem sucedido e conquistando sua riqueza por meios ilegais, tais como o contrabando de bebidas em pleno período da Lei Seca nos Estados Unidos. Ao se apaixonar por Daisy, é interessante notar que ele não descreve traços da personalidade dela que o agradam; ele menciona majoritariamente as condições de vida dela, a casa em que ela vivia com a família na juventude, a elegância que ela possuía e como ele se sentia ao lado dela. Resta um questionamento, portanto, sobre se ele ama a pessoa dela ou se ama, na verdade, a aristocracia que ela o transmite. Além do mais, na ânsia por trazer o romance que eles viveram no passado à tona, ele não questiona Daisy em nenhum momento sobre o que realmente a faria feliz: se continuar casada com Tom ou abandonar tudo para ficar com ele. Jay simplesmente assegura que é isso que deve ser feito, como se um relacionamento precisasse apenas de um dos cônjuges plenamente satisfeitos. A meu ver, isso não parece um amor muito saudável.

Nesse complicado triângulo amoroso, Nick Carraway possui, para o leitor, um papel interessante. Ele se propõe a ser um narrador quase externo, na medida em que é próximo aos outros personagens e, ainda assim, é observador o suficiente para se manter a distância. A realidade, porém, é que ele claramente escolhe um lado nas discussões: o de Gatsby. Mesmo sendo primo de Daisy, ele nos transmite muito mais o respeito que possui por Jay, ao considerá-lo como “muito melhor do que todos eles [os Buchanan] juntos”. Assim, Nick aparece como um fã devotado de Gatsby, nos apresentando a própria prima como interesseira, fútil, fria e ingrata aos esforços de Jay em retirá-la do relacionamento claramente infeliz que ela mantém com Tom. Talvez Nick se identifique de tal forma com Gatsby porque ele mesmo, no momento em que nos narra a história, também busca seu “lugar ao sol” entre os ricos da poderosa América, assim como Jay havia buscado anos antes.

Francis Scott Fitzgerald e a esposa, Zelda Sayre. | Imagem: Alamy/Getty

O distanciamento de Nick ao narrar a história pode ser uma característica adquirida do próprio autor do livro, Francis Scott Fitzgerald. O Grande Gatsby foi um livro contemporâneo à época em que se passa; ou seja, foi lançado em 1925 e fala, justamente, sobre a década de 1920. Fitzgerald viveu a era do jazz em sua plenitude ao lado da esposa, Zelda Sayre. Vivenciou a riqueza, a ostentação de posses e a infinidade de festas regadas a bebidas caríssimas e sorrisos amarelos. Foi, ele mesmo, o protagonista de seu próprio romance complicado: o amor e as brigas entre ele e Zelda eram constantes; a convivência entre o casal era rodeada por conflitos, traições e imaturidade de ambos os lados. Que Zelda sofria mais com o relacionamento é algo fácil de deduzir, basta que pensemos no quanto a História foi tirana com as mulheres, de forma geral. Ainda assim, a característica trágica e complexa do romance entre Jay e Daisy muito se assemelha ao próprio romance do autor com Zelda (inclusive a maneira como os personagens primeiramente se conhecem). O que é significativo de perceber é o quanto Fitzgerald conseguiu observar, de forma pretensamente externa e totalmente crítica, o ambiente em que ele próprio era mergulhado até o pescoço, trazendo-o em sua escrita sem perdoar suas questões mais problemáticas. Mesmo que ele fosse parte da futilidade e da decadência moral que observava, ele não se absteve de criticá-la e questioná-la; esse é, para mim, um dos maiores trunfos de sua obra.

Assim como o relacionamento entre Scott e Zelda, o triângulo amoroso entre Jay, Daisy e Tom carrega o sofrimento e a tragédia de toda a sociedade nova-iorquina de 1920: em meio à busca desenfreada por dinheiro e posses, o sentimento se perde sob um pesado manto de interesse, codependência e frugalidade. Daisy opta pela segurança das aparências no relacionamento com Tom; este a domina pela aparência de homem responsável e cheio de moral, enquanto a trai em orgias que mal faz questão de esconder. Já Gatsby acaba tragicamente morto por proteger a quem amava: Daisy, a princípio. Mas eu iria mais a fundo e diria que ele morre, sim, por aquilo que amava: o sonho americano, o ideal de felicidade comprada com riquezas que Daisy representava para ele. Os três personagens, e mesmo os secundários não mencionados aqui, possuem todos uma característica em comum. Talvez, esta, uma característica da vida real da época, tão profundamente vivida e descrita por Fitzgerald: a submissão às aparências e o consequente sacrifício de sua consciência às formas rápidas de felicidade passageira, proporcionadas pelo dinheiro e pelo poder.

Imagens do filme: Divulgação/Warner Bros. Pictures

Referências

FITZGERALD, Francis Scott. O Grande Gatsby. Tradução de Humberto Guedes. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

GILVARRY, Alex. Quando eu era jovem e mais vulnerável. Tradução de Daniel Abrão. In: FITZGERALD, Francis Scott. O Grande Gatsby. São Paulo: Tordesilhas, 2013.

MELCHÍADES, Sabrina. Resenha: O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald. In: CAMACHO, Gabriel. Beco Literário. [S. l.], 4 fev. 2016. Disponível em: https://becoliterario.com/resenha-o-grande-gatsby-f-scott-fitzgerald/. Acesso em: 18 out. 2020.

MENEGOTTO, Fernanda. O Grande Gatsby e a tragédia pessoal de Daisy Buchanan. In: Valkirias. [S. l.], 18 jan. 2017. Disponível em: https://valkirias.com.br/daisy-buchanan-tragedia/. Acesso em: 18 out. 2020.

PERSON JR., Leland S. “Herstory” and Daisy Buchanan. American Literature, Durham, v. 50, n. 2, p. 250–257, maio 1978. Disponível em: https://mmagsig11.files.wordpress.com/2009/04/gatsby-herstory-and-daisy1.pdf. Acesso em: 18 out. 2020.

THE GREAT GATSBY. In: WIKIPEDIA: the free enciclopedia. [San Francisco, CA: Wikimedia Foundation, 2020]. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Great_Gatsby. Acesso em: 18 out. 2020.

Texto escrito originalmente para a cadeira de Leitura e Produção Textual em Língua Portuguesa II, do bacharelado em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.