Os brasileiros e a literatura

A população brasileira lê, em media, pouco mais de 4 livros por ano, e não costuma frequentar bibliotecas ou comprar livros. Em meio as distrações e à falta de interesse, a internet é uma das alternativas para cativar novos leitores no país.

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
10 min readJan 4, 2018

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Já dizia Carlos Drummond de Andrade que “a leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede”. O Brasil carrega a fama de ser um país de poucos leitores, onde a literatura não capta o interesse da população. Basta uma pesquisa rápida na Internet e vários textos trazem esse assunto à tona, utilizando como mote principal as mesmas dúvidas: porque os brasileiros não conseguem manter um hábito de leitura? O Brasil é um país sem leitores ou tal afirmativa é exagerada?

Mesmo que essa fama atrelada ao país pareça ser incentivada por pura especulação infundada, há um estudo que pode auxiliar no esclarecimento do assunto de forma percentual.

A Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil já está em sua quarta edição e é realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro (IPL). De acordo com Zoara Failla, coordenadora do estudo e gerente executiva do IPL, a pesquisa “é uma grande ferramenta para não só estimular como também orientar políticas de livro e leitura”, e serve como um raio-x do comportamento dos brasileiros em relação a qualquer tipo de literatura.

Imagem: Francelle Machado

A última edição do estudo, divulgada em março de 2016, apontou que 56% da população brasileira se considera leitor, tendo lido uma média de 4,96 livros por ano (sendo, destes, 2,43 inteiros). A pesquisa considera como leitor aquele que leu, seja inteiro ou apenas em parte, pelo menos um livro nos últimos três meses. Apesar de registrar um aumento de 6% na quantidade de leitores no país em relação à pesquisa anterior, realizada em 2011, o número ainda é pequeno, visto que a amostra de população entrevistada pela pesquisa (5,012 pessoas) representa 93% da população brasileira.

Ainda de acordo com os dados apurados pela pesquisa Retratos da Leitura, 30% dos entrevistados afirmaram nunca ter comprado um livro, e 66% declararam não frequentar bibliotecas. Zoara alerta, inclusive, para mais um ponto preocupante exposto pela pesquisa: “A cada edição [do estudo] diminui a proporção dos que afirmam não ter nenhuma dificuldade para ler, enquanto ganham destaque motivos como a falta de paciência e de concentração e os problemas de visão”.

A falta de tempo (43%), a falta de paciência (9%) e não gostar de ler (5%) são alguns dos motivos apresentados pelos leitores para não terem lido mais nos últimos meses.

Neste cenário, o que afasta os brasileiros de adquirirem gosto pela leitura? Para Tito Montenegro, sócio fundador da editora Arquipélago Editorial, são inúmeros os fatores: “No Brasil, ainda temos uma sociedade pouco letrada, então o gosto pela leitura não vem de casa. Nem mesmo nas classes altas. A escola acaba sendo o local, por excelência, de um maior contato com os livros. Mas, quando os jovens saem da escola, o contato volta a diminuir. Além disso, mais recentemente, o livro e a leitura disputam o tempo das pessoas com um grande número de opções, como televisão, computador, vídeo game. É uma equação complexa e de difícil resolução”.

A opinião de Montenegro entra em consonância com a pesquisa promovida pelo Instituto Pró-Livro, que demonstra a preferência das pessoas em utilizar seu tempo livre em atividades como assistir a televisão (73%), acessar o WhatsApp (43%) e outras redes sociais (35%) ou, ainda, utilizar a Internet de modo geral (47%). Ler livros físicos ou digitais em suas horas de lazer corresponde a apenas 24% da preferência da população. Para Cristiano Baldi, escritor e professor da Faculdade de Letras da PUCRS, o que distancia as pessoas da literatura é justamente o hábito. Ele sugere que a dificuldade em introduzir o hábito de ler se assemelha aos obstáculos que impedem as pessoas de seguir uma rotina de exercícios, onde a pior parte é o início. “Quando as pessoas são introduzidas à leitura e leem cinco ou seis livros bons num período relativamente curto, elas naturalmente se tornam leitores”, afirma. Tal como uma pessoa administra uma rotina de exercícios, Baldi acredita que “se ela aguentar os primeiros meses [como leitora], aquilo vira parte da vida e fica difícil viver sem”.

De acordo com o estudo intitulado NOP World Culture Score Index, realizado pelo instituto londrino NOP World com o propósito de medir os hábitos de mídia em âmbito mundial, o Brasil entra no ranking apenas como o 27º país que dedica algum tempo para a leitura. Enquanto a população da Índia, país classificado como o primeiro lugar, dedica uma média de 10 horas e 42 minutos para a leitura por semana, os brasileiros dedicam apenas cinco horas e 12 minutos na realização da mesma atividade. O Brasil encontra-se à frente, em tempo dedicado à leitura, apenas de Taiwan, Japão e Coréia.

Horas dedicadas à leitura por semana e por pessoa. Fonte: NOP World / Divulgação

Para que o Brasil eleve sua posição nesse ranking, faz-se necessário o fomento à leitura e ao conhecimento do potencial literário para a vida das pessoas. O que, nas palavras de Zoara Failla, é um trabalho árduo e que deve ser assumido por toda a sociedade. Ela explica que o domínio da leitura “constrói um cidadão pleno e consciente de seus direitos, mas viabiliza também o sucesso profissional e social, pois desenvolve a capacidade de se expressar”. É, também, transformadora, no sentido de aguçar o espírito crítico, a criatividade, a imaginação, a emoção e o conhecimento cultural nas pessoas.

“A leitura é ferramenta essencial para o acesso ao conhecimento, à cultura e à informação; e possibilita protagonismo nessa busca.” ZOARA FAILLA

Além da implementação de projetos e programas de incentivo à leitura, que são promovidos em todo o país por variados tipos de entidades (inclusive pelo próprio Instituto Pró-Livro), Tito Montenegro aponta um outro caminho para a aproximação das pessoas com os livros: “A solução, a meu ver, passaria pelo aparelhamento das bibliotecas públicas e escolares, com livros novos e bem escolhidos, em prédios bem planejados e atrativos”, afirma o editor. Zoara também aponta a revitalização das bibliotecas como um auxílio para a aproximação das pessoas, e acrescenta que os locais deveriam ter “um ambiente atraente e acolhedor, com opções de atividades culturais e de lazer — com programações atrativas, espaços confortáveis para ler, com grupos de leitura e horários acessíveis”. Ela explica que, desta maneira, poderia se contornar aquela imagem já enraizada da biblioteca como um ambiente projetado apenas para pesquisas escolares.

Investimento do governo em bibliotecas poderia aproximar população dos livros, mesmo após o período escolar.

Outra alternativa ainda mais abrangente é a introdução à literatura de forma lúdica, ainda no período da infância. O professor de letras Cristiano Baldi alerta que “é preciso fazer com que o livro chegue a todos, mas é preciso sobretudo que a ficção não seja vista como algo enfadonho”. A ideia de que ler é algo chato e monótono é o que pode afastar as crianças do hábito literário. Para que as crianças gostem de ler, Zoara acredita que o estímulo e a maior influência ainda vêm da família e da escola. “Pode-se constatar que o hábito de leitura, a escolaridade e a valorização da leitura pelos pais têm forte influência na construção do hábito de leitura dos filhos. Logo, a melhor forma de promover o hábito de leitura é o exemplo. Os pais, ao invés de apenas alertar da importância da leitura, precisam também criar o hábito e mostrar que a leitura também é entretenimento, não apenas obrigação”, declara Zoara.

“Leitores, quando crianças, tiveram mais experiências de leitura mediada por outras pessoas que os não leitores. Da mesma forma, quando adultos, promovem mais essa mesma experiência do que os não leitores.” ZOARA FAILLA

Para conquistar as novas gerações e fomentar o hábito de consumo da literatura, assim como para se manter no mercado, as editoras investem crescentemente em livros voltados para crianças e adolescentes. Acompanhando o sucesso e a influência dos YouTubers na vida dos jovens, as editoras driblam a crise financeira do país, enquanto preenchem as livrarias com títulos sobre as “novas celebridades”. Para Tito Montenegro, o simples contato das crianças e adolescentes com os livros já é importante, e a porta de entrada para um futuro gosto pela leitura pode vir por meio de qualquer livro, mesmo os que tratem de fenômenos de massa. “Se milhões de jovens se interessam por isso, por que não editar um livro? E um efeito colateral positivo é, paralelamente, trazer esse público para o mundo dos livros de uma maneira mais definitiva”, assegura.

Agregada, porém, com os livros de YouTubers, está uma discussão que ganha espaço na rede: afinal, livros desse tipo banalizam a literatura ou devem ser considerados como tal? Para Cristiano Baldi, contestações desse tipo promovem um tipo de discurso preconceituoso, o qual poderia atingir qualquer outro tipo de livro que fosse considerado best seller, sendo as obras dos YouTubers apenas uma das “vítimas” atuais. “É uma grande bobagem supor que um livro, por não se adequar a uma convenção literária — porque é disso que se trata a literatura dos críticos, apenas uma convenção literária: não a primeira, não a última, não a definitiva — estaria trabalhando contra a própria literatura”, acrescenta Baldi.

“Qualquer livro tem o potencial de ser uma porta para a leitura. Leitores mais jovens tomaram gosto, por exemplo, com Harry Potter. Ainda é cedo para dizer se os YouTubers terão esse efeito, mas espero que sim”.

TITO MONTENEGRO

A questão da banalização da literatura no Brasil, que divide opiniões, também foi levantada por alguns booktubers, como são chamados os YouTubers que tratam especificamente de literatura em seus canais. Enquanto Tatiana Feltrin enxerga um viés estritamente mercadológico — em detrimento da qualidade do conteúdo — na publicação desse tipo de livro, Isabella Lubrano e Iara Picolo ponderam a influência deles na inserção literária do público-alvo dos canais, formado em grande parte por adolescentes e jovens.

Para Ana Karina Silva, professora formada em letras e blogueira literária, não apenas os livros de Youtubers, mas todo tipo de livro que é considerado best seller acaba sofrendo algum preconceito, até mesmo por parte do sistema educacional brasileiro. Ela constata que, mesmo que as obras clássicas tenham importância para a literatura, é difícil que essas narrativas chamem a atenção dos estudantes, principalmente quando postas como obrigatórias. A professora acredita que o caminho é apostar em autores contemporâneos:

Imagem: Francelle Machado | Edição: Frederico Martins

“Apesar de as pessoas acharem que a literatura é banalizada através do best seller, eu acredito que, tu lendo um best seller, tu começa a ter gosto, começa a ficar curioso por determinadas leituras e, de repente, vai atrás de um clássico.”

ANA KARINA SILVA

Além do livro físico propriamente dito, Ana Karina aponta uma outra poderosa via de acesso à literatura: a Internet. Para a professora, os jovens são motivados a ler pela escola e pela família, mas a Internet também possui poder de influenciar e facilitar o conhecimento das pessoas sobre literatura, de forma mais atrativa para as novas gerações. A professora conta que alguns de seus alunos, ao descobrirem seu trabalho como blogueira, começam a acompanhar a página na Internet e motivam-se a ler obras que conheceram por lá. “Em sala de aula a gente começa a perceber algumas coisas assim. [O professor] tem que se desdobrar para fazer o aluno realmente querer estudar, e no blog não é assim. No blog tu está apresentando coisas que tu gosta, e tu abre mais o leque de opções. No blog eu falo do clássico mas também falo de literatura contemporânea”, salienta Ana Karina.

Além dos blogs, a professora de literatura também vê nos canais literários do YouTube uma influência positiva para os mais jovens. Porém, devido a esse papel colaborativo dos booktubers em relação à escola, Ana Karina alerta para a necessidade de um preparo adequado dos apresentadores dos canais, no que se refere ao conteúdo e às opiniões emitidas por eles:

Imagem: Francelle Machado | Edição: Frederico Martins

“O que me incomoda é esse julgamento de valor sem conteúdo. Dizer que não gostou só por não gostar, eu acho muito pobre. Acho que tu tem que ter argumentos para dizer porque não gostou”.

ANA KARINA SILVA

Além do fomento à leitura, a Internet também auxilia na comunicação entre leitores. Na rede social Skoob, leitores atualizam estantes on-line de livros que estão lendo, querem ler ou já leram, compartilham resenhas das obras e podem até trocar livros entre si. O Skoob existe desde janeiro de 2009 e conta com 3.7 milhões de usuários. Além dele, uma nova rede social já começa a chamar a atenção do público leitor: a Leitores BR, uma das comunidades da rede Amino, foi transformada em aplicativo para smartphones (para sistemas Android e iOS) em agosto de 2016, e já contabiliza, no momento de produção desta reportagem, 25.530 usuários cadastrados. Ana Beatriz Rocha Rodrigues, estudante de design e responsável pela criação da comunidade, explica que os leitores podem compartilhar entre si informações e dicas não apenas sobre livros, mas também sobre HQ’s, mangás e webcomics. Ela destaca, ainda, que “a troca de informações e experiências com obras diversas pode ajudar os outros a encontrarem o tipo de leitura que mais os apeteça. É esse o jeito que mais pode despertar o interesse pela leitura em alguém”, conclui Ana Beatriz.

Como reconhece o professor Cristiano Baldi, “o Brasil não é um país de leitores”. Mas, com o auxílio da Internet e da quebra de preconceitos literários, abrem-se novas possibilidades para formar uma nova geração de leitores brasileiros.

Foto: Francelle Machado

Reportagem desenvolvida durante o segundo semestre de 2016 para a disciplina Projeto Experimental III: Online, do curso de Jornalismo da Famecos/PUCRS, sob orientação dos professores Andréia Mallmann, Juan Domingues e Moreno Osório.

Imagens não creditadas: Pixabay, utilizadas sob licença Creative Commons com atribuição não requerida (1–2–3); Francelle Machado Viegas.

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.