Um gatilho e inúmeros traumas emocionais em The Sinner

Série foi trazida ao Brasil pela Netflix, tem inspiração em livro de autora alemã e te prende na tela por horas.

Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic
8 min readFeb 18, 2018

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Série foi transmitida nos Estados Unidos pela rede USA Network. No Brasil, pode ser vista somente pela Netflix.

O que leva uma esposa e mãe dedicada a assassinar um homem, a sangue frio, em frente a várias testemunhas? Essa é a principal questão que nos impulsiona a assistir The Sinner, o seriado estrelado por Jessica Biel.

Cora Tannetti trabalha junto com o marido, Mason, em uma empresa de instalação de ar condicionado. Eles moram pertinho dos pais de Mason, e apesar de rolar aquelas rusgas clássicas entre nora e sogra, a família vive tranquilamente.

Um dia, enquanto descansa junto com o marido e o filho pequeno na praia, Cora observa um jovem casal aos amassos quando presta atenção na música que eles ouvem em um desses mini auto-falantes. O efeito da música sobre ela é uma agonia extrema, um instinto feroz e irrefreável. Em questão de segundos, Cora mata o jovem com várias facadas, sem pensar; algum tempo depois volta a si, não entendendo o que se passa em sua própria mente. A cena do assassinato é uma das mais bem produzidas que eu já vi, e choca o espectador no mesmo nível em que mostra a fragilidade mental de Cora.

Não é spoiler dizer que Cora vai presa, e o comportamento dela deixa até a juíza do caso desconcertada: ela já vai se declarando culpada e até recusa a ajuda de um advogado, por não entender o que aconteceu e aceitar, sem discutir, o fato de que merece ser punida. A partir desse momento, acompanhamos a investigação e a espera pelo julgamento de Cora, enquanto seguimos a polícia investigando o caso. Falando em polícia, ela chega a dar nos nervos em The Sinner: eles investigam o caso de maneira preguiçosa, não indo a fundo em questões óbvias (como o por quê daquela atitude tão violenta em uma mulher “certinha”) e achando mais fácil defini-la como louca, sem sair de suas poltronas.

Nesse cenário, Cora pode contar apenas com o detetive Ambrose (vivido por Bill Pullman), que parece enxergá-la com um misto de curiosidade, empatia e compreensão. O detetive faz o que ninguém mais se prontifica, e mesmo lidando com relacionamentos conturbados na vida pessoal, coloca todo seu foco no trabalho de decifrar a atitude e as motivações de Cora. Ambrose conquista a confiança dela e vai incentivando cada nova lembrança que ela compartilha. Por meio de interrogatórios e até sessões de um tipo de regressão, o detetive vai juntando as peças do quebra-cabeça, e surpreende até mesmo a própria Cora, que finalmente começa a entender o que seu próprio subconsciente tentou ocultar.

Harry Ambrose é o melhor detetive que você respeita! ❤

The Sinner é uma daquelas séries que batem forte no nosso psicológico, e nos impõe uma sensação de inquietude enquanto nos surpreende positivamente pela qualidade do trabalho. Sou apaixonada por personagens complexos, reais e que trazem questionamentos, e está aí uma minissérie cheia destes. Cora é obviamente complexa, e a gente percebe nos olhos dela que algo não vai bem, desde as primeiras cenas (e Jessica Biel arrasa na interpretação, aliás). O detetive Ambrose está longe de ser perfeito, e a trama expõe alguns detalhes de sua vida pessoal, para que saibamos o quanto ele é apenas um cara normal, sem heroísmo ou santidade, que apenas quer fazer um trabalho bem feito.

Cadê a emoção, homem?!

Dentre os outros personagens, o único que ficou aquém nesse desenvolvimento aprofundado foi Mason Tannetti, o marido de Cora. Não sei dizer se o roteiro indicava que o personagem seria assim, ou se foi a interpretação de Christopher Abbott que não me agradou, mas a impressão que senti com ele foi de alguém apático, ou que não está dando a mínima pra nada mesmo. É compreensível que ele fique em choque ao ver a esposa assassinar alguém e ser presa, mas ele passa todos os episódios com a mesma feição fria e distante, não importa a carga emocional que esteja presente nos acontecimentos. Eu não consegui sentir empatia por ele, e vou confessar: no fundo, acho que a Cora merecia um cara melhor, para cuidar dela de verdade. #ProntoFalei

São apenas oito episódios em uma temporada, e já somos fisgados para um cenário cheio de informações importantes aos 10 minutos do episódio piloto! O mais incrível é que, por mais que a gente fique quase sem respirar em meio a todo aquele caos, nenhuma informação é jogada na nossa cara sem motivo, ou na hora errada. Começamos sem saber muita coisa sobre a Cora, assim como a polícia e o detetive, e junto com ele vamos conhecendo o contexto que guiou a protagonista até aquele estopim de fúria. Cora cresceu em uma família cheia de problemas: a mãe era uma fanática religiosa que atribuía a ela a culpa pelos graves problemas de saúde da irmã, Phoebe, que nasceu extremamente fraca. Phoebe, por sua vez, nutre um misto de dependência e inveja da irmã, e a relembra a todo o momento do quanto ela tem sorte por ser bonita e poder viver normalmente. Cora sente-se culpada e sufocada por tudo. Tanto pelo fato de Phoebe estar presa à casa da família, quanto pelo desprezo que a mãe sente por ela. Com tanto sofrimento em casa, Cora busca alguma liberdade em aventuras, como o envolvimento com o “garoto problema” JD, o consumo de drogas e muitas festas em locais questionáveis.

A convivência com a família foi extremamente nociva para a personalidade de Cora

O plot é carregado de traumas sofridos por Cora nessa fuga das opressões da mãe, e traz as lembranças dela por flashbacks não lineares, que são distribuídos minuciosamente nos episódios. Entre lembranças de uma pequena Cora rezando pela cura da irmã, uma adolescente descobrindo seu próprio corpo, a jovem buscando conforto em carreiras de cocaína e a adulta que se apaixona por Mason, vamos sendo apresentados a uma pessoa com vários problemas emocionais e psicológicos, mas que nem por isso é uma simples vilã ou mocinha.

A cada nova nuance da protagonista, somos instigados a assistir “só mais um episódio”, que se torna uma maratona, porque cada fato que a série explica resulta em ainda mais perguntas. E os ganchos deixados ao final de cada episódio são simplesmente irresistíveis. Se isso não é genialidade em uma trama, eu não sei o que mais é.

Comecei a assistir The Sinner por adorar uma boa história de investigação. Mas o ponto alto dessa história é, na verdade, o desenvolvimento do aspecto psicológico dos personagens. Como já mencionei, Cora é uma mulher cheia de camadas mentais que vão sendo expostas a cada episódio. Phoebe, a irmã da protagonista, também merece destaque nesse quesito. Ela sabe que seu mundo se resume em um quarto (até fala isso em alguns momentos) e sua vida é embargada pelos cuidados excessivos da mãe além, é claro, da doença que a impossibilita de sair para o mundo. Conforme ela cresce, vamos observando a menina indefesa se transformar em uma jovem manipuladora, tomada pela inveja da irmã e cheia de desejos reprimidos.

O detetive Ambrose também é exposto em detalhes tristes e doentios de sua vida pessoal, e sua defesa inabalável de Cora como uma vítima das circunstâncias nos faz pensar no quanto ele se identifica com ela, por algo que tenha vivido ou causado no passado. Algumas questões em torno dele não foram completamente explicadas — o que abre uma brecha para a possível 2ª temporada -, mas toda essa composição é interessante por torná-lo não apenas um apoio em torno da personagem principal, mas um personagem complexo e real.

Um detalhe que eu percebi em The Sinner foi relacionado à sequência dos acontecimentos. Assim como a mente perturbada de Cora, os episódios mesclam momentos onde tudo se desenrola rápido demais com situações em que nada ocorre. Sinceramente, gostei dessa forma de contar a história, porque é tanta informação dada em alguns minutos que a gente precisa de um tempinho para refletir sobre tudo. Além disso, quando o espectador começa a se sentir confortável e tranquilo de novo, porque tá tudo meio parado, a série vem e coloca uma nova descoberta do detetive Ambrose na nossa cara. Daí já era, ficamos conectados em mais esses acontecimentos, e ainda ficamos ansiosos pelos próximos, num ciclo que mantém a nossa atenção todo o tempo.

Ah, e caso você não saiba: o plot da série foi adaptado de um livro, meus amores! A obra original foi escrita pela alemã Petra Hammesfahr, e já possui uma tradução em português. Sua única edição brasileira, e portanto a mais recente, é publicada pela editora Novo Século com o título “A Pecadora”.

The Sinner é uma série de suspense policial, mas evidencia assuntos muito mais profundos da psique humana, e os mantém em pauta simultaneamente à investigação. Além disso, a história de Cora expõe traumas e vivências prejudiciais e, mesmo que não assuma um tom de lição de moral, nos faz perceber a questão de causa e efeito que vem da criação da protagonista, e a impele a tomar decisões erradas, sofrendo a culpa imposta por si mesma e pela própria mãe. E sobre o mistério em si, que é o que “anuncia” a série, também é uma experiência diferente e provocativa para quem assiste. Não estamos questionando quem é @ assassin@, e a dúvida é porque uma mãe de família matou um desconhecido, se não tinha motivos para isso e, a princípio, era uma mulher sem o menor indício de psicopatia.

Imagens: Divulgação/USA Network

Aí vem um questionamento que a série deixou em mim, e que acho tão assustador quanto necessário de se refletir: pensamos que um possível assassino possa ter algo que o distingue das pessoas “boas”, mas será que essa distinção de caráter, personalidade ou afetação realmente existe? Ou será que todos, sem exceção, podemos ser levados a cometer um crime, quando influenciados pelo meio em que vivemos?

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Francelle Machado
Aprendiz de Bookaholic

Estudante de Letras, Jornalista de formação e futura tradutora. Revisora textual, estagiária em Produção Editorial e pseudo-cronista nas horas vagas.