A língua ferina das escolas de samba do Rio num 2018 de protestos

Fred Soares
Cantos, Recantos e Encantos
6 min readJan 16, 2018
Uma pitada das críticas políticas e sociais que Tuiuti (à esquerda) e Mangueira vão levar para a Avenida

O espetáculo das escolas de samba principais do Rio de Janeiro de 2018 terá uma cara pra lá de definida. Será o carnaval da crítica social e política, algo tão corriqueiro nas ruas ao longo da história desta manifestação popular tipicamente carioca, mas que passou ao largo das avenidas dos desfiles, salvo instantes absolutamente esporádicos. Estação Primeira de Mangueira, Beija-Flor de Nilópolis e Paraíso do Tuiuti vão ser as representantes dos clamores populares no Sambódromo daqui a menos de um mês. A repressão e a tentativa de enquadramento aos festejos populares, o descaso com as camadas mais pobres da população e a denúncia contra uma nova forma de escravidão no país serão os temas desenvolvidos e que, no tradicional divã da Sapucaí, vão suscitar muitas reflexões e, quem sabe, alterar uma rotina que, de alguma forma, foscou o brilho daquilo que se configurou chamar de “O Maior Espetáculo da Terra”.

Como já escrevi, este caráter “chapa-branca” das escolas de samba é algo quase entranhado no seu DNA. Na verdade, elas sempre optaram por uma relação adesista com os regimes. O historiador Luiz Antônio Simas define esta reação como uma tentativa de essas agremiações — sediadas nos subúrbios cariocas e formadas basicamente por negros e, portanto, discriminadas pela elite dominante — fazerem a festa sobreviver no meio das frestas oferecidas pelos donos do poder ao longo das décadas.

Desenhos bem claros desta tendência são observados a partir do Estado Novo. O presidente (então ditador) Getúlio Vargas buscava elementos que colaborassem na implementação de sua política altamente nacionalista. No campo da cultura popular, a escola de samba recebeu atenção especial nesse sentido. O resultado foi a enxurrada de temas atrelados à História Oficial que tomou conta dos palcos oficiais do carnaval carioca: Duque de Caxias, Tiradentes, Batalha do Tuiuti, Proclamação da República. Era, no samba, a tentativa de Vargas de impor à população uma forte política de identidade nacional — inclusive com enorme apoio dos meios de comunicação da época.

Página do “Diário Carioca” noticia o título da Vai Como Pode, hoje Portela, no primeiro desfile oficial das escolas

Foi esta a tônica até o início dos anos 60. Então, um acreano, professor universitário ligado à Escola de Belas Artes, liderou um processo que subverteu esta ordem. Fernando Pamplona, um homem branco da classe média carioca, fez questão de se integrar ao povo simples responsável pela vida das escolas de samba. Com incrível poder de persuasão, convenceu os artistas do seu Acadêmicos do Salgueiro a deixarem de lado as fantasias glamourosas de duques ou princesas, para elevar à condição de personagens principais dos desfiles nomes e fatos que viviam à margem da história. Pela primeira vez, muita gente soube quem era Zumbi dos Palmares, Dona Beija e Chico Rei. Um movimento que acabou por representar a primeira grande crítica de uma escola de samba ao status quo.

Outras escolas se sentiram mais à vontade para escapar desta espécie de grilhão temático. Os enredos foram ganhando novos recortes e, após o golpe militar de 64, começaram mesmo a causar algum tipo de preocupação aos órgãos de segurança e repressão. Três anos depois da quartelada, o próprio Fernando Pamplona lançou para o Salgueiro “A História da Liberdade no Brasil”. Um enredo que só pelo título já causou tremedeira aos generais de plantão. A ponto de os ensaios pré-carnaval receberem frequentes visitas dos agentes do Departamento de Ordem Social e Política (DOPS), responsáveis pelas prisões políticas tão comuns à época. Os militares ficaram irritadíssimos pelo fato de o movimento que os levou ao poder foi solenemente ignorado por Pamplona.

Fernando Pamplona, além do Salgueiro, cuidou da decoração das avenidas do carnaval nos anos 60 e 70

Dois anos depois, um samba-enredo entrou pela primeira vez na lista das músicas vetadas pela famigerada Censura Federal. Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola compuseram para o Império Serrano em 1968 um dos clássicos do carnaval: “Heróis da Liberdade”. Outro enredo que soava para os ditadores como um cântico contra a repressão que a cada ano se intensificava no Brasil. Silas foi chamado a uma instalação para se explicar. No fim, o samba foi liberado com uma alteração. Foi modificada a estrofe que dizia “Essa brisa que a juventude afaga / Essa chama que o ódio não apaga pelo universo / É a revolução, em sua legítima razão(..). A palavra revolução foi substituída por evolução.

Neste contexto, surge mais um importante personagem: Martinho José Ferreira. Após o começo na extinta Aprendizes da Boca do Mato, passou a integrar a ala de compositores e influenciar na escolha dos enredos da Unidos de Vila Isabel. Nascia ali Martinho da Vila. Seus sambas já tinham causado discussão, em razão da melodia e métrica diferenciadas. Mas gerou polêmica pra valer em 1973, ainda durante o processo de escolha da música para o carnaval do ano seguinte. “Aruanã-Açu” era o enredo. Um trecho desagradou o regime: Estranhamente o homem branco chegou/Para construir/Para destruir/Para desbravar/E o índio cantou/O seu canto de guerra/Não se escravizou/Mas está sumindo da face da Terra. Foi a senha para que a obra de Martinho fosse cortada da disputa.

Vivíamos ainda os mais pesados dos anos de chumbo. Passado algum tempo de silêncio absoluto — tanto no samba quanto na sociedade — , as escolas de samba voltaram a dar sinal de que voltariam a se manifestar. O país estava sob a luz da anistia, o primeiro sinal claro de início de distensão do regime militar. Em 1979, a Beija-Flor trouxe o seu “O Paraíso da Loucura” — Esqueçam os problemas da vida/ O trem, o dinheiro e a bronca do patrão / Não pensem em suas marmitas e no alto preço do feijão / Joguem fora a roupa do dia-a-dia / E tomem banhos no chuveiro da ilusão.

Martinho da Vila voltou com tudo em 1980, e o genial “Sonho de um Sonho” — Um sorriso sem fúria entre o réu e o juiz/A clemência e a ternura por amor da clausura/A prisão sem tortura, inocência feliz/Ai meu Deus/Falso sonho que eu sonhava. Pela primeira vez, um samba-enredo fazia alusão a uma das vergonhas da ditadura: a tortura.

O pé na porta veio em 1984, graças a uma escola recém-chegada ao primeiro grupo das escolas de samba: a Caprichosos de Pilares. Sob a tutela de seu carnavalesco barbudo e com pinta de revolucionário, o professor de matemática Luiz Fernando Reis, a azul e branco escancarou a crítica. “A Visita da Nobreza do Riso a Chico Rei em um Palco nem Sempre Iluminado” apelou pra galhofa na hora de fustigar os políticos, tanto os governistas quanto os de oposição. E não teve papas na língua na hora de chamar os ministros do governo João Figueiredo de Trapalhões.

Os anos se seguiram, a Caprichosos seguiu nesta linha e induziu outras a seguir no mesmo caminho. E assim foi com a São Clemente, com a Vila — que emplacou três enredos deslumbrantes: “Kizomba”, “Direito é Direito” e “Se essa Terra fosse minha” — e com o Império Serrano e seu eloquente “Eu Quero”, de 1986, que pedia, sem rodeios, comida, saúde, educação e dinheiro no bolso.

O Império Serrano, de Renato Lage, transformou a Avenida num palco de protesto contra os políticos

O ápice, porém, se viu em 1989. A Beija-Flor com seu histórico “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia” proporcionou uma das maiores críticas à materialista sociedade ocidental. Sobrou para todo mundo. Para os políticos corruptos, para os religiosos exploradores da fé, para os aproveitadores da boa fé infantil e até para os que usufruiam do lucro resultante do sexo. Até hoje, o desfile, que valeu o vice-campeonato, é tido como um dos grandes da história e mantém atualíssimo os temas ali desenvolvidos.

O momento clássico do histórico desfile da Beija-Flor em 1989

A partir da segunda metade dos anos 90, os enredos críticos foram para o segundo plano. Até que praticamente desaparecessem. Os temas que rendiam o tão decantado patrocínio ganharam prevalência. Até agora.

Ironicamente, sob uma forte crise econômica, a língua ferina das escolas de samba volta a se manifestar. E que assim seja! Com toda a força e legitimidade que o carnaval oferece a espontânea crítica.

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