Poder, TV e escolas de samba: um jogo político que não é nada novo

Fred Soares
Cantos, Recantos e Encantos
5 min readDec 10, 2019

Por Fred Soares (@fredaosoares)

No Sapucaí em 1987, a disputa entre Globo e Manchete: três anos antes, as emissoras se transformaram em personagens de um xadrez político que envolvia também o então do governador do Rio, Leonel Brizola

A menos de 100 dias do carnaval 2020, o clima não é nada ameno na relação entre as escolas de samba do Rio de Janeiro e o atual prefeito, o Sr. Marcelo Crivella. É mais uma etapa de um embate que se arrasta desde 2017, quando esta manifestação da cultura popular carioca recebeu o selo da irrelevância da parte do alcaide. O ardil da vez é acusar a festa de ser mais um meio de receita da Rede Globo de TV e, por isso, segundo o chefe de governo, ele fica desobrigado de subsidiar o espetáculo, prática natural e institucional desde pelo menos o início dos anos 60, quando o Rio perdeu o status de capital federal.

A briga de tapa entre Poder Público e grandes conglomerados de comunicação não é novidade na história do carnaval carioca. E, que fique bem claro, não há santinho nesse folhetim. Basta voltarmos no tempo, 36 anos atrás, 1983. Naquela ocasião, a Rede Globo surfava sozinha na crista da onda. A emissora dos Marinho dava as cartas em praticamente todos os setores da vida nacional. No entanto, ganhou exatamente naquele ano uma pedra no sapato que atendia pelo nome de Leonel de Moura Brizola.

O gaúcho, que voltara do exílio havia apenas quatro anos, assumira o governo do Estado do Rio de Janeiro, depois de uma polêmica eleição, na qual ele acusou a Globo de tentar interferir a favor da vitória do candidato do regime militar, Moreira Franco. Brizola estava havia seis meses no Palácio Guanabara quando, influenciado pelo professor Darcy Ribeiro, resolveu tomar uma decisão que mudaria o rumo do carnaval carioca: a construção de um local definitivo para o desfile das escolas de samba.

A construção do Sambódromo: uma das grandes obras de Leonel Brizola que mudou definitivamente a vida do Rio de Janeiro e do desfile das escolas de samba
Brizola e Darcy, governador e vice do Rio, durante o desfile de 1984

Para transformar esta ação num grande fato político, Brizola resolveu fazer do domingo de carnaval um espetáculo de dois dias. Mais do que isso: pretendia elevar o espetáculo popular ao nível de um super-palanque em prol das “Diretas já”, cujo projeto de emenda constitucional seria votado — e derrotado — em abril de 84. Desta forma, ficou decidido que o desfile do Grupo 1-A (o Grupo Especial de hoje) seria realizado no domingo e na segunda-feira de carnaval. A mudança, até por partir do declarado inimigo dos Marinho, não caiu bem no Jardim Botânico. A Globo jamais admitiria mexer na sua tradicional grade de programação de um dia de semana (segunda-feira) para exibir carnaval em rede nacional. E veio o contra-ataque: o diretor-geral da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni (o mesmo que depois a Beija-Flor transformou em seu enredo num malfadado desfile), avisou à Riotur e à extinta Associação das Escolas de Samba do Rio — a principal emissora de TV do país não transmitiria o “maior espetáculo da Terra”.

Adolpho Bloch inaugurou a sua TV Manchete em outubro de 1983

Brizola sentiu o golpe. A transmissão, mesmo feita pela Globo, lhe serviria como uma bela propaganda política. A Rede Tupi, que também era habitual difusora dos desfiles, havia fechado as portas em 1980. Já a Bandeirantes estava de braços dados com a Globo. Sem contar a TV Educativa, ainda sob o poder de um governo militar e, portanto, afinada com os interesses da “Vênus Platinada”. O Velho Caudilho, no entanto, recuperava-se logo dos socos na ponta do queixo. Teve uma idéia: ligou para o empresário Adolpho Bloch que, recentemente, havia inaugurado a sua TV Manchete. Sugeriu-lhe a transmissão exclusiva, garantindo todo o aporte publicitário que bancaria os custos. A história foi revelada pelo jornalista Arnaldo Niskier, em seu livro “Memórias de um Sobrvivente”.

O primeiro desfile do Grupo 1-A exibido pela Manchete: Unidos da Tijuca, 1984

Bloch topou a parada. O contra-golpe acertou Boni em cheio. Ele tentou reagir, propondo uma transmissão em conjunto com a Manchete, mas o dono da emergente emissora alegou já ter vendido seu espaço publicitário sob a promessa da exclusividade. Era uma verdade, mas salientando que alguns dos anunciantes tinham ligação direta com o governo, caso do Banco do Estado do Rio de Janeiro, o extinto Banerj. Chegou o carnaval. No ano do seu vigésimo aniversário, a Globo perdeu pela primeira vez a liderança desde que se tornou hegemônica no mercado televisivo do Brasil. No Rio de Janeiro, a sede das duas emissoras, verificou-se que 70% dos aparelhos foram sintonizados na Manchete. A surra foi grande, e a principal emissora do Brasil guardou mágoa.

Nunca mais as relações com a Manchete foram amistosas, e assim perdurou até o fechamento do canal no fim dos anos 90. Anos antes, já envolvido em dívidas com a emissora, Bloch foi bater à porta de Roberto Marinho: ‘Doutor Roberto, eu preciso de ajuda’. Ele demorou uma eternidade para responder. ‘Adolpho, há dez anos eu estou esperando você retornar o meu telefonema. Passar bem’. E a secretária me levou até a porta”. A história está relatada no excelente “Os Irmãos Karamabloch — Ascensão e Queda de um Império Familiar”, do jornalista Arnaldo Bloch.

Já com Brizola, o que já era inimizade ganhou o peso de uma “crise dos mísseis”, com cada um dos lados só esperando a oportunidade de lançar uma bomba nuclear sobre o outro. O governador bateu o quanto pôde, mas a Globo conquistou seu objetivo em 1989, quando viu Brizola não avançar ao segundo turno das primeiras eleições presidenciais brasileiras depois de 30 anos.

Em resumo, os anos passam e, mal ou bem, as escolas de samba seguem como peças do xadrez político e do poder.

Sobre o carnaval em si, a Rede Manchete entendeu em 1984 que aquele poderia ser o seu grande produto, aquele que lhe garantiria visibilidade e identidade. E assim foi. Jamais na história da TV brasileira, uma emissora estabeleceu relação tão próxima com o carnaval. As coberturas não se limitavam aos desfiles no Sambódromo. Iam para o ar bailes, desfiles de fantasias, telejornais exclusivos para a festa e até os quase ignorados desfiles de blocos de enredo. Ao longo dos anos, o público se acostumou a acompanhar o carnaval 3, 4 meses antes, graças à Manchete que já dava em outubro destaque para a maior festa cultural do país. E assim foi quase initerruptamente. As exceções foram em 1993, em razão da crise financeira da emissora, e 1988, quando a Globo resolveu devolver a pernada que levou quatro anos antes. Com a ajuda, inclusive, do STF. Mas aí é outra história…

Os campeões desfiles do então bloco Canários de Laranjeiras foram exibidos pela Manchete

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