Aldir Blanc com o seu maior parceiro e amigo, João Bosco (à esquerda): uma dupla que ofereceu encanto à MPB

Quando Aldir Blanc me mostrou que a História vai muito além dos livros

Fred Soares
Cantos, Recantos e Encantos

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Imagino que todo artista se sinta particularmente realizado quando sua obra toca o coração do povo. Afinal, ele é o objetivo, o alvo da criação. Mas às vezes há uma espécie de transcendência. É quando a arte influencia a própria formação da pessoa que a absorve. Foi nesta circunstância que nasceu minha admiração, carinho e reconhecimento por Aldir Blanc. Nunca tive a chance de contar essa história ao genial cronista e compositor, mas o faço agora, à guisa de homenagem e como um incentivo para que as pessoas, apesar da morte física do poeta, aproximem-se da aura do seu legado, que é imortal.

Eu era um estudante do antigo Primeiro Grau em 1985. Fazia parte do grupo de discentes do inesquecível Colégio Anglo Americano, em Botafogo, onde tive colegas e incríveis e queridos amigos até hoje. As aulas naquele ano começaram no fim de fevereiro. No entanto, como foi tradição em toda minha vida estudantil, nada de cadernos e livros antes de que terminasse o carnaval. E assim foi.

A reportagem do JB em 1985, com a informação da influência da música no enredo da União da Ilha
O desfile da União da Ilha em 1985 transmitido pela extinta TV Manchete

Em meio a apresentações espetaculares das escolas de samba, uma permaneceu na memória como uma pulga atrás da orelha: a da União da Ilha do Governador. A minha escola homenageou uma figura, segundo ela, histórica. Mas de quem jamais eu tinha ouvido falar: o marinheiro João Cândido. Nos dois anos anteriores, o ensino de História do Brasil já tinha sido bastante contundente no Anglo. Mas nada havia sido dito sobre aquele homem, até então absolutamente desconhecido para mim.

Capa do álbum “Elis” (1974), da Phonogram

A típica curiosidade de um taurino chegou ao auge. Eu era só um menino prestes a completar 11 anos, que não tinha lá grande acesso a bibliotecas ou demais mecanismos de pesquisas. Mas não admitia ficar sem resposta. Recorri ao Jornal do Brasil do Domingo de Carnaval, cujas páginas passei a guardar a partir de 1983. Lá estava escrito que o enredo (e o lindo samba-enredo) da Ilha era inspirado numa canção de Aldir Blanc e João Bosco: “O Mestre-Sala dos Mares”. A cabeça daquele garoto não estava preparada para metáforas. Veio a ideia de que se tratava literalmente de uma homenagem a um baliza das antigas, sei lá… Fui até a antiga Kaele Discos, em Copacabana, e comprei o álbum de Elis Regina em que estava a tal canção. Foi amor à primeira vista. E na beleza dos versos, logo percebi de que se tratava realmente de uma figura histórica mas que, por alguma razão, não tinha suas história e legado difundidos nos bancos escolares.

Interpretação de Elis Regina para a histórica canção da dupla Aldir Blanc e João Bosco

Guardei isso, na expectativa de que o currículo escolar de 1985 me tirasse essa dúvida. Os meses se passaram e… nada. Quando o conteúdo das nossas aulas chegou ao século 20, foi o meu limite. Procurei em particular a nossa professora, a atenciosa e detalhista Anileda. Parei-a no corredor mesmo. Ela tinha cara de braba, mas era boa gente. Eu sabia que ela não deixaria um aluno seu sem resposta. E assim foi.

“Como você ficou sabendo dessa história?”. Contei tudinho, revelando que toda aquela curiosidade nascera a partir do desfile da minha escola de samba e da poesia de Aldir. “Interessante”, comentou a mestre. Combinamos uma espécie de aula particular, na biblioteca do Anglo, para o dia seguinte. O papo seria na hora do Recreio.

Aldir, com uma de suas filhas, na cerimônia de homenagem a João Cândido em 1984

Foi assim, no dia seguinte, que soube pela primeira vez que o Rio de Janeiro foi palco em 1910 de uma revolta de marinheiros, que clamava pelo fim dos castigos físicos, liderada por um militar pobre, negro que, por seu caráter contestador, havia tido o seu nome lançado à marginalidade da História. Não havia livros, registros disponíveis… nada. Tudo graças ao legado do sistema de repressão e censura instituído nas últimas duas décadas. Obviamente, pelo mesmo motivo, esta matéria não estava contida nos currículos oficiais das escolas brasileiras (só muito tempo depois, soube que no fim de 1984, a Câmara dos Vereadores do Rio concedeu a Medalha Pedro Ernesto a João Cândido — e Blanc e João Bosco a receberam em nome do Almirante Negro).

Foi assim, de um jeito quase subversivo, que aprendi o que foi a Revolta da Chibata e o seu fascinante líder, João Cândido. Uma história que me fascinou e, desde a infância, abriu minha mente que, para aprendermos, precisamos ir além do que nos impõem como verdade absoluta. Pesquisar, escarafunchar, perseguir novos fatos é fundamental para que quebremos paradigmas e ampliemos a nossa consciência.

A capa do Correio da Manhã que noticiou o fim da Revolta da Chibata em novembro de 1910

Foi assim. E devo tudo isso a Aldir Blanc que, de certa forma, tornou-se o meu primeiro professor da História que a História não conta.

Infelizmente, não conheci Aldir e, portanto, não pude lhe relatar isso diretamente. Faço agora, como uma homenagem a ele e a suas filhas Isabel e Mariana, que tanto lutaram nas últimas semanas.

Obrigado, mestre. Te devo essa!

O arquivo da Censura mostra como inicialmente o censor implicou com as referências à negritude de João Cândido. Vemos também que o título foi alterado

PS — Como era de se esperar, a música de Aldir e Bosco sofreu interferência da maldita Censura Federal. O inusitado, e até tragicômico, porém, foi que o motivo não foi tanto o conteúdo político e histórico da poesia. E, sim, um elemento racista. Quem relata esse caso é jornalista Bruno Ribeiro (o texto completo, publicado pela Revista Opera, você pode ler AQUI).

“Se O Bêbado e a Equilibrista, em clima de abertura política, escapou da censura do regime militar, menos sorte teve O Mestre-sala dos Mares, samba-enredo em homenagem ao marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata. É o próprio Aldir quem conta essa história em reportagem publicada no jornal O Globo pela ocasião de seu aniversário de 70 anos:

“Fui uma vez liberar O Mestre-sala dos Mares. Primeiro você passava por uma triagem de ex-policiais — era um cabide de emprego aquilo — até ser passado pra uma sala. Ali era mais complicado. (…) O interessante é que o sujeito virou pra mim e começou a fazer um sinal esfregando o dedo no antebraço. Eu não tava entendendo nada, até que ele disse que o problema de O Mestre-sala dos Mares, que não tinha esse título ainda — era primeiro O Almirante Negro ou O Navegante Negro — , o problema era justamente a palavra “negro”. E o censor era negro. Ou seja, ele estava inteiramente vendido ao sistema. Foi minha primeira vez ao lidar com um racismo oficial”.

O letrista se lembra de ter saído do departamento de censura e entrado no primeiro bar que encontrou pela frente: “Tomei uma cerveja um quarteirão depois e não conseguia chegar com o copo na boca de tanto que eu tremia. Não por medo, mas pela revelação de que o problema com João Cândido, com a Revolta da Chibata, era um problema racial e não político. João Cândido é um herói nacional sim, queiram ou não”, disse.”

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