O Brasil estava mesmo entre a cruz e a espada?

Por mais polarizadas que as eleições brasileiras possam ter parecido, os perfis e conversas dos eleitores nas redes sociais indicam uma realidade muito mais complexa

Freemavens
InsightFM
5 min readNov 16, 2018

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Presidential candidates Fernando Haddad and Jair Bolsonaro (Source: Metrópoles)

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As últimas eleições presidenciais no Brasil revelaram um cenário político extremamente dividido, com candidatos em lados opostos do espectro político sendo colocados um contra o outro, em narrativa dualística que não deixa ser muito familiar aos brasileiros. Embora os meios de comunicação tenham sido rápidos em reduzir a narrativa a apenas isso — extrema direita v. esquerda; conservadores populistas v. liberais — a realidade é, de fato, muito mais sutil. Com os eleitores sentindo que não tiveram escolha senão expressar suas frustrações com a atual conjuntura política brasileira nas urnas, as reais motivações de se votar em um candidato em detrimento do outro não são tão óbvias quanto parecem.

Usando análises feitas com o Brandwatch, uma ferramenta de social listening, e a plataforma para segmentar audiência Affinio, fizemos uma análise dos usuários de mídia social que publicaram qualquer conteúdo público expressando apoio a um dos dois principais candidatos presidenciais — Jair Bolsonaro (agora presidente eleito) ou seu opositor Fernando Haddad. Mergulhando nas biografias e conteúdo publicado por usuários e por perfis que seguem, logo ficou claro que as divisões entre os dois eixos não se mostra tão clara, e que surpreendentemente os eleitores possuem muito mais traços em comum do que imaginávamos.

Os apoiadores de ambos os lados se identificam de maneira distinta, porém, tendem a compartilhar valores centrais semelhantes

Palavras-chave que aparecem com maior frequência na bio dos usuários no Twitter (setembro de 2017 a setembro de 2018)

Aqueles que defendem Haddad, candidato cuja posição política é de esquerda, descrevem-se principalmente por suas profissões (jornalistas, professores etc.), que são representações de um papel social mais amplo, consequentemente alinhados a suas crenças e sua postura política ideológica. Do outro lado, as identidades daqueles que expressam seu apoio ao candidato economicamente liberal (mas socialmente conservador) Jair Bolsonaro, são amplamente fundadas em seus papéis dentro de suas unidades familiares e/ou comunidades religiosas (por exemplo, mãe, marido, cristão).

Enquanto os eleitores de Haddad — mais alinhados com liberais tradicionais e progressistas — favorecem a preservação de valores sociais acima dos familiares, os conservadores sociais de Bolsonaro tendem a colocar os valores das comunidades privadas acima dos das esferas públicas. Por esse mesmo motivo, os defensores de Haddad tendem a favorecer o bem do “mundo” em detrimento do “país”, enquanto o contrário ocorre entre defensores das ideias de Bolsonaro. [1]

No entanto, uma vez que os valores centrais adotados por cada campo respectivo são examinados mais de perto, os dois se sobrepõem em seu desejo comum por um país mais próspero e melhores padrões de vida para todos (por exemplo, menções comuns a Brasil, vida, família).

Os eleitores optaram pelo seu candidato se utilizando da ótica “dos males, o menor”.

O apoio a um dos candidatos por seus eleitores tem raízes no medo arraigado em valores defendidos pelo candidato rival. O conteúdo social compartilhado por partidários de Bolsonaro evidencia as ameaças presumidas de um governo de esquerda, com palavras como comunismo ou vermelho sendo as mais destacadas. A linguagem usada pelos eleitores de Bolsonaro também reflete o medo da corrupção que, na visão deles, um governo continuado do Partido dos Trabalhadores (PT) continuaria permitindo.

Por outro lado, o conteúdo compartilhado por apoiadores de Haddad reflete um medo igualmente alarmante de um governo Bolsonaro de extrema direita, com palavras como fascismo, mentiras e ódio dominando a conversa, pintando um cenário de pesadelo de uma ditadura que poderia ser retomada.

Palavras-chave mais mencionadas nas mídias sociais expressando apoio a Bolsonaro (Principais termos incluem: mídia, esquerda, amor, filhos / filhas, vergonha, nação, educação)
Palavras-chave mais mencionadas nas mídias sociais expressando Haddad (Principais termos incluem: fascismo, democracia, resistência, Lula, brasileiros, ódio, mundo)

Palavras-chave mais citadas no Twitter e no Instagram mencionam expressivo apoio a Haddad ou Bolsonaro (setembro 2017 — setembro 2018)

O resultado é que muitos eleitores parecem ter votado taticamente, usando a urna para evitar as eleições de outro candidato, em vez de apoiar qualquer candidato em particular

A natureza binária dos dois candidatos do segundo turno das eleições presidenciais e seus valores radicais fez com que uma grande parcela de eleitores ainda não tivesse certeza de seu voto até o dia anterior às eleições. Dentre aqueles que compartilharam seu voto no primeiro turno das eleições nas redes sociais, 33% afirmam ter votado não a favor de um determinado candidato, mas sim em oposição ao outro.

Grupos de perfis que especificamente apoiaram Bolsonaro ou Haddad representam 33% do público analisado (setembro de 2017 a setembro de 2018).

Um bom exemplo disso são os vários movimentos que surgiram nas redes sociais durante o período que antecedeu as eleições, nos quais os eleitores ativamente fizeram campanha contra Bolsonaro através da hashtag #elenão ou em apoio ao candidato com maiores chances de derrotar Bolsonaro no 2º turno, segundo as pesquisas eleitorais, Ciro Gomes. Embora menos unidos, eleitores determinados a pôr fim ao “regime” do Partido dos Trabalhadores também se opuseram a Haddad, no que se tornou um movimento anti-PT (Partido dos Trabalhadores).

Grupos de perfis e sua interconectividade (set / 2017)

Esse cenário mais complexo e sutil em que as eleições brasileiras se desdobraram ajuda a entender os resultados finais das eleições no Brasil

A eleição de Jair Bolsonaro, a figura da extrema-direita apelidada de “Trump dos Trópicos” não foi simplesmente o produto de uma guinada imprevista para um governo de direita, mas mais que isso, foi um subproduto dos medos, frustrações e motivações dos eleitores. Não nos surpreende que em torno de 30% dos eleitores com votos válidos tenham votado nulo ou branco. Em outras palavras, enquanto 57 milhões de brasileiros votaram para eleger Bolsonaro (55% dos votos), um total de 89 milhões de brasileiros votaram contra ele.

[1] Referência a dimensão cultural do individualismo de Geert Hofstede versus o coletivismo, que explora o “grau em que as pessoas em uma sociedade são integradas em grupos” e, mais de uma maneira mais ampla, a esfera de responsabilidade dos indivíduos dentro da sociedade.

Publicado originalmente no site da Freemavens www.freemavens.co.uk.

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