Ensaio sobre um avô acrônico

Priscila Oliveira para o Frestas Convida

Frestas
Frestas
4 min readJan 30, 2019

--

Era uma vez, lá nos confins do Goiás, um menino. Esse menino cresceu, viveu e alcançou a máxima da vida de acompanhar gerações após a sua, mas não se ateve apenas em vê-las, ele as tocou também. Tinhoso, moleque levado e alegre, saltou da década de 30 para fazer movimento por aqui. Pra quem já conhece a gente é possível deduzir a história e dar rosto a nós, mas o que eu quero dividir aqui, precisa transcender os limites do nosso anonimato.

Manoel, moleque levado mais conhecido como Seu Neca

Durante sete anos nós permanecemos em convivência diária. Nós: meu avô e eu; e os nossos nós. O despreparo desesperador e o entusiasmo da minha geração esbarravam cotidianamente nas rugas das suas experiências, nos calos dos seus passos e nos cabelos brancos da sua sensatez. Se a gente brigava? Mas é claro! A gente briga até hoje!

Falar do meu avô é sempre uma alegria e um aprendizado também. É como repetir a leitura de um livro, mesmo conhecendo o desfecho há sempre algo novo para aprender. Eu sei que ele já está cansado e que, segundo a lei natural da Biologia, é provável que seus dias aqui são em menor quantidade do que a saudade que há de ficar.

Eu gostaria de poder resumir meu avô para que todo mundo pudesse ver um pedacinho do próprio avô nele. Ou quem sabe dar uma dose de avô para quem não teve o privilégio de tê-lo. A verdade é que eu aprendo dele com tanta frequência que seria impossível um resumo constantemente atualizado.

Por ora, o que eu sei que ainda não mudou — além do coração enorme que ele tem — é quando está a fim, é puro entretenimento. Não é médico, mas ensinou que não há o que um copo de leite não cure. Ele também não tem uma lista de bons conselhos, mas acredita que cada um cuidando de si é a solução pro mundo ser melhor. Não demonstra afetividade, mas diz que ama, sem palavras, toda vez que fica vigiando pela fresta do portão pra saber se eu já cheguei ou se saí em segurança. Sabe da novela e do Faustão, e mesmo que já não passe mais café como antes, para qualquer circunstância está disposto a ir à padaria buscar bolo e pão de queijo (e a moça que nem ouse oferecer outra coisa).

Unidos em todos os momentos!

A sua roupa preferida é a mais velha do armário, a camiseta azul (quase derretida) do “Dragão de Ouro”, um time de truco que era encabeçado por ele aos domingos. Ainda detesta choro, abraços longos e despedidas. Seu ápice digital era o domínio do controle remoto. Se adaptou recentemente à tecnologia, mas ainda está se estranhando com seu ‘mate o fone’, leia-se smartphone. Ele gosta de waffer de morango e de limão, faz questão de que a carne do dia seja a preferida da visita e nos últimos dias confessou que está apaixonado por leite com achocolatado.

Seu passatempo preferido é pescar, mesmo que já não o faça com frequência. Vive dizendo que quer fazer uma viagem, mas que não quer levar ninguém. Tem um molinete de estimação, que guarda com apreço debaixo da cama e do qual ele jura ter mais ciúmes do que da vovó.

Eu não faço ideia de quando foi que passei a saber mais sobre ele do que sobre mim mesma, mas acredito que quanto mais aprendo com ele mais me aproximo do ser humano que desejo ser. Quando eu olho pra trás, vejo o quanto nossa relação seguiu um ciclo, que primeiro eu fui colocada nos braços dele até que, aos poucos, ele foi embalado pelos meus. E eu só consigo ser grata por ter a minha vida toda com a presença dele!

Priscila Oliveira. Para o avô, Divina. Professora de Espanhol e de Redação, namorada eterna do Matheus e teimosa. Amante descarada de goiabada e queijo (não se pode esperar menos de uma uberlandense) e defensora nata dos idosos. Seu único desejo é que a máxima de cuidar de si (conselho do avô que procura seguir à risca) possa sempre se estender ao próximo. Facebook: https://www.facebook.com/priscila.divoli

--

--

Frestas
Frestas

Crônicas do cotidiano para refletir e ser uma fresta no seu dia a dia.