1984 e o Genocídio Armênio

Como a República Turca poderia ter servido de inspiração para a utopia de George Orwell ?

Bruno Pedrosa
Friday Night Talks
Published in
6 min readAug 24, 2018

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Antes de prosseguir com o texto, eu declaro reconhecer (por opinião e vontade própria) o Genocídio Armênio como ação deliberada do Império Turco-Otomano entre 1915 e 1923. Essa opinião não reflete, necessariamente, as mentes dos outros membros do Friday Night Talks ou da própria revista em si, caindo em mim, portanto, a responsabilidade deste conteúdo. Dedico esse texto à comunidade armênia no Brasil que vem contribuindo para o reconhecimento dessa mancha na história mundial. “Não há ódio, só magoa”.

Começo esse texto com uma frase de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” do Machado de Assis que representa a importância do jeito que a história na criação de uma nação é contada: “E Deus sabe a força de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos.” (Voltaremos a esse pensamento mais tarde.)

No entanto, devo contextualizar, breve e rapidamente, o leitor em relação a história turca para que o entendimento e minha ideia possam ser clareadas.

Estamos nas vésperas da Primeira Guerra Mundial com as alianças já formadas: Tríplice Aliança (Alemanha, Austria-Hungria, Itália) e a Tríplice Entente (França, Grã-Bretanha e Império Russo). No entanto, junto com a Alemanha temos a união do Império Turco Otomano que, nesse período, já estava bem capenga sendo chamado até de “O Homem Doente” pelo czar Nicolau II.

Com o andar da guerra, o império Otomano estava se vendo cada vez mais encurralado pela Entente, principalmente pela França e Rússia que tinham interesses territoriais na região. Os turcos, por terem perdido a batalha de Sarikamısh para a Rússia (na tentativa de recuperar esses territórios perdidos numa batalha de 1877), começaram a culpabilizar os armênios, os quais viviam na região, por terem ajudado os russos, principalmente por questões religiosas (o Império Otomano era majoritariamente muçulmano, enquanto a Rússia e a Armênia eram cristãos). Isso se justifica, ainda mais, quando o movimento do panturquismo, liderado por um grupo nacionalista chamado Jovens Turcos, em vista das perdas territoriais do sultanato, realizaram “missões” para manter a integridade territorial, étnica e cultural do império, perseguindo e matando povos como os gregos, assírios e armênios, em sua maioria cristãos. Mesmo sendo os Jovens Turcos condenados após a queda do sultanato, a perseguição aos armênios ainda continuou até 1923 com a liderança nacional de Kemal Atatürk.

A estimativa é que o número de armênios mortos foram entre 1 milhão e 1 milhão e meio.

Mas por que, então, tal genocídio não é tão conhecido pela população em geral como o Holocausto ou o Bósnio? Porque as reformas de Atatürk o apagaram da história, e tentarei provar isso aqui.

Maquiavel, em “O Príncipe” tem uma ideia muito útil para se conquistar principados em quais o príncipe é reconhecido como o superior em todas as províncias, e por mais coincidente que seja, Maquiavel oferece a Turquia como exemplo desse tipo de governo. O pensador italiano afirma que, destituindo o príncipe e destruindo sua linhagem, o novo conquistador não teria muita dificuldade em dominar tal principado, já que sua população não seria livre. Portanto, mudar de soberano não teria muita diferença pois, a relação entre o povo e o príncipe é somente uma relação de subordinador e subordinado. Foi isso que Kemal Atatürk fez, fundando a República Turca.

No período pós-Primeira Guerra, o estadista turco destronou o sultão e realizou vários tipos de reformas a fim de que a nova república fosse modernizada e não fosse tão atrasada em relação aos países europeus. No entanto, as reformas e discursos proclamados por Atatürk desde 1919 até a fundação da República visaram, de modo proposital ou não, o esquecimento desse genocídio.

O primeiro sinal disso se deu no discurso dele no Congresso de Sivas (tentativa de unir as resistências regionais a fim de formar um fronte nacional comum) que declarou que os Armênios queriam expandir seu território e tinham iniciado um política de massacre em relação aos turcos. Além disso pode-se citar o Nutuk, um discurso dado por ele narrando os eventos entre a guerra de independência Turca em 1919 até a própria fundação da República em 1923. Esse discurso, é considerado pela pesquisadora Fatma Ulgen (especialista no assunto) como a invenção da identidade nacional da nova Turquia e a fundação do mito fundador do mesmo país, e para atingir esse sentido Kemal Atatürk silenciou atrocidades e exaltou glórias do povo turco. Como diz Oliver Stuenkel em seu livro Mundo Pós-Ocidental:

Todos os povos desenvolvem e sustentam seus próprios mitos sobre a história fundadora das suas tribos, nações, ou civilização. Um elemento chave desse mito concerne em por que o grupo é único e por que ele merece um lugar especial na história mundial.

Nesse sentido que Machado de Assis acertou em cheio. Atatürk precisava fundar um país novo, logo, precisava de bons adjetivos para a nova Turquia nascesse forte, especial e legítima.

Porém, o “pai dos turcos” não parou por aí. A fim de modernizar o seu país, políticas foram tomadas para que o alfabeto turco fosse mudado por o latino, além de fundar a Associação da Língua Turca em 1932 a fim de substituir vocábulos gregos, persas, armênios, eslavos e franceses para que a língua turca fosse purificada.

Em relação à mudança do alfabeto, há uma questão muito importante. Até o momento da fundação republicana, o império Otomano era, em sua maior parte, analfabeto. Somente depois das reformas kemalistas é que houve um grande processo de alfabetização da população. Isso em si, não há problema. A questão que trago é que, ao alfabetizar a população em alfabeto latino, ela se torna analfabeta em relação ao alfabeto turco tradicional. Desse modo, dificulta-se o acesso da população geral aos registros e documentos do Império Otomano. Logo, a maioria da população turca atual é ignorante aos documentos que retratam as maldades cometidas pelo antigo sultanato.

Outro ponto a ser destacado, também, é a ausência desse termo nos livros escolares de História na Turquia, onde é dito que os turco-otomanos tomaram medidas necessárias para conter a separatismo armênio. Além disso, para que isso fosse transformado em uma política de Estado, foi criado a Sociedade Histórica Turca cujo dever é fiscalizar o jeito que a história turca é contada, e capaz até de perseguir. Por isso, não é de assustar que somente 9% dos nacionais turcos reconhecem o genocídio armênio. Tudo isso redime a culpa turca.

Mas o leitor deve estar se perguntando: O que George Orwell tem a ver com isso tudo?

Pois bem, todos que leram e se lembram da história de “1984” devem se lembrar, talvez, que o mundo é divido por 3 super-Estados que sempre guerreiam entre si. Destes 3, é na Oceania que vive o Wiston, o personagem principal do romance. No entanto, é contexto distópico desse governo, controlado pelo Grande Irmão, que nos interessa.

Nesse governo temos o Ministério da Verdade cujo dever é de falsificar toda a literatura, livros e história do Partido que governo a Oceania. Com essa tarefa, que se apresenta constante e frenética para se adequar aos rumos da História, o Ministério da Verdade isenta o partido de qualquer erro ou absurdo. O Partido nunca erra, o Grande Irmão nunca errou. Nunca! Pode-se, então, relacionar essa instituição ao trabalho da Sociedade Histórica Turca cuja a responsabilidade foi apagar o Genocídio Armênio do imaginário e da história turca, dando legitimidade à nova República.

Outra instituição desse super-Estado fictício era a Novilingua. A novilingua era a linguagem do Partido que tinha função de limitar o pensamento e a tradução da realidade (o papel da língua) para uma forma estruturada e racional. Assim, a pessoas teriam dificuldade de expressar ideais contra o Grande Irmão, pois o vocabulário e gramática limitados impossibilitariam tal ação. Papel semelhante teve a mudança do alfabeto pelas reformas kemalistas. Ao dificultar o acesso da população aos antigos documentos do Império Otomano, Atatürk dificulta a incapacidade das pessoas traduzirem essa realidade pela linguagem.

Cabe dizer que, na Novilingua, existia uma palavra chamada “crimideia” que era a junção das palavras crime+ideia. Essa palavra significava o ato de raciocinar pensamentos ilegais e errados. Dessa forma, reconhecer a causa armênia, sendo turco, é ir contra as fundações da República Turca, ou seja, trair sua própria nação.

Assim, leitores, termino esse texto. Desculpe-me pelo seu tamanho, mas quis mostrar que as reformas executadas por Kemal Atatürk e as instituições delas vindas se assemelham muito, tanto em suas funções como formatos, com a estrutura usada pelo Partido ao governar a Oceania na distopia de George Orwell. Se ele se inspirou na Turquia para escrever seu romance, eu não sei e confesso que tive preguiça e desinteresse de pesquisar, mas o que eu sei que, na verdade, ficção e realidade não estão muito distantes. Somente cabe a nós, cidadãos que prezam a liberdade, vigiar e estar atento ao que nos é contado, nos é ensinado e nos é proibido.

Termino com uma frase do próprio “1984” que contém toda a essência desse texto:

Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.

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