A política externa de Ciro Gomes

Uma aliviação da proposta de política externa do candidato Ciro Gomes para o público geral. Os conceitos desenvolvidos pelas Relações Internacionais utilizados para fazer essa avaliação estão implícitos no texto. Assim qualquer conhecedor deles facilmente os identificará e o ritmo e entendimento da leitura não ficará comprometido para aqueles que não estão familiarizados com a linguagem internacionalista.

Gabriel Loureiro
Friday Night Talks
8 min readOct 4, 2018

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Os pilares da política externa (PE) brasileira quase sempre foram resumidos em duas palavras: autonomia e desenvolvimento. Num país onde durante muito tempo a ideia do nacional-desenvolvimentismo imperou nos governos centrais, não é de se esperar que algo diferente ocorra no Ministério de Relações Exteriores (Itamaraty). Indo além, o afastamento simbólico e prático da instituição responsável por ditar e conduzir as ações políticas internacionais do nosso país sempre permitiu que entrasse governo, saísse governo, e o mesmo programa, objetivo e orientação quase sempre se mantivesse na condução da nossa PE — especialmente após a última redemocratização. Historicamente, o Itamaraty sempre possuiu o monopólio da ação diplomática. Hoje, essa posição destacada na construção e condução da política pública exterior se encontra ameaçada.

É justamente nesse entendimento sobre PE como política pública que o programa de governo do candidato Ciro Gomes da coligação Brasil Soberano começa a marcar território no tema. Após breve declaração de como a política externa deve se submeter ao projeto nacional de desenvolvimento para ser uma forma de acelerá-lo, o plano de governo do candidato diz:

Engajamento de todo o Governo e toda a Nação na construção da política de comércio exterior. Ação diplomática não se confunde com formulação de política exterior, que é tarefa de todo o país e de seu governo. Política exterior é ramo da política, não do comércio: nossos pleitos comerciais têm melhor perspectiva de prosperar à luz de posicionamento consequente no mundo. Política exterior há de servir aos interesses e valores reais da nação, não à busca de protagonismo e prestígio. Deve subordinar o vistoso ao importante;

Parece ter acontecido nesse parágrafo uma mistura de conceitos e ideias que deixou “a coisa” meio confusa. Vamos analisar período por período:

  1. na primeira frase Ciro Gomes se preocupa com a participação de todo o seu governo na construção de uma política de COMÉRCIO (?) exterior. O que o candidato parece não conseguir entender é que o comércio internacional é apenas um dos ramos da política externa. É na definição da PE que se decide com quem negociar, onde, como e quando;
  2. nos dois períodos seguintes ocorre uma tentativa de correção que não passa de tentativa mesmo. Primeiro o candidato defende que todos os brasileiros participem da construção da PE — como deve ocorrer na boa e velha democracia. Mas depois ele volta a cair na tentação de separar política e comércio no âmbito internacional. O que ocorre aqui é a velha crítica do nacional-desenvolvimentismo as decisões acerca de acordos comerciais que o Brasil assina com seus parceiros. Na visão daqueles que seguem essa corrente de pensamento, o país sempre deixou a política corromper a tomada de decisão técnica, e assim acabar sempre por assinar acordos internacionais de comércio ruins. Uma generalização besta e muito simplista. Com o perdão da opinião, ainda não chegou o dia em que o comércio deixou de ser uma das mais importantes e vistosas imagens da política;
  3. nos períodos restantes o programa se atem a agredir gratuitamente o Itamaraty. Faz uma crítica forte ao afastamento político anti-democrático e elitismo historicamente predominantes na instituição. A última frase é o que popularmente pode ser chamado de “cutucada com classe”.
O candidato do PDT, Ciro Gomes. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

A seguir o candidato reforça o posicionamento atual do Brasil como “potência revisionista” para a reconstrução de nova ordem global com seus parceiros. Com qual objetivo? Mais uma vez, fortalecer o projeto nacional de desenvolvimento. Sendo bem sincero, não dá para entender muito bem o que o candidato quer dizer com uma política externa mais do que independente, transformadora. Aparenta transmitir a ideia de que o país deve lutar para a transformação da configuração global do poder. O que o candidato parece não saber é que conceitualmente, para as relações internacionais, agir de forma independente é lutar por essa reconfiguração. Pelo menos no que tange a política externa conceitualmente, o plano de governo parece abordar as palavras com certo sofismo e pouco conhecimento científico sobre os significados dos termos e ações.

Então o candidato começa a desenvolver suas ideias sobre a participação nacional na América do Sul. Nesse ponto o candidato dedica maior parte da sua atenção na PE do plano de governo, dando muita importância a liderança regional do país na América do Sul. Ciro Gomes defende o desenvolvimento de uma política de dois caminhos com o fortalecimento do Mercosul e a reativação da Unasul. Esse tipo de desenvolvimento do poder regional brasileiro em duas frentes foi posta em prática nos anos em que Celso Amorim comandou o ministério — ou seja, não é novidade, contraditório ou impossível. Para o primeiro, a proposta é não fincar bandeiras: deve-se usar o Mercosul para aproximação política, não dando muita importância para a flexibilização da união aduaneira ou o aprofundamento do livre comércio no bloco. O famoso “o que rolar, rolou”. Para o segundo, a aposta está numa construção social e política que torne inevitável a integração institucional das nações. Sem uma iniciativa proposta ou imposta, mas o acúmulo de ações de engajamento comum. Ciro Gomes se preocupa em desempenhar a liderança natural do Brasil, mas levar em consideração os problemas que o país causa aos outros. Essa contradição entre poder e liderança saudável está enraizada na visão de mundo nacional-desenvolvimentista. Parece não haver nesta uma possibilidade de crescimento alto e estável para nações que possuem ampla abertura e irrestrita o máximo possível ao comércio exterior e o exercício de uma liderança política regional/global saudável.

Uma pequena observação: em nenhum momento o candidato fala diretamente e/ou explicitamente da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). O plano fala em “reanimação do nosso projeto sulamericano” seguido pelo termo União da América do Sul. A UNASUL foi uma das principais iniciativas dos governos Lula e Dilma no âmbito da PE. Pra quem sabe ler, pingo é letra.

Voltando a falar do projeto de liderança, integração e desenvolvimento do país no continente, a proposta é usar o Mercosul para unir cadeias de produção, economias, estratégias de defesa e GOVERNOS LOCAIS. Esse último ponto é o que temos de mais incomum com relação aos diversos planos de aproximação do subcontinente através da liderança brasileira. Ciro Gomes deixa bem explícita sua intenção de transmitir parte da responsabilidade para os estados — especialmente os fronteiriços. Bem, numa república federativa com uma fronteira terrestre tão extensa como a nossa, deveria essa ser a prática comum. Ainda assim, esse é apenas um aumento de escopo na discussão acerca do controle fronteiriço através do planos de integração com nossos vizinhos, não representa uma inflexão drástica da política externa.

Foto: Agência Brasil

O tempo inteiro o projeto de governo aborda as organizações internacionais como a única forma que o país tem para mudar a ordem política global. Enquadra o Brasil como um Estado afetando a política mundial através do multilateralismo. Fala em governança global sem um governo internacional, fala em valorização das instituições regionais como forma de fazer o que na ciência Relações Internacionais se chama de balanceamento — aproximação diplomática de vários países que não são potências globais para se fazer frente aos que são — fala no respeito aos acordos internacionais que buscam construir uma forma de uso comum dos recursos, como o meio ambiente. Mas em nenhum momento fala da Organização das Nações Unidas (ONU), os órgãos ligados a ela e suas propostas de reforma. Inclusive, SEMPRE foi bandeira da diplomacia brasileira a reforma do órgão mais poderoso da ONU — o Conselho de Segurança das Nações Unidas — como mudança da configuração mundial de poder. Não falar da ONU e da importância brasileira nela é uma negação a nossa história, a nossa capacidade política e a tudo de bom que ser brasileiro representa na comunidade internacional.

Ciro Gomes aborda as relações com Estados Unidos da América e China com medo. Fala que as empresas desses países são muito boas para se instalarem no nosso país nas áreas de tecnologia e não-estratégicas afim de que transfiram tecnologia para cá e gerem empregos. Mas trata sempre as relações do Brasil com eles num jogo entre nação fraca (nós) e nações poderosas que querem neocolonizar, endividar e mandar na nossa nação. Outra vez, visão comum da ideia nacional-desenvolvimentista: aqueles que possuem maior poder econômico são o problema e não querem que os demais cheguem no mesmo patamar de desenvolvimento. “O problema são os outros”. Ainda sobre a China, ou quase, o plano de governo aborda o BRICS (união entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o IBAS (mesma proposta da anterior sem China e Rússia) como grandes instrumentos para mudança da configuração global do poder político. Ou seja, fazer balanceamento entre Brasil, Índia e África do Sul junto com o poder econômico da China e a influência política da Russia para fazer valer a voz do nosso país nas arenas internacionais de discussão política.

Sobre África o candidato fala em reconstrução das relações em “bases generosas” e contrapondo a captura dos interesses políticos feito pelas empreiteiras brasileiras denunciadas e julgadas nos recentes escândalos de corrupção. Uma vertente da PE nacional bem desenvolvida para relação com os países africanos seria extremamente importante. Existem diferentes iniciativas de desenvolvimento político e econômico muito positivas e inovadoras naquele continente que trariam pontos extremamente positivos para o Brasil. Também é inegável o mal que as empreiteiras brasileiras fizeram à política da nossa nação e dos países amigos . Agora, o que significa “bases generosas”?

Para finalizar, o candidato propõe uma agenda reformista internacional que vai da superação do dólar como moeda internacional (QUE?!), passa pela mudança na ordem de comércio global e termina numa “ordem de segurança” que possa constranger as ações unilaterais das grandes nações. Bem, a ONU e o Conselho de Segurança das Nações Unidas existe para isso. Acordos como o TIAR (tratado internacional onde as nações do continente americano prometem atacar países de fora que tomarem a iniciativa de usar meios militares contra a América) ou até mesmo a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) fazem com que qualquer líder político pense duas vezes antes de autorizar um ataque militar unilateral. Fala em diálogo com o Senado e toda a nação para dirigir as ações internacionais do país, inclusive fala em trazer a discussão sobre política externa para o centro da vida pública brasileira. Proposta muito nobre e necessária, mas permeada de entendimentos e visões de mundo muito distantes do que de fato significam e são as coisas. Nos mais, de uma forma geral, as propostas significam uma inflexão de política externa das menos drásticas — a PE continuará pautada em autonomia e desenvolvimento, mas com mudanças de escopo e direcionamento de energia. O Ciro Gomes dá voz à visão nacional-desenvolvimentista da nossa política externa brasileira.

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