Accountability
Em busca de uma tradução
O discurso antielitista é poderoso. Quando o “Podemos”, partido espanhol, cunhou o termo “casta”, para se referir a certa elite política, ninguém previu sua fulminante disseminação — se espalhou como um vírus nos discursos midiáticos e nas conversas de calle. O termo abriu caminho para ascensão do partido em curto espaço de tempo. Um discurso não é poderoso por si só, é verdade — depende de seu contexto: sua força vem da capacidade traduzir uma “realidade latente”, um fenômeno perceptível que não encontrou descrição adequada. Era essa a situação da Espanha na época e é essa a situação do Brasil hoje.
Existe uma disputa pela caracterização dessa elite no Brasil. É possível identificar dois discursos: de um lado temos a fala de Ciro Gomes, Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos. A “casta” brasileira, para eles, seria a “plutocracia rentista” — aqueles que exploram o rendimento dos altos juros do Brasil, distorcendo o mercado financeiro no país: ao invés de ser um instrumento para disponibilizar capital para o setor produtivo, se torna uma ferramenta para subordinar o setor produtivo aos interesses dessa elite, fundamentalmente os seus lucros. Eles são um entrave ao setor produtivo do país. Uma evidência dessa perversidade seria o recorde de lucro dos bancos durante o recente período de recessão
Do outro lado temos os professores Edmar Bacha, Samuel Pessôa e Gustavo Franco. Desde sua perspectiva, a “casta” brasileira seria formada pelos grupos de interesse que exercem pressão no Estado a fim de conseguir privilégios às custas da maioria desorganizada. Esses grupos prejudicam a saúde fiscal do país e sua plena integração ao comércio internacional e as cadeias globais de valor. As evidências desse fenômeno seriam os subsídios das indústrias automotivas, as pensões militares ou a taxa juros subsidiada do BNDES.
É preciso observar que por trás desse discurso antielitista existe a defesa de uma elite ideal. Vivemos num mundo schumpteriano: o poder é disputado entre diferentes elites. O nosso modelo de sociedade exige elites político-econômicas — elas ocupam os centros decisórios do Estado e das empresas. Esses grupos têm ideias distintas sobre quem seria essa elite. O primeiro grupo sonha com uma elite formada por políticos nacionalistas no comando do Estado aliados a empresários industriais nacionais. O argumento é: nenhum país do mundo conseguiu se desenvolver sem um parque industrial expressivo, e essa simbiose de Estado e empresariado foi a receita em outros lugares do mundo — e é desejável reproduzi-la no Brasil. A política ótima, nesse caso, são as políticas industriais.
O segundo grupo sonha com uma elite empresarial integrada com os mercados internacionais — competitiva e altamente produtiva — aliada a políticos no comando do Estado que permitam e incentivem essa integração. O argumento é: nenhum país conseguiu se desenvolver sem se integrar às cadeias globais de valor. A política ótima é a abertura comercial do país e sua integração com os mercados internacionais.
As críticas ao primeiro grupo dizem respeito à discricionariedade nas políticas industriais. O excesso de poder nas mãos de políticos e burocratas para distribuir subsídios e facilidades é uma abertura para o patrimonialismo — a problemática confusão entre público e privado — presente de longa data na política brasileira. As críticas ao segundo projeto seriam que, por trás de uma verborragia tecnicista, existe a intenção de defender os interesses dos financistas — maiores beneficiados com a globalização — e manter o Brasil como exportador de produtos primários e na posição de subordinado na ordem internacional. Seria um projeto do status quo.
Nessa disputa, a máxima de César é válida: não basta o projeto ser honesto, ele deve — também — parecer honesto. E, por isso, a “accountability” seja um critério decisivo. “Accountability” é um anglicismo que expressa uma mistura de transparência com participação. O Brasil passa por uma mudança de ciclo político. O projeto vindouro com o novo ciclo só se estabelecerá caso o seu centro for transparência e a participação. A “accountability” é central — precisamos traduzi-la na linguagem e na prática.