Bolsonaro [e os demais presidenciáveis] deve se preocupar com a dívida histórica [da escravidão]? Michael Sandel pensa que sim.

Questões de história e justiça.

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4 min readAug 17, 2018

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Jean-Baptiste Debret retratou a realidade da escravidão brasileira como poucos.

Embora Sandel nunca tenha dito isso, é possível argumentar que ele diria — se consideramos sua posição no livro “Justiça”. Michael Sandel é professor de Harvard e publicou o livro em 2009. No livro, o autor considera obrigações de ordem coletiva — como é o caso da dívida histórica — como fundamentais para um conceito de justiça satisfatório. Abre-se o debate: é justo herdamos responsabilidades de atos cometidos pelas comunidades nas quais nascemos?

Michael Sandel ministra um curso sobre justiça em Harvard. O curso virou livro: “Justiça — o que é fazer a coisa certa”. No livro, o autor expõe inúmeros conceitos de justiça: o utilitarista, o libertário, o aristotélico e os liberais kantiano e rawlsiano. No final do livro, o autor defende a sua posição em contraponto com as teorias mais aceitas atualmente — as teorias liberais de justiça. De acordo com as teorias liberais, as obrigações morais derivam apenas de duas fontes: (1) os deveres naturais: o respeito às liberdades/direitos dos demais membros da comunidade; e (2) e dos acordos voluntários: esses requerem consentimento. Para agir de forma justa, basta ter zelo com as liberdades/direitos dos demais e cumprir os compromissos com os quais você concordou.

Sandel defende que exista uma terceira fonte de obrigações morais: (3) temos compromissos com as ações praticadas pela comunidade na qual nascemos — o que o autor chama de obrigações de solidariedade. As comunidades humanas não seriam somente amontoados de indivíduos, elas são constituídas de cultura e história — e essa história atravessa a própria constituição do indivíduo e como ele se narra. Sandel exemplifica mostrando como achamos correto que a sociedade alemã se desculpe com a comunidade judaica — entre outros exemplos de crimes de guerra.

Michael Sandel é um dos principais professores da faculdade de Direito em Havard.

A partir dessa perspectiva, seria razoável que Bolsonaro [e os demais presidenciáveis] se preocupasse com a dívida histórica oriunda da escravidão. A indagação sobre o assunto surgiu no Roda Viva pela jornalista Maria Cristina Fernandes, ligada ao Valor Econômico — o tema eram as cotas raciais. A resposta do capitão reformado foi dupla: (1) ele não tinha pessoalmente escravizado ninguém; e (2) as cotas raciais não seriam justas com um(a) filho(a) de pai nordestino também pobre, por exemplo. É uma resposta perfeitamente compatível com conceito liberal de justiça construído por Sandel — Bolsonaro não consentiu pessoalmente com a escravidão, portanto não tem responsabilidade para com ela; e o pagamento da dívida histórica por meio de cotas raciais introduz uma discriminação injusta, portanto fere a liberdade de outros. Agora, se somos sensíveis ao exemplo de Sandel e acreditamos na justiça do pedido de desculpa da sociedade alemã pelo holocausto nos anos 40, porque não seria razoável que a sociedade brasileira reparasse a comunidade negra por séculos de escravidão encerrados um pouco mais de 100 anos atrás?

Bem, o tema é controverso. É difícil estabelecer critérios claros — qual a dimensão da dívida histórica? Até quando e como reparamos a dívida? Os pardos estão incluídos no grupo de reparados? Apesar desse tema ser controvertido, o racismo é uma questão assentada na sociedade brasileira — existe ciência que esse é um problema que a atravessa. A evidência disso são as leis de injúria racial e de crime de racismo (que não teriam justificativa se o país fosse isento de racismo): é verdade que as leis não fazem referência direta a raça negra, mas é possível apelar a um senso comum de que os membros da raça negra são os que mais recorrem a ela — vide noticiário. E esse racismo está diretamente associado ao passado escravocrata.

É importante lembrar: o argumento da dívida histórica não é o único usado para defender as cotas raciais. Também existe a ideia de ampliar a diversidade das instituições e dos extratos sociais a fim de torná-los que mais parecidos com composição geral da sociedade: teríamos negros e pardos no judiciário, nos hospitais, na diplomacia em proporções semelhantes ao que temos na sociedade brasileira no geral.

A questão da dívida histórica é um tema importante e diz respeito a nossa relação com a história dos grupos aos quais fazemos parte — pátria, família entre outros. A história é uma narrativa da qual tiramos lições para entender e se conduzir no presente ou é — também — uma fonte que nos informa das nossas responsabilidades coletivas?

Assina: Bruno Dias

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