No três-meia-três

Gabriel Loureiro
Friday Night Talks
Published in
3 min readAug 17, 2018
A política sedo discutida no lugar mais popular de todos:o ônibus.

Era um dia normal para Carlos. Ele acordou as quatro da manhã, cumpriu sua rotina matinal e saiu para o trabalho. Chegou na empresa por volta das cinco, bateu seu ponto na secretaria e foi até a garagem pegar seu carro. Estava tudo certo com o ônibus, então ativou a máquina do bilhete eletrônico e iniciou sua viagem até o ponto final. Até aí continuava tudo normal.

Na primeira viagem de ida nada novo. Os mesmos passageiros de sempre foram entrando até a não haver espaço nem para as baratas que caminham pelo ônibus de madruga enquanto ele está estacionado na garagem. Os passageiros que embarcam na metade da viagem sempre ficam antes da catraca — não há espaço para eles lá atrás. Por isso todos já se tornaram amigos a ponto de criar um grupo na rede social whatsapp chamado “Amigos do 363”. O tema da conversa de hoje, ao vivo e “no virtual” era a organização da festa junina da galera.

Mas então chega um estranho no ninho: um passageiro novo, nunca visto naquele ônibus, naquele horário, naquele ponto. Parecia ter em torno de 50 anos e estava vestido de tênis, calça jeans e blusa social.

- Aí! Acabou de passar um carro cheio de bandido tudo armado dentro — disse o manis novo candidato à amigo do 363.

- Pouca vergonha, né. O poder público tá uma merda! Plena luz do dia, seis horas da manhã… — Foi a resposta de Chico.

Chico é um quase aposentado e morador do subúrbio do Rio de Janeiro cujo trabalho consiste em ser segurança de uma galeria comercial no bairro de Copacabana, área nobre da cidade.

- Aí os caras vão distribuindo na pista, assaltando trabalhador, velha, estudante… Agora é a hora que eles garantem o dia, aproveitam o horário de fluxo — completou o novato do ônibus — A gente se fode aqui, enquanto os caras lá de terno e gravata tão em casa, de segurança…

- Você viu o Ca***? Antes assumia que tinha roubado só 20 milhões. Por**, francamente, roubou só 5% do que a investigação disse? Aí ontem admitiu que “se corrompeu ao poder” e tem mais de 100 bilhões de dólares na conta da Suíça — Carlos aproveitou para demonstrar seu conhecimento sobre as notícias do momento.

Nosso amigo motorista está sempre dirigindo com um fone de ouvido na orelha esquerda. Essa é uma prática comum entre os colegas de profissão, mas diferente deles, Carlos não escuta música: aproveita os momentos de tranquilidade no trânsito para ir acompanhando o noticiário do rádio. Um ouvido no jornal, o outro nos passageiros e os olhos para além do para-brisa — era esse o seu lema, orgulhava-se disso.

- Sem vergonha, né. E pior: daqui a pouco tá solto.

- Tá lá com 20 condenações, mais de 100 prisões…

- Mais daqui a pouco tá solto.

- Não sei não, ein — exclamou o novo passageiro interrompendo a troca de indignações dos outros dois interlocutores.

- Vem um alguém engravatado lá de Brasília e solta ele — disse Carlos tentando conscientizar o novo passageiro enquanto todos os outros passageiros fechavam suas feições para a incerteza do estranho passageiro.

- É, mas aí pega um Moro da vida — começou a se explicar — Aí, esse cara é maluco. Ele vem e fod* ele pra sempre. Aí! O moro é … Vai dizer?!

- Moro é bom mesmo. Aquele Bretas também é bom.

- É o Bretas é bom também.

- Vou falar uma coisa: sem o Ministério Público a gente tava é fod*** de vez! — profetizou nosso mais novo amigo do 363 enquanto todos que estavam do lado de cá da roleta movimentavam suas cabeças em sinal de aprovação.

Nesse momento Carlos parou o ônibus. Muitos passageiros desembarcaram e todos os restantes conseguiram passar pela catraca. A conversa acabou, mas, aparentemente, todos os amigos do 363 — velhos e novos — já tinham escolhido os atuais heróis e vilões nacionais. E o dia continuava normal para Carlos.

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