A crise dos partidos tradicionais: o desafio do antiestablishment
Fernando Casal Bértoa e José Rama
Fernando Casal Bértoa é professor associado de política comparada da Universidade de Nottingham e codiretor do Centro de Pesquisa para o Estudo dos Partidos e da Democracia (REPRESENT). José Rama é professor visitante de ciência política da Universidade Carlos III de Madri.
Nas últimas décadas, sobretudo após a Grande Recessão iniciada em 2008, vem declinando cada vez mais o apoio aos partidos políticos tradicionais. Crescentemente, os cidadãos enxergam os partidos como entidades corruptas que, em vez de representar os interesses de seu eleitorado, comportam-se como “empresas públicas” ou agentes do Estado. De fato, dados de 2019 do Eurobarômetro mostram que as pessoas confiam menos nos partidos e nas instituições representativas por eles controladas, do que em entidades como a polícia e o Exército nacional, que não são representantes eleitos do povo e não podem ser responsabilizados nas urnas. Os partidos políticos são de longe os que possuem o menor grau de confiança entre as instituições cívicas incluídas na pesquisa, uma triste proporção de 22% dos respondentes (ver Figura 1). Os efeitos desse descontentamento são evidenciados pela decrescente identificação e filiação partidária e níveis de comparecimento às urnas. Entre os cidadãos que ainda vão às urnas, muitos apostam em diferentes partidos a cada eleição, com predileção por novos partidos. E estes, quando vitoriosos, costumam se apresentar como oposição ao establishment político.
Como podemos observar na Figura 2, a proporção de votos para partidos contrários ao establishment político aumentou consideravelmente desde os anos 1960, e especialmente durante a última década. Essa tendência afetou partidos em todo o mundo e envolveu ambos os lados do espectro político, embora tradicionalmente o populismo de esquerda (socialista) tenha sido mais bem-sucedido na América Latina e o populismo de direita (nativista), na Europa. Os pesquisadores não ficaram parados e, nos últimos anos, assistimos à proliferação de publicações explorando as causas e consequências da ascensão dos partidos antiestablishment.
Quanto às consequências, duas são consideradas as mais importantes: a desinstitucionalização e as mudanças no sistema partidário, por um lado, e a ascensão do iliberalismo e do retrocesso democrático, por outro. Parece haver uma falta de consenso entre os estudiosos quando se trata de saber se o sucesso eleitoral desses partidos corrói ou fortalece a qualidade da democracia. Uma corrente de pensamento defende que os partidos antiestablishment em geral, e os partidos populistas em particular, são perniciosos porque constituem uma “inversão perversa dos ideais e dos processos democráticos”. Outro grupo vê o populismo mais como uma oportunidade do que uma ameaça: esses pesquisadores consideram a onda política antiestablishment um sinal de alerta que poderia levar à “democratização da democracia, ao permitir a agregação de demandas daqueles pertencentes a setores politicamente excluídos”. Outros analistas argumentam que o efeito líquido do populismo sobre a democracia não é pré-determinado e precisa ser mensurado empiricamente. Como resumem Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser: “Dependendo de seu poder eleitoral e do contexto no qual ele surge, o populismo pode ser tanto uma ameaça quanto um corretivo para a democracia”.
Olhando de outro ângulo, nossa visão sobre o impacto de partidos antiestablishment sobre a democracia dependerá de nosso entendimento mais amplo do que constitui a democracia e como ela deve funcionar. O populismo pode não necessariamente ir contra certas concepções de democracia sem adjetivos. A coisa muda de figura quando olhamos para os partidos antiestablishment em relação à democracia liberal.
Se definirmos a democracia liberal como um regime político que não apenas respeita a soberania popular e a regra da maioria, mas também estabelece instituições independentes dedicadas a proteger direitos fundamentais como a liberdade de expressão e os direitos de minorias, então claramente emerge uma relação negativa. Por defenderem a supremacia irrestrita da vontade popular (ou a vontade de determinada classe ou raça) e fundamentalmente rejeitarem “as noções de pluralismo e, portanto, do direito de minorias, bem como as ‘garantias institucionais’ que visam protegê-las”, os partidos antiestablishment — sejam eles populistas, fascistas, comunistas ou de outra natureza — estão em contradição com o componente liberal da democracia. Confirmando essa hipótese, um estudo recente que conduzimos em 28 países da União Europeia baseado em dados desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) mostra que, mesmo considerando outros fatores (econômicos, institucionais, sociológicos e temporais), a democracia liberal se deteriora à medida que esses partidos se tornam eleitoralmente mais bem-sucedidos. Nossos resultados demonstram, ainda, que outros aspectos da democracia (eleitoral, deliberativo e, em menor grau, participativo) também são prejudicados. Esses achados ressaltam que partidos antiestablishment em geral, e partidos populistas em particular, são um problema real para a democracia.
Doença ou sintoma?
Se a ascensão dos partidos antiestablishment de fato ameaça a democracia, o que pode ser feito a respeito? Para responder esta questão, precisamos primeiro entender quais fatores motivam o apoio a essas forças antiestablishment. Pesquisadores identificaram três fatores principais: desaceleração econômica (especialmente a recessão pós-2008), mudanças sociais (o enfraquecimento de clivagens tradicionais, como classe e religião, bem como a emergência de novas divisões em questões como globalização, desestatização e imigração), e a crise institucional (especialmente em partidos políticos tradicionais).
Em um recente estudo que analisou as democracias mais consolidadas da Europa Ocidental desde 1848, concluímos que o mau funcionamento dos partidos políticos tradicionais — especialmente em termos de representação e mobilização — foi crucial para o sucesso eleitoral de partidos antiestablishment, sobretudo a partir de 2008. De fato, a crise dos partidos tradicionais tem sido ainda mais significativa nesse sentido do que as transformações sociais como a globalização e a secularização. Ao contrário de nossas expectativas iniciais, o desenvolvimento econômico per se, e até mesmo a crise econômica de 1929, não foram fatores determinantes do apoio a atores políticos antiestablishment, mas a crise econômica global pós-2008, que além de econômica foi também sociopolítica, desempenhou esse papel. Em 1929, os partidos tradicionais eram fortes, e os partidos antiestablishment prosperaram por diferentes motivos (em particular, na sequência da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa). Muitas das democracias que entraram em colapso no período entreguerras, de fato, o fizeram antes da crise de 1929 (como em Portugal, Espanha, Polônia, Itália, San Marino e Iugoslávia). A recente ascensão dos partidos antiestablishment, em contraste, aconteceu sobretudo desde 2008 (como na Espanha, Grécia, Hungria e Alemanha). Novamente, no entanto, não foi a crise econômica per se que produziu esse efeito, mas o impacto da crise em um ambiente com partidos políticos já fragilizados. Quando a Grande Recessão atingiu as democracias da Europa Ocidental, que já se encontravam sob pressão por conta das disfunções dos partidos tradicionais, ela produziu rachaduras que se transformaram em abertura política para as forças antiestablishment.
Em outras palavras, a verdadeira doença que aflige as democracias representativas é a crise dos partidos políticos tradicionais — a ascensão dos partidos antiestablishment é meramente um sintoma. É importante termos isso em mente na busca pela cura. Há um leque de opções disponíveis às forças políticas tradicionais, que chamamos de extirpação, marginalização, acomodação e regeneração. Apenas uma dessas estratégias, no entanto, promete dar conta do mal-estar democrático subjacente: o desencantamento dos cidadãos com partidos tradicionais que foram incapazes de se adaptar à nova realidade social e, portanto, de representar o interesse de seu eleitorado.
Quatro remédios, mas somente uma cura
Acadêmicos costumam classificar as estratégias dos partidos tradicionais em relação aos partidos antiestablishment em duas categorias: inclusão e exclusão. O último termo cobre a demonização retórica, erguendo um cordão sanitário alijando esses partidos do processo de governança, e a chamada opção nuclear de restrições legais. A primeira categoria inclui táticas de cooptação e colaboração, que tratamos aqui como parte da mesma estratégia de acomodação. Para além dessa dicotomia encontra-se uma alternativa mais audaciosa, que chamamos de regeneração.
Extirpação. Adotar uma estratégia de extirpação (mais precisamente, de proibição) em resposta a partidos antiestablishment representa três grandes conjuntos de problemas: moral, legal e prático. Estudiosos e profissionais vêm debatendo a legitimidade moral de tais medidas há muitos anos. Desde que Karl Loewenstein, escrevendo sobre a ocupação nazista na Alemanha, introduziu o conceito de “democracia militante”, muita tinta foi gasta com reflexões sobre a legitimidade da proibição de partidos. Alguns argumentam que proibições são necessárias para permitir à democracia proteger-se de tomadas autoritárias de poder na linha da fascista “Marcha sobre Roma” na Itália em 1922 ou o “Fevereiro Vitorioso” dos comunistas na Checoslováquia em 1948. Para outros, a proibição de partidos políticos vai intrinsicamente contra os princípios democráticos fundamentais da liberdade de expressão e de associação.
Defensores desse último ponto de vista argumentam que, em uma democracia, todos os membros do público — incluindo as forças políticas de extrema-direita (fascista, nacionalista, clerical) e de extrema-esquerda (comunista, bolivariana) — possuem o direito de formar um partido para alcançar seus objetivos políticos, desde que tais objetivos sejam perseguidos de maneira democrática e não violenta. Os que defendem a perspectiva oposta contra-argumentam que as experiências da Alemanha, Itália, Hungria, Rússia, Turquia e Venezuela, para citar apenas algumas, demonstram que, uma vez no comando, partidos extremistas rapidamente começam a desmontar o sistema democrático que tão generosamente permitiu-os alcançar o poder. O resultado é o mergulho no totalitarismo, no autoritarismo competitivo ou, na melhor das hipóteses, na democracia iliberal.
Um segundo conjunto de problemas dessa abordagem diz respeito à legalidade: a proibição de partidos políticos está em acordo com os “padrões legais” ou as “melhores práticas” internacionais? Sobre o primeiro, o artigo 22 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 limita qualquer restrição à liberdade de associação àquelas “que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.”. Essa provisão, que foi livremente copiada em outros diplomas legais como a Convenção Europeia dos Direitos Humano (art. 11), foi interpretada de maneiras distintas em diferentes países. Enquanto as legislações europeias, em sua maioria e em algum momento, consideraram necessário adotar a proibição de partidos, na América do Norte isso não aconteceu. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de modo geral, entende que, embora as democracias tenham o direito de se defender contra partidos extremistas, proibições só são legítimas quando há evidência plausível de que as ações e a retórica do partido colocam a democracia em risco, e não quando o partido — usando meios legais e democráticos — simplesmente promove mudanças legais ou constitucionais que são compatíveis com princípios democráticos fundamentais.
Reconhecer “melhores práticas” no que se refere à proibição de partidos — podemos identificar uma “regulação modelo” nessa área? — é mais complicado. Em alguns sistemas legais, partidos são proibidos somente com base em seus atos (como na Espanha, Eslováquia e República Checa), enquanto outros também permitem tais ações com base na ideologia do partido (como na Alemanha e Turquia). Há também diferenças com relação a se os partidos podem ser proibidos para prevenir danos “potenciais” (com origem, por exemplo, em ideologias antidemocráticas ou separatistas) ou apenas em resposta a danos “reais” (como em caso de organização interna não democrática, ausência de transparência fiscal, e semelhantes). Há uma área de convergência, no entanto: a maior parte das legislações europeias, ao menos, concordam que a proibição de partidos deveria ser considerada uma medida excepcional, a ser “aplicada apenas em casos extremos […], após todas as medidas menos restritivas terem se mostrado inadequadas”, ou seja, apenas quando “o partido em questão usa violência ou ameaça a paz e a ordem constitucional democrática do país”.
A proibição de partidos, em resumo, é aceita como moral e legalmente legítima em muitos países. Também é extremamente popular, e essa abordagem “militante” para defender sistemas democráticos recebe apoio mesmo entre cidadãos que possuem atitudes mais negativas em relação à democracia. No entanto, a questão de se a proibição de partidos é efetiva permanece. A análise das experiências democráticas europeias desde o fim da Primeira Guerra Mundial mostra que a proibição de partidos foi bem-sucedida em alguns casos, mas fracassou em outros. Em um dos mais conhecidos exemplos de sucesso, tanto o neonazista Partido Socialista do Reich quanto o Partido Comunista foram banidos na Alemanha nos anos 1950, levando à estabilização do sistema partidário em torno dos socialistas, liberais e democratas-cristãos, e a consequente consolidação da democracia. Similarmente, a proibição do Partido Comunista e do Movimento de Lapua, de extrema-direita, no início dos anos 1930 ajudou a Finlândia a evitar a tomada autoritária, como ocorreu nas vizinhas Estônia e Letônia.
Em contraste, a proibição mostrou-se pouco efetiva na Turquia, de longe o país europeu com maior número de proibições. Esse caso ilustra claramente uma das maneiras pelas quais a proibição de partidos pode sair pela culatra: a refundação do partido. O Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Recep Tayyip Erdogan, que venceu nas urnas em 2002 e passou a desmontar gradualmente a democracia liberal do país, entrou em cena como o sucessor mais moderado de antigos partidos islamitas que foram dissolvidos judicialmente (o Partido do Bem-Estar e o Partido da Virtude, banidos em 1998 e 2001, respectivamente). Para ser efetiva, a proibição de partidos antiestablishment precisa ser contínua.
A proibição de partidos também fracassa devido a eventuais mudanças na lei ou na jurisprudência. É precisamente o que aconteceu na Espanha com o EH Bildu, o mais recente sucessor do braço político (Batasuna) do movimento separatista basco conhecido como ETA. Houve seguidas tentativas de proibir essa agremiação política: o Batasuna foi proibido em 2003, e o antecessor imediato do EH Bildu (chamado simplesmente Bildu) foi brevemente banido em 2011, antes de essa decisão ser revertida pelo Tribunal Constitucional da Espanha. Apesar de tais esforços, no momento da elaboração deste ensaio o EH Bildu era o segundo partido mais importante no parlamento do País Basco. Seu sucesso serve de lembrança de que a proibição de partidos pode, ao conferir a essas forças políticas uma aura de mártir, acabar tendo o efeito oposto do desejado.
Marginalização. Uma segunda estratégia usada contra atores políticos antiestablishment visa eliminar seus partidos não legalmente, mas psicologicamente. Consiste em marginalizá-los tratando-os como párias, alijando-os do processo decisório e da formação de governos e, em muitos casos, até mesmo evitando fazer referência a eles. Embora muitos possam considerar essa abordagem menos democrática, especialmente quando o partido em questão é o maior no parlamento (como no caso do partido pró-Rússia “Harmonia” na Letônia), quando comparada com proibições legais parece mais alinhada com as liberdades de expressão e de associação, bem como os princípios de representação.
Talvez o exemplo mais bem-sucedido dessa abordagem venha da Checoslováquia do período entreguerras, onde os chamados Petka (partidos socialistas, agrários, democratas-cristãos, conservadores e nacionalistas) uniram-se e formaram amplas coalizões de governo para defender a democracia tanto contra comunistas como contra nacional-socialistas alemães. Partidos tradicionais envolveram-se em prática similar durante a chamada Primeira República Italiana (1946–94), direcionada contra partidos comunistas e neofascistas.
A principal fraqueza dessa estratégia é que pode ser muito difícil de sustentar. Seu sucesso depende da adesão de todos os partidos, incluindo os novos. Mesmo na Itália, o chamado compromesso storico nos anos 1970 (que envolveu o partido Comunista ceder seu apoio externo a governos democratas-cristãos) ameaçava pôr um fim ao cordão sanitário do país contra a extrema-esquerda. Além do mais, mesmo onde os partidos tradicionais aderem a uma política de marginalização no nível nacional, seus representantes em legislaturas subnacionais podem desertar. Isso aconteceu com o Partido Comunista da Checoslováquia, a Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, e o Vox da Espanha, radical de direita. Essa abordagem “parcial” diminui a efetividade de longo prazo de uma estratégia de marginalização.
Os partidos também se diferenciam em relação ao grau de “discriminação política” que deveria ser aplicada por uma estratégia de marginalização. Enquanto alguns partidos defendem que qualquer tipo de colaboração, seja governamental, parlamentar ou eleitoral, esteja fora de questão, outros não entendem que aceitar apoio parlamentar de partidos antiestablishment sem oferecer em contrapartida nenhuma presença real no gabinete seja uma violação do cordão sanitário. Além do caso italiano mencionado anteriormente, isso aconteceu com o Partido Popular Dinamarquês no nível nacional e, mais recentemente, com o Vox em algumas regiões da Espanha.
Terceiro, a marginalização — assim como a proibição de partidos — pode provocar um efeito bumerangue. Ao apresentar partidos antiestablishment como “extremistas” e dizer que seus apoiadores estão “desperdiçando” seus votos, os partidos tradicionais podem acentuar o status de “outsider” de seus rivais antiestablishment, consequentemente fortalecendo a solidariedade entre seus apoiadores e encorajando ainda mais sua radicalização. Ao explorar seu status autodeclarado de “mártires” da democracia, os partidos antiestablishment podem até mesmo aumentar seu apelo eleitoral. Os partidos tradicionais da Suécia, por exemplo, perseguiram uma estratégia de marginalização vis-à-vis o populista radical de direita Partido dos Democratas Suecos (SD), com partidos de centro-direita chegando inclusive a apoiar um governo minoritário de esquerda incluindo partidos social-democratas e verdes. No entanto, em vez de esmagar o SD, essa estratégia coincidiu com um aumento de 12 pontos percentuais no apoio eleitoral ao partido ao longo de apenas oito anos. E o mesmo pode ser dito em relação a outros partidos que atualmente compõe o grupo populista de direita ironicamente chamado de Identidade e Democracia no Parlamento Europeu.
Em suma, com partidos antiestablishment em ascensão, o custo de estratégias discriminatórias em relação a eles mostrou-se insustentável em muitos países e, mais recentemente, muitos passaram de “párias a parte do poder”. Exemplos recentes de partidos antes marginalizados ganhando acesso ao governo abundam, incluindo tanto atores de direita (o Partido dos Finlandeses, a Aliança Ortodoxa Popular na Grécia, a Nova Aliança Flamenga na Bélgica, o Partido do Progresso na Noruega) quanto de esquerda (o Partido da Refundação Comunista na Itália, o Autodefesa na Polônia, o Partido da Esquerda Socialista na Noruega, o Podemos na Espanha). Na Grécia e na Itália, por exemplo, partidos populistas conquistaram apoio eleitoral suficiente para formar seus próprios governos de coalizão em cooperação mútua.
Acomodação. Um terceiro remédio possível é a acomodação. Em vez de tentar varrer esses atores do mapa político, essa solução alternativa implica aceitar os partidos antiestablishment como parte do cenário político e, ao mesmo tempo, tentar neutralizá-los acomodando suas queixas. Partidos tradicionais, por exemplo, podem tomar para si algumas questões programáticas dos partidos antiestablishment (como limites à imigração ou combate à corrupção), permitindo que influenciem de fora o processo de formulação de políticas públicas, ou até mesmo incorporando-os ao governo. O raciocínio por trás do “se não consegue vencê-los, junte-se a eles” se divide em dois: por um lado, busca socializar os partidos antiestablishment no processo de governar e, por outro lado, força-os a assumir a responsabilidade pelos resultados das políticas adotadas (incluindo a culpa por efeituais fracassos). Em outras palavras, faz com que se tornem parte do establishment.
A ideia por trás de uma estratégia de acomodação é que, uma vez inseridos e investidos das responsabilidades do cargo, os partidos antiestablishment serão forçados a moderar suas posições ou talvez simplesmente desaparecer.
Essa abordagem poderia neutralizar a ameaça que esses partidos representam de diversas maneiras. Primeiro, não devemos nos esquecer que o apelo desses partidos, especialmente aos olhos dos chamados votos de protesto, apoia-se em seu caráter antiestablishment. Ao denunciar uma casta corrupta e egoísta das elites, os partidos antiestablishment são capazes de se retratar como representantes da nação real, do povo real, abandonado em meio à globalização, cosmopolização, secularização ou europeização. A capacidade dos partidos antiestablishment de atrair eleitores também deve muito à maneira pela qual esses partidos, mesmo sem nunca ter assumido responsabilidades de governo, apresentam-se como salvadores. Sem histórico nem conhecimento profundo das questões de governo, podem propor soluções simples — mas, aos eleitores desinformados, bastante sedutoras — para problemas extremamente complexos. A reação do SYRIZA à crise da dívida grega, incluindo a realização de um referendo em 2015 no qual eleitores (em última análise, com pouco sucesso) rejeitaram as medidas de austeridade impostas pela UE, é talvez o exemplo recente mais ilustrativo.
A ideia por trás de uma estratégia de acomodação é que, uma vez inseridos e investidos das responsabilidades do cargo, os partidos antiestablishment serão forçados a moderar suas posições ou talvez simplesmente desaparecer. Uma vez parte do establishment, os eleitores passarão a enxergá-los de uma maneira parecida com os partidos tradicionais que sempre criticaram. Além de despir os atores antiestablishment de sua aura de pureza, dar-lhes uma função no governo também pode evidenciar quão tolas eram algumas de suas propostas de políticas.
O Podemos da Espanha, de extrema-esquerda, pode oferecer um exemplo atual. Surgindo do movimento de protestos antiausteridade de 2011 conhecido como Indignados, que buscava combater a corrupção, aprofundar a democracia e pôr fim à estrutura política bipartidária, o Podemos foi posteriormente incorporado ao governo nacional no início de 2020. Marcado por escândalos (incluindo acusações de financiamento ilegal), incapaz de cumprir importantes promessas eleitorais, como a reforma trabalhista, e com a credibilidade de sua liderança política em questão, o partido parece assistir ao declínio de sua fortuna eleitoral, como demonstram as recentes eleições regionais na Galícia e no País Basco.
Quando os partidos protegem políticos acusados de corrupção em vez de expulsá-los ou, no mínimo, afastá-los, o racha entre partidos e eleitores aumenta, com repercussões negativas de longo prazo para a estabilidade do sistema partidário como um todo.
À primeira vista, essa solução parece mais atraente do que as duas anteriores. Não exige coordenação entre os partidos tradicionais, como no caso do cordão sanitário, nem uma reforma legal, como no caso da proibição. Além disso, parece mais alinhada aos princípios democráticos fundamentais como a liberdade de expressão, o compartilhamento do poder e a competição equilibrada. Na prática, entretanto, há diversas razões pelas quais essa abordagem pode estar condenada ao fracasso.
Primeiro, partidos tradicionais podem se mostrar relutantes a assumir a responsabilidade de domar o leão antiestablishment. Governar com parceiros inexperientes e pouco confiáveis, afinal, pode sair pela culatra e minar as perspectivas eleitorais futuras do “domador”. A três anos das eleições nacionais, as consequências da decisão do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) de se aliar ao Podemos permanece incerta, mas o desempenho do PSOE nas últimas duas eleições regionais não dá margem a otimismo.
Em segundo lugar, mesmo se houver casos individuais nos quais a participação levou à moderação e posterior dissolução ou declínio (como no caso da Aliança Nacional na Itália e o Svoboda na Ucrânia), acadêmicos concluíram que, no geral, “partidos não ostracizados não se tornaram mais moderados com o passar do tempo [… e ainda são…] tão radicais quando seus pares ostracizados”. De fato, a história demonstra que dar aos partidos antiestablishment um papel no governo nem sempre termina bem. Em alguns casos, como no da Nova Aliança Flamenga na Bélgica ou da Liga na Itália, esses partidos acabaram optando por abandonar suas posições no governo em vez de moderar suas posições ideológicas. Em outros casos, como no do Partido da Liberdade da Áustria ou no do Partido dos Finlandeses, a participação no governo resultou em cisões internas e radicalização ainda maior do partido. Em outros casos, foram os partidos tradicionais (como o Lei e Justiça da Polônia) que acabaram reformulando suas posições ideológicas para preencher o vazio deixado pelo desaparecimento de parceiros populistas da coalizão (a Liga das Famílias Polonesas e o Autodefesa). Por fim, a participação no governo pode, se feita corretamente, dar um empurrão eleitoral a alguns partidos antiestablishment (como aconteceu com o Partido do Povo Suíço). No pior cenário, isso poderia representar um caminho para a tomada do poder (como na Alemanha e na Itália do período entreguerras).
Regeneração. Se as abordagens acima tiveram um medíocre histórico de sucesso, isso pode ter se dado porque atacam os sintomas (partidos antiestablishment) e não a verdadeira doença — a crise dos partidos tradicionais. Uma estratégia verdadeiramente efetiva precisa tratar da raiz do problema.
Primeiro, os partidos políticos precisam investir na construção de organizações robustas. Isso não quer dizer que possam voltar ao tempo e tornar-se novamente os “partidos de massa” de décadas passadas, mas precisam usar os novos métodos à sua disposição (como as redes sociais) para reviver suas operações em áreas-chave como educação, socialização e mediação. Os partidos precisam de uma estrutura profissional, um modelo de financiamento socialmente enraizado, e procedimentos claros para resolver conflitos e tomar decisões. Apenas fazendo esses investimentos é possível que os partidos, em especial os mais novos, sobrevivam e, portanto, contribuam para a institucionalização dos sistemas partidários. Como mostra o caso do Eslovênia Positiva, partidos recém-criados podem vencer eleições, mas, sem organizações bem desenvolvidas, irão declinar e desaparecer. Similarmente, o Em Marcha!, do presidente francês Emmanuel Macron, que emergiu com a conquista tanto do posto de presidente como do de primeiro-ministro em 2017, teve um desempenho bastante ruim nas últimas eleições locais. Essas histórias estão em claro contraste com, por exemplo, as dos partidos socialistas da Europa Ocidental, que — normalmente cientes da importância da força organizacional — conseguiram sobreviver na maioria dos países, encontrando maneiras de conviver com a inconstância ideológica e o declínio eleitoral.
Em segundo lugar, os partidos políticos precisam ser responsivos. Como discutimos anteriormente, um dos principais problemas enfrentados pela democracia representativa é a falta de confiança nas instituições representativas e políticas, especialmente os partidos políticos. Além do mais, isso não é surpresa, dada a tendência de líderes políticos de agir de maneiras que contradizem suas pretensas ideologias, por exemplo aumentando os impostos ou adiando reformas. Não é difícil, portanto, entender como os eleitores, sentindo-se traídos, vêm trocando os partidos tradicionais por alternativas antiestablishment. Isso é particularmente verdade em países onde a convergência e a cartelização entre os partidos tradicionais deixaram como única alternativa real aos eleitores os partidos populistas. Para dar aos eleitores uma escolha genuína, reconquistar a confiança e recuperar sua função tradicional de mediadores entre a sociedade e o Estado, os partidos precisam perseguir políticas que sejam consistentes com suas promessas eleitorais. Caso não consigam cumprir tais promessas, precisam ser capazes de explicar ao público o motivo. Esse tipo de comunicação clara, por exemplo, tem redundado em benefício ao governo de Angela Merkel na Alemanha, que recebeu elogios por sua abordagem realista e transparente à crise global da Covid-19.
Mas os partidos políticos também precisam ser responsáveis. Partidos tradicionais são normalmente considerados mais responsáveis do que os partidos populistas, que se distinguem por sua tendência de propor soluções simples para problemas complexos (como ilustrado pela reação inicial do SYRIZA à crise econômica de 2008 ou pela resposta à Covid-19 no Brasil, México e Filipinas). No entanto, os partidos políticos tradicionais também podem se comportar de maneira irresponsável quando tentam fazer manobras políticas contra seus adversários populistas, como vimos em respostas de outros governos à Grande Recessão e à Covid-19, bem como em situações como o “brexit” ou a crise migratória da Europa em 2015. Além disso, mais e mais partidos tradicionais prometeram muito mais do que seriam capazes de cumprir e acabaram entrando num ciclo vicioso, no qual promessas irresponsáveis resultaram em governança não responsiva, e assim por diante. A situação atual na região espanhola da Catalunha é talvez um dos exemplos mais claros.
Uma parte importante da responsabilidade é liderar pelo exemplo. Sobre isso, é essencial que os partidos políticos e seus líderes demonstrem que não estão acima da lei. A pandemia da Covid-19 demonstrou a importância do exemplo de líderes políticos. Quando os líderes políticos são os primeiros a fazer quarentena ou a usar máscaras (como no caso de Justin Trudeau no Canadá e de Angela Merkel na Alemanha), isso impulsiona a confiança pública, tão necessária em uma emergência sanitária. Quando, por outro lado, parlamentares não respeitam as diretrizes de distanciamento social ou líderes políticos não cumprem a quarentena, a confiança social é quebrada, e isso custa vidas. De maneira similar, quando os partidos protegem políticos acusados de corrupção em vez de expulsá-los ou, no mínimo, afastá-los, o racha entre partidos e eleitores aumenta, com repercussões negativas de longo prazo para a estabilidade do sistema partidário como um todo (como vimos após importantes revelações de corrupção como a Operação Mãos Limpas na Itália nos anos 1990 ou, mais recentemente, o longo caso Gürtel na Espanha). Os partidos políticos serão capazes de prevenir seu próprio declínio e a ascensão de alternativas iliberais se usarem seu “bisturi” para extirpar a parte podre.
De fato, um dos alvos prediletos dos partidos antiestablishment é a corrupção. Políticos populistas se agarraram a esse tema em países tão diversos quanto Estados Unidos, Filipinas, Brasil, Itália, Espanha, República Checa e Ucrânia. Por essa razão, é crucial que os partidos políticos se tornem financeiramente mais transparentes. Os eleitores precisam ser capazes de descobrir, de preferência em tempo hábil, como seu dinheiro — seja em forma de doações ou subvenções estatais — é gasto. Isso é especialmente relevante onde os partidos políticos recebem financiamento público (uma prática que demonstrou fortalecer a institucionalização de partidos e do sistema partidário, dificultar a polarização e combater a corrupção quando implementada em um sistema transparente e liberal). Para este fim, o uso de novas tecnologias que permitam aos partidos políticos divulgar suas receitas e gastos de maneira detalhada e tempestiva é essencial para restaurar a confiança social. Fazê-lo não apenas priva os partidos antiestablishment de razões para atacar os partidos tradicionais como corruptos e egoístas, mas ajuda os partidos tradicionais a recapturar parte de seus seguidores. Obviamente, a transparência não deveria se limitar às finanças dos partidos, mas também envolver os processos internos de seleção de lideranças, de tomadas de decisão e resolução de conflitos, para citar apenas alguns exemplos.
Partidos políticos também deveriam ter uma perspectiva de longo prazo. Atualmente, uma das principais críticas contra os partidos é que eles pensam apenas na próxima eleição ou na próxima pesquisa de opinião. É verdade que a proliferação de eleições em algumas regiões (por exemplo, disputas locais, regionais, presidenciais e supranacionais na Europa) colocou os partidos quase constantemente em “modo campanha”. No entanto, isso não serve de desculpa para que os programas partidários se tornem bússolas políticas em vez de visões amplas e com sólida base analítica do futuro, ainda que ajustáveis conforme mudam as circunstâncias. Poucas coisas afetam mais a confiança dos eleitores do que programas partidários que mudam conforme o vento.
Os partidos também precisam se lembrar que concessões são o coração do jogo democrático. A democracia representativa possui uma reputação melhor em países onde os partidos políticos conseguem chegar a acordos em uma série de questões importantes do que onde a legislação está em constante mudança conforme trocam os governos, como é o caso da maior parte da América Latina e da Europa mediterrânea. Nesse último tipo de situação, é muito mais fácil para os partidos populistas prosperarem. Eles se apropriam de questões culturais (onde concessões são sempre mais difíceis) para causar desordem política, como vimos na Espanha, Itália, Grécia, Polônia e Hungria.
Nesse sentido, os partidos tradicionais precisam fugir da armadilha populista de ver a democracia como um jogo de soma zero. Os partidos tradicionais precisam evitar adotar não apenas a agenda, mas também a retórica das vozes antiestablishment. Apenas ao aceitar que todos possuem o direito de ser ouvidos, que a alternância do poder é intrínseca à democracia, e que, no longo prazo, o partido com melhores políticas normalmente vence, é que os partidos tradicionais serão capazes de melhorar suas chances de vitória nas urnas e deter o curso populista.
Analistas tendem a concordar que a democracia está diante de uma crise. Nossos achados não apenas reforçam essa visão, mas também sugerem que a ascensão dos partidos antiestablishment, longe de oferecer uma oportunidade, afeta negativamente cada uma das dimensões da democracia. No entanto, é improvável que focar toda nossa atenção à atual ameaça populista produza uma solução satisfatória. Em vez disso, precisamos parar de focar nos sintomas e focar na doença subjacente: a crise dos partidos políticos tradicionais.
As reações à ascensão das forças políticas antiestablishment até o momento atingiram quatro dos “cinco estágios do luto”, passando da negação (proibição) para a raiva (cordão sanitário), depois para a barganha (acomodação) e, por fim, para a depressão, que parece ser o estágio atual. Mas se quisermos conter a onda populista, precisamos primeiro aceitá-la pelo que ela é: um sintoma do fracasso dos partidos políticos tradicionais em representar, mobilizar e entregar resultados. Tanto estudiosos quanto profissionais precisam perceber que as primeiras três abordagens descritas acima não resolverão o problema. Apenas trabalhando por sua própria regeneração é que os partidos políticos tradicionais serão capazes de reconquistar a confiança dos cidadãos, derrotar o populismo e sustentar e revitalizar a democracia.
Journal of Democracy em Português, Volume 10, Número 1, maio de 2021 © 2021 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press.
Este artigo foi traduzido por Fabio Storino.