A gênese de 2013: formação do campo patriota

Fundação FHC
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20 min readMay 22, 2019

Angela Alonso

Angela Alonso é professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora sênior do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que presidiu entre 2015 e 2019. É autora, entre outros livros, de “Flores, Votos e Balas — O movimento abolicionista brasileiro” (1868–88) (Companhia das Letras, 2015), vencedor dos prêmios Jabuti e da Academia Brasileira de Letras.

O barco democratizante da Nova República bateu num iceberg. Perderam-se as bússulas, naufragam timoneiros, ineptos para desvendar como o “desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil” das manifestações de 2013 acabaram em “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

A disseminada tese da captura de protestos progressistas por conservadores tem a vantagem da simplicidade. É também seu problema. O processo não se reduz a uma dimensão. É multifacetado e tortuoso.

O evento de 2013 consistiu num ciclo de protestos, com vários movimentos sociais na rua em simultâneo, cada qual com suas agendas e estilos de ativismo, divididos em três campos, conforme a maior incidência de símbolos anarquistas, socialistas e nacionalistas. O campo autonomista, de movimentos neoanarquistas, privilegiou estilos de vida alternativos, identidades étnicas e de gênero. O socialista, de movimentos, sindicatos e pequenos partidos de esquerda, tinha agenda redistributiva. Ambos incorporavam políticas públicas. O campo patriota, gigante ao final do ciclo, lá estava desde o início. Seus cartazes repudiavam partidos (“O povo unido não precisa de partido!”), direitos de minorias (“Minoria não pode calar maioria)”, impostos e corrupção (“Menos tributação, menos corrupção, menos imposto, mais retorno!”), clamavam por segurança pública (“Chega de impunidade! Chega de bandidos”) e mesmo por ditadura (“Intervenção militar já!”), validos do nacionalismo (“Bandeira, aqui, só do Brasil!”). Carla Zambeli, líder do NasRuas, criado em 2011, e hoje deputada bolsonarista, reivindica a autoria do slogan-símbolo de 2013: “Não é só pelos 20 centavos!”. Não era mesmo.

No ciclo mosaico de 2013 conviveram três campos de movimentos. No de março de 2015, o campo patriota dominou (“Nossa bandeira jamais será vermelha!”; “Impeachment Já!”; “Fora, CorruPTos!”). Já o ciclo do impeachment, em 2016, polarizou-se entre as campanhas Fora Dilma e Não Vai Ter Golpe. Ao longo desta mobilização intermitente, a rua passou da coexistência entre campos diferentes para o confronto entre frentes inimigas. Estes desdobramentos apontam sentidos do ciclo de 2013 que o extrapolam.

2013 tampouco é uma origem. Mudanças na sociedade brasileira vinham produzindo desequilíbrios na balança de poder social. Delas emergiram grupos descontentes, munidos de redes de sociabilidade, novos estilos de protestar, novas agendas. Este processo político achou pico em 2013 e desfecho dramático na eleição de Bolsonaro, mas se conformava desde antes. A insistência no simbolismo nacionalista, no combate à corrupção administrativa e de costumes e no antipetismo, firmaram o campo político patriota. Este iceberg apareceu naquele junho. Foi festejado como primavera, mas era o começo do inverno.

Descontentes em dose dupla

Insatisfeitos existem em todas as sociedades em todos os tempos. Nos “settled times”, expressão da socióloga Ann Swidler, as pessoas seguem vivendo, em meio a infelicidades, injustiças, desigualdades, nas suas posições costumeiras. Mas quando a vida ordinária é sacudida, a conformidade fica desconfortável. Certas mudanças sociais — não todas, pois algumas podem ser coletivamente benéficas — deslocam recursos, poder e prestígio, criando inconvenientes para os grupos sociais atingidos. Daí os antes plácidos se tornam ebulitivos, empurrados pelo sentimento de que algo “não está certo” e que é preciso “fazer alguma coisa”. A política das ruas se adensa, para além dos ativistas profissionais, em cenários assim.

No Brasil recente, três mudanças tiveram este efeito, ao chacoalharem os eixos da estrutura social brasileira: renda, escolaridade e raça. Cada qual teve origem, escala e efeitos distintos, mas foram vivenciadas em concomitância.

Duas resultaram de políticas de médio prazo. Uma foi a expansão da educação superior. Semente plantada no governo Fernando Henrique Cardoso e crescida nos anos petistas. Em 1998, 2.125.958 estudavam nas faculdades, em 2012, eram 7.037.688. Triplicação acrescida de expansão de faculdades públicas e particulares e crédito estudantil: o ProUni beneficiou 1.919.480 estudantes de baixa renda e/ou vindos de escolas públicas, entre 2003 e 2013.

A segunda mudança veio com a estabilidade monetária, que controlou a erosão de salários, e sobreviveu à provação de grandes crises econômicas — mexicana, 1995; asiática, 1997; russa, 1998; brasileira, 1999; argentina, 2001. Com esta herança tucana, governos petistas puderam avançar políticas redistributivas eficazes e de efeito rápido. O Bolsa-Escola, criado na gestão FHC, atendeu 3,6 milhões de famílias; em junho de 2013, o Bolsa-Família, criado em 2004, abrangia 10 milhões. O salário mínimo cresceu 66.4% entre o primeiro e o último ano de Lula.

A dupla estabilidade-redistribuição reforçou-se com a maré cheia internacional e os ventos do “boom de commodities” a partir de 2004. Tudo contado, o crescimento de curto prazo da renda das famílias, sobretudo as mais pobres, foi inédito na história brasileira. Seu impacto foi intenso e extenso.

Largo contingente, na ordem dos milhões, adentrou o consumo de massas. Entre 2004 e 2008, mostrou Marcelo Neri, o estrato C cresceu 18,72%. Uns saíram do poço sem fundo da pobreza, vide o crescimento exponencial da compra de papel higiênico. Já os remediados, aumentado seu poder de compra, avançaram sôfregos sobre círculos de consumo antes restritos aos estratos sociais altos: tênis de marca, aparelho ortodôntico, consumo cultural, turismo etc.

Terceira mudança é obra petista puro sangue, de menor escala, mas grande consequência: ações afirmativas nas universidades federais. Universitários negros quadruplicaram, em números absolutos, entre 1997 a 2011. Esta ruela levou a centros de formação da elite social indivíduos nascidos na base ou nos estratos médios da sociedade. O Prouni lhes abriu as faculdades privadas. Fenômeno-cascata, com país melhorando de vida e matriculando filhos em colégios privados — aposta na ascensão intergeracional pela escola.

Menos que detalhar tais processos, aqui importam seus efeitos sociopolíticos. Sobrepostos, sacudiram sem derrubar o longevo tripé da estrutura social brasileira: raça, escolaridade, renda. O bambeamento perturbou a percepção dos grupos sociais sobre as distâncias entre si, desnorteou sua compreensão da hierarquia de status, semeando incerteza acerca da posição de cada qual na sociedade.

Em 2013, muitos analistas interpretaram os protestos na linha do efeito J-curve: beneficiários da mudança social, com expectativas crescentes, reclamavam melhoria das políticas públicas. Políticos adotaram a explicação: Lula disse a correligionários que o povo, obtido o pão, buscava a manteiga.

A hipótese abarca pedaço do fenômeno: o desagrado dos ascendentes, ávidos por efetivar direitos que nem sempre se respeitavam, melhorar serviços públicos que funcionavam mal e retificar políticas de resultados longe do ansiado — exemplo é a expansão de cursos de direito, que inundou o mercado, depreciando o prestígio social e o benefício econômico do diploma. Mas os embarcados para cima eram apenas parte dos incomodados no elevador. Havia os que se sentiam injustiçados pelo governo. Em similitude com o que Arlie Hochschild detectou no período pré-Trump, eram os excluídos das benesses estatais, indignados com políticas de ascensão “sem esforço”, “esmolas” a igualar “trabalhadores” e “vagabundos” e forçar diferenciação étnica na “democracia racial”.

Incômodo manifesto na copresença. Egressos de diferentes estratos sociais passaram a conviver em espaços antes exclusivos da elite: universidades, shopping centers, aeroportos. Para uns, era a prova da festejada ascensão social, registrada com paus-de-selfie e exibida no Facebook. Para camadas intermediárias e superiores, perdendo status relativo, era a invasão bárbara. Mal-estar enunciado em vários incidentes, quando os de cima aludiram à etnia, aos costumes típicos de estratos baixos (como falar alto) ou à falta de elegância para estigmatizar os socialmente ascendentes.

A reação defensiva privilegiou os que acumulavam características sociais e físicas tidas por negativas, os negros. Queixas contra sua presença se multiplicaram. Guardadas as proporções, a receptividade nas universidades ressoa à dos Estados Unidos nos anos 1960. Em 2007, “Negro só se for na Cozinha do R.U. [Restaurante Universitário], cotas não!” apareceu pichado junto a suástica em muro de frente à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande Sul. Próximo dali, o complemento: “Voltem para a Senzala”. Longe de caso isolado, era série de episódios em PUC-Rio, FGV-SP, Unesp, Mackenzie etc. Virulência maior quanto mais centrais os cursos, caso das faculdades públicas de engenharia, medicina, direito, para a reprodução intelectual da elite econômica.

Nos shoppings, o mesmo. Funcionário das Lojas Americanas abordou auxiliar administrativo e o filho, em 2007: “Você, crioulinho, pegou alguma coisa da loja?” “São todos negros, não valem nada.” Até celebridades perderam imunidade racial. O filho adotivo de Caetano Veloso foi expulso, em 2004, do Shopping Fashion Mall, em São Conrado, acusado de traficante. Convivência inconveniente. Em pesquisa do Data Popular, em 2012, metade (48,4%) dos entrevistados de estratos A e B reclamavam da democratização do acesso, por afetar a “qualidade dos serviços”, e outro tanto (55,3%) sugeria diferenciar produtos em “versões para rico e para pobre”. Sem pudícia, 49,7% preferiam “ambientes frequentados por pessoas do mesmo nível social”. Menos numerosos, mas longe de insignificantes, eram os empenhados em barrar mal vestidos (16,5%) e a expansão do metrô para seus bairros, porque atraria “gente indesejada” (26%). A irritação explodia. Pondé declarou ao TV Folha, em 2012, que os aeroportos tinham virado “churrasco na laje”.

Os episódios delatam a falência de princípios de classificação social antes automáticos: cor, diploma, consumo. Mostra Norbert Elias que, em situações de ameaça a seu status, estratos altos inventam modos elaborados de se distinguir: etiquetas complexas, costumes refinados, bens e espaços vips. Estratos médios estabelecidos se ressentem mais da perda de eficácia de critérios tradicionais, por carência de recursos para burilar seu status. Foi assim no Brasil. Exasperaram-se quando consumo de marcas deixou de ser signo de prestígio, as férias no exterior ganharam a companhia dos “sem modos”, e a PEC das domésticas, de 2012, avançou sobre ponto nevrálgico da distinção social em sociedade de raiz escravista: os serviços manuais, indignificantes, atribuição da gente de baixo.

Assim, as políticas públicas redistributivas e inclusivas geraram descontentes opostos: tanto beneficiados como prejudicados pelas mudanças. Ambos deram a lenha seca do protesto. Faltava a fagulha.

Da insatisfação difusa à focalização

Protesto não é fogo-fátuo de insatisfação difusa. Ação política coletiva requisita dar a queixas vagas moldura direcional. Mídia, blogueiros e intelectuais públicos sedimentaram uma mesma interpretação da conjuntura no debate público, evidenciada na cobertura de dois eventos de visibilidade e impacto.

Um foram as obras para a Copa do Mundo de 2014, assunto cotidiano de noticiários desde 2011, que puseram na berlinda o papel do Estado na sociedade. Concessões, atrasos e problemas na construção de estádios levantaram dúvidas sobre eficiência (atrasariam?), lisura (superfaturadas?) e capacidade governamental de definir prioridades (esporte ou educação?). Para a revista Veja, seria a “Copa da corrupção”. O atleta-político Romário foi na mesma linha: “’Copa do Mundo vai custar R$ 100 bilhões para o Brasil’. Nós precisamos de saúde, segurança, educação e menos corrupção. Governo hipócrita!”.

Outro evento a aquecer o debate público foi o julgamento da ação penal 470, em 2012, que a imprensa apelidara de “Mensalão”. O escândalo pusera o governo Lula a perigo e fora suplantado por realizações nas áreas social e econômica, no juízo dos que o reconduziram e depois elegeram sua indicada. Mas ganhou magnitude no segundo ano de governo Dilma, quando chegou ao Supremo Tribunal Federal. Os debates eram transmitidos ao vivo pela TV Justiça e acompanhados por especialistas e jornalistas, que traduziam as tecnicalidades para o público leigo e traçavam perfis enaltecedores de ministros. A ampla cobertura tornou a corrupção onipresente, capa de jornais e revistas, tópica de colunistas e cidadãos comuns nas redes sociais. Na capa da Veja de 15 de abril: “Mensalão — A cortina de fumaça do PT para encobrir o maior escândalo de corrupção da história do país”. Acompanhava a manchete charge de Joaquim Barbosa com espetinho de cabeças petistas.

Interpretações assim firmaram dois enquadramentos de enorme aceitação. Um, negativo: a elite política como corrupta. A imprensa toda foi nesta trilha, mas a Veja merece os louros da focalização, pela cobertura em geral e por seus colunistas, cujas coletâneas viraram best-sellers. Em 2008, Lula é minha Anta, de Diogo Mainardi, ficou 20 semanas na lista dos mais vendidos, e No País dos Petralhas, de Reinaldo Azevedo, emplacou o neologismo “Petralhas”, combinando imagens conhecidas: petistas como grupo coeso e os Irmãos Metralha, ladrões da maior das caixas-fortes (nos quadrinhos, a do tio Patinhas; no Brasil, a do erário). A justaposição corrupção-petismo culmina na quarta capa: “chamo de ‘petralhas’ (também de ‘vagabundos’, ‘esquerdopatas’, ‘meliantes morais’, ‘vigaristas’ — a lista é imensa) os que pretendem solapar as bases da sociedade democrática.” Outro jornalista da Veja, Felipe Moura, coligiu Tudo o que você precisa saber para não ser um idiota, com artigos de Olavo de Carvalho, que saiu em 2013 e vendeu 320 mil exemplares em três anos.

O segundo enquadramento fez o inverso, criou o Judiciário como polo positivo. Imprensa e intelectuais construíram imagem do terceiro poder como um quarto, acima da luta política. Associou-se o STF ao Poder Moderador do Império, com idêntica ambiguidade de atribuições, meio guardião da lei, meio seu impositor, poder moralizante. A linguagem técnica dos debates difundiu a tese de que o Supremo não faz política, mas hermenêutica da Constituição. A liturgia aristocratizante pôs os juízes para além do cidadão comum, encarnações da Lei, materializada nos arcaicos mantos negros à maneira de superheróis. Noutra Veja, de 27 de novembro de 2012, Joaquim Barbosa é retratado de costas, a capa esvoaçando, superheroismo reforçado na legenda: “A lei… E os foras da lei.” Barbosa servia bem ao papel: negro, de origem humilde, apresentado como quem vence na vida por esforço e talento — “self-made-man”, como Lula — mas moralmente inconspurcado — à diferença de Lula. Heroi alternativo para os afinados com a justiça social, mas desencantados com o PT, e figura reconfortante para adeptos da tese da democracia racial.

Ambos os enquadramentos encontraram público entre os desagradados com a mudança social. Disseminaram-se na imprensa as imagens da burocracia pública sangue-suga e do governo corrupto. Somava-se a da “heterodoxia”, como economistas liberais e novos empreendedores referiam-se à linha intervencionista de Dilma. Tendo os grupos altos por exemplo e horizonte, muitos dos ascendentes aceitaram este pacote interpretativo e, em vez de se insurgirem contra estratos altos que os estigmatizavam no cotidiano, dirigiram seu desgosto para o governo. A desigualdade perdeu terreno no debate público para a corrupção.

Redes de “empoderamento” dos cidadãos

Protesto não é reunião espontânea de indíviduos desvinculados entre si. Para a mobilização vingar faltava a imprescindível organização da ação coletiva. Esta coordenação acontece fora e antes de manifestações, em redes de sociabilidade — de amigos, famílias, colegas de trabalho etc. — nas quais se formam convicções, difundem-se opiniões, decidem-se linhas de ação. Três tipos de redes sociais foram decisivas para levar gente aos protestos.

Uma são as redes de ativismo cívico, de colaboração “horizontal” entre cidadãos, “coletivos”, que orquestram intervenções ambientais, políticas, culturais inclusivas, orientadas por um senso de solidariedade e para o bem-estar comunitário. Definem suas ações como “retomada do espaço público”. São exemplos a Casa Mafalda, surgida em 2011, de princípios anarquistas; as hortas comunitárias, como a “Jardinagem Libertária” de Curitiba, aparecida em 2007, e as casas coletivas do Fora do Eixo.

Segundo gênero são redes empresariais da economia de compartilhamento, amparadas em tecnologias, espaços e financiamentos privados e compartilhados. São startups, coworkings, crowdfounding, incubadoras e assemelhados, que se orientam por princípios liberais em costumes e economia, frisando a liberdade e a eficiência de indíviduos e mercado vis-a-vis o Estado. Um exemplo é o Coworking Offices Vila Olímpia, ativo, desde 2012, na proposição de “ideias ‘fora da caixa’”.

Outro tipo é o ativismo religioso, de igrejas e redes confessionais, sobretudo neopentecostais, com um pé na solidariedade intrairmãos e outro no mercado. Cultos, publicações, rádios, televisão e YouTube difundem a teologia da prosperidade, a ética do empreendedorismo, a fé em Deus e na família. Cursos de “empreendedorismo cristão”, ministrados por pastores, visam “facilitar e tornar realidade o sonho do próprio negócio”.

Estas redes de sociabilidade são ativas em todo o país, definem o modo de viver o cotidiano de largos contingentes e orientam ativismos no espaço público. Embora distintas, comungam um princípio: invadem espaços e competências antes tidos como de gestão natural do poder público. Apontam nova relação cidadão/Estado/mercado, baseada na crença de que a sociedade civil seria mais legítima e eficiente que o Estado para administrar a vida coletiva. Privilegiam vínculos de solidariedade e confiança entre seus próprios membros e os “empoderam”, anglicismo que popularizaram, estimulando seu protagonismo, em vez de delegar poder e conferir legitimidade a representantes políticos ou ao Estado.

Modelos disponíveis

A opção por protestar foi alavancada também pelo exemplo internacional. A partir do fim dos anos 90, manifestações de massa ressurgiram em vários países. Três episódios se tornaram paradigmáticos, dada a perplexidade das autoridades e a cobertura midiática de escala planetária que suscitaram: os protestos Zapatistas (1994), os de Seattle (1999) e os do TEA Party (2009). Esta onda difundiu agendas e estilos de ativismo, isto é, símbolos e performances políticas, que se tornaram modelares para mobilizações ulteriores.

O zapatismo repaginou o estilo socialista de protestar, adicionando à simbologia vermelha de esquerda o lenço no rosto, ampliando a agenda da redistribuição para incluir indígenas e camponeses e recuperando a violência como política da tradição latino-americana de guerrilhas (o “exército” zapatista, armado do “subcomandante Marcos”). Já em Seattle consolidou-se o estilo autonomista, releitura do anarquismo em símbolos e no uso do negro, na ojeriza a partidos, à representação política e ao Estado, e nas performances violentas (escrachos e tática “black bloc” contra emblemas capitalistas e estatais). Ambos os estilos de ativismo convergem no foco, justiça social global, e nos meios, novas tecnologias e violência política.

O TEA Party disseminou outro estilo, com performances patrióticas, menções a herois, movimentos e símbolos da historia nacional. Difundiu releitura do liberalismo, o “libertarianismo”, de afirmação de liberdades individuais de consciência (religiosa), propriedade (inclusive armas), econômica (livre mercado) e autogestão da vida privada (Estado mínimo). Reagiram contra “excessos” do governo Obama: tributação, políticas sociais, ações afirmativas.

Estes estilos — socialista, autonomista, patriota — apareceram em vários protestos antes de 2013, nos Estados Unidos, na Europa, no mundo árabe e na América Latina, e chegaram a futuros manifestantes brasileiros por contato mediado (imprensa, internet, livros, relatos), ou direto, em viagens de trabalho, estudo, lazer e eventos regulares, como o Fórum Social Mundial e o Fórum da Liberdade.

As performances socialista e patriota se enraizavam na tradição brasileira. Vermelho e verde-amarelo coloriram a campanha da Redemocratização e as Diretas-Já. Por isso, sua presença em 2013 não atraiu atenção. O que magnetizou mídia e analistas foi a novidade autonomista, com sua estética própria e a tática “black bloc”.

Mudanças na relação governo-movimentos

Somando tudo, desde o início do governo Lula foram se cristalizando: descontentamentos nascidos do novo equilíbrio de poder entre as camadas sociais; focos de insatisfação (ineficiência estatal e corrupção); redes de sociabilidade de “empoderamento” dos cidadãos para substituir o Estado no espaço público e modelos internacionais de protesto. Neste cenário, surgiram reações organizadas a agendas e estratégias dos governos petistas.

Na maior parte do governo Lula, a rua esteve tranquila, isto é, com os protestos médios e pequenos típicos de democracias. Em parte porque desde a vitória eleitoral do PT, movimentos do campo socialista, protagonistas de manifestações desde a redemocratização, foram incluídos na administração pública ou se tornaram influentes na formulação de políticas, como as relativas a questões étnicas, de gênero, educacionais e fundiárias. Com a instituição de conselhos e instâncias participativas, mesmo movimentos miúdos e locais ganharam voz. Assim, deste campo o fogo amigo veio apenas em pautas críticas, em particular na reforma da previdência, no princípio do mandato, quando a CUT levou 30 mil manifestantes à porta do Palácio do Planalto.

Mas a rua deixara de ser exclusividade vermelha. O PT no governo era esquerda antiquada para a geração de ativistas emergindo das redes de ativismo cívico. Encantada com protestos por justiça global, criou “coletivos” e movimentos autonomistas: horizontalistas, contraculturais, pró-liberação de costumes, identidades étnicas e de gênero. Acusavam o PT de trair ideais de justiça social e faziam protestos pontuais. É desta família o Movimento Passe Livre, surgido em 2005.

A novidade veio com manifestações do campo patriota, a partir da conjuntura crítica do Mensalão. A Brasília de agosto de 2005 profetizou a da década seguinte: a rua rachada. A cidade viu a esquerda lulista — CUT, UNE, MST — carregar 10 mil, no dia 17. Vinham desagravar o presidente. É que protesto contra a corrupção e pelo impeachment de Lula, levara 12 mil às ruas brasilienses no dia anterior. Chamado por pequenos partidos de esquerda — PSTU, PSOL, PDT, ConLutas -, recebeu adesões inesperadas, de grupos declarados apartidários, mas aliados a partidos do centro à direta. O Prona, agremiação nacionalista e autoritária, estudantes antipetistas e grupos punks carregaram a simbologia patriota: as caras-pintadas ao estilo do Fora Collor. Teve violência simbólica, com queima de bandeira do PT e de um boneco de Lula, e física, com provocações de punks à polícia. O fenômeno não se circunscreveu à capital federal. No Rio, membros de PMDB, PSC, PV e PDT incorporaram às suas faixas os dois “eles”, criando o Fora Lulla. Em São Paulo, PSDB, PV, PPS e PDT puxaram o enquadramento “petralhas” das páginas para a rua, com fantasias de Irmãos Metralhas, em escárnio aos petistas acusados de corruptos.

O campo patriota ia crescendo em apoios e estruturação. As redes de empreendorismo empresarial, com seus seminários, MBAs e think tanks, tornavam-se celeiros de movimentos de agenda liberal na condução da vida privada, pró-liberdades individuais e econômicas, e moralizadores da gestão pública. Seus eventos, numericamente acanhados, eram fartos em recursos. A simbologia nacionalista distinguia esta oposição do governo de esquerda e da cor negra característica do campo autonomista.

Em 2006, o movimento Reforma Brasil pôs a Marcha pela Dignidade Nacional em 20 cidades, pregando “o fim da corrupção, a moralização da política brasileira e a soberania popular”, em “resposta àqueles que acreditam que a Nação está calada e passiva diante dos escândalos políticos que violentam nossas almas”. No ano seguinte, o então líder empresarial João Dória lançou o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros (Cansei), com apoio de Fiesp e de empresários como o presidente da Philips na América Latina, da OAB-SP e de artistas — entre eles Hebe Camargo, Ivete Sangalo e Agnaldo Rayol, que cantou o Hino Nacional. Nizan Guanaes desenhou a campanha de TV “Mostre indignação”.

Faltava povo. O então vice-governador Claudio Lembo ironizou a iniciativa como ação de “pequeno segmento da elite branca”, que “deve ter começado em Campos do Jordão”. A organização elitista saiu em busca da adesão dos setores médios insatisfeitos com as políticas petistas. Em 2008, empresários mineiros e gaúchos arquitetaram o “Dia da Liberdade de Impostos”, versão nacional do Dia Mundial sem Impostos e inspirado no antitributarismo do TEA Party. Reuniram proprietários de postos de combustível, de lojas de eletrodomésticos, de concessionárias de veículos, a Aclame (Associação da Classe Média), a Minaspetro (Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de Minas Gerais) e a Federação do Comércio do Rio Grande do Sul. Além de passeatas e panfletagem, postos de 20 cidades venderam combustível sem impostos, que, segundo o presidente da Fecomércio, careciam de contrapartida: “Há baixo retorno na prestação de serviços públicos por parte do Estado com esse dinheiro arrecadado”.

Por fim, as redes de ativismo religioso se mobilizavam por suas próprias razões, incomodadas com gestos governamentais de avanço na agenda de costumes — aborto, descriminalização da maconha, casamento gay, educação sexual nas escolas. Montaram resistência. Em 2006, surgiu a Plenária Nacional dos Movimentos Pró-Vida e a camiseta da Marcha por Jesus veio nas cores nacionais, em gesto de politização. O lançamento do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em dezembro de 2009, que incluía alguns dos itens indigestos, sublevou de vez esses grupos. Lula reagiu com simplicidade e eficiência: recuou. Mas a rede de defesa da moralidade tradicional contra liberdades de comportamento, sobretudo na sexualidade, estava ativada. Não se desmontaria mais.

A insatisfação fermentava. Durante o governo Lula, criaram-se 18 associações de perfil liberal, conservador ou autoritário, sem contar o Revoltados On Line, que surgira em 2000, em torno do combate à pedofilia, e ganhava aderentes. Operavam na rua e na internet, com foco em costumes, impostos, corrupção — avulsos ou combinados. Apesar disso, Lula, ao negociar com a esquerda, não confrontar a direita e reter alto apoio popular, governou sem megaprotestos.

Com Dilma não foi assim. Colheu os frutos envenenados das mudanças alavancadas por seu antecessor e por outras instituições. O STF contribuiu para manter corrupção e moralidade no topo dos jornais, com o julgamento do Mensalão e a deliberação sobre a legalidade da união civil homossexual. A Lei da Ficha Limpa (PL135 -2010), aprovada no segundo mandato de Lula, tocou à Dilma por em vigor nas eleições para prefeito de 2012. A presidente inseriu mais um grupo organizado no rol de insatisfeitos, ao mexer no vespeiro-mor da Nova República: a responsabilidade dos militares por desaparecimentos políticos durante a ditadura. Ao contrário de FHC e Lula, não recuou ante o alarido contrário e instituiu a Comissão da Verdade. Militares e apoiadores do regime militar, como o deputado Jair Bolsonaro, vieram a público defender o extermínio de opositores como parte de uma guerra de salvação nacional. A Verdade Sufocada, livro de Carlos Brilhante Ustra, saído em 2007, tornou-se bíblia destes partidários da ditadura. De seu lado, a rede de ativismo religioso saiu contra a PL/122, de 2006, de punição à homofobia, que o pastor Silas Malafaia apelidou de Lei da Mordaça, entendendo que contrariava a liberdade religiosa.

Tudo isto corria à direita do governo, sem o conforto de contar com enraizamento sólido na esquerda. No primeiro ano do governo Dilma (2011), obras da Copa do Mundo, da hidrelétrica de Belo Monte e do PAC, mais o novo Código Florestal, multiplicaram as manifestações. Os ambientalistas lançaram a campanha VetaDilma contra artigos do Código. Também contestaram a usina Belo Monte, atacada igualmente pelo movimento indigenista, e invadida, já em maio de 2013, pelas etnias munduruku, araras, juruna, kaiapó, xipaya e kuruaya. Ainda em 2011, o campo autonomista adensou a pressão à esquerda, puxado pelo movimento feminista, com a Marcha das Vadias, com 300 participantes e a congênere, da Maconha, que contou com 3500 participantes.

Dilma recebia pressão da sociedade em direções opostas. Ficou emparedada, sem conseguir acalmar ninguém.

Os movimentos do campo socialista, que Lula aproximara do governo, perderam influência e viram em Dilma um Lula às avessas: fechada, sem paciência e mais fácil de acessar por meio de protestos do que solicitando audiências.

Desprestigiada à esquerda, tampouco persuadia o campo patriota da efetividade de seu combate à corrupção. Esta mobilização cresceu em ruas, internet, parlamento e imprensa. Em 2011, 12 novos movimentos surgiram. O Dia do Basta foi o mais organizado e repetido em 2012, em 12 capitais: Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Manaus, Florianópolis, Goiânia, Recife, Salvador, Curitiba, Porto Alegre e Fortaleza. Suas bandeiras: 10% do PIB para a educação; voto aberto no parlamento, fim do foro privilegiado e corrupção como crime hediondo. Em Brasília, compareceram 20 mil, muitos com a máscara do Anonymous ou vestidos de verde e amarelo. Contestavam o lema do governo — “País rico é país sem miséria” — com gritos de “País rico é país sem corrupção”.

O campo patriota entrou de vez na disputa para saber quem representava a nação, via grupos nacionalistas, como o Pátria Minha. Os símbolos nacionais foram o guarda-chuva sob o qual albergar associações de corte liberal, conservador e autoritário, que tinham surgido das redes de ativismo empresarial e religioso. Passavam a surgir agora também de redes militares. No Dia da Independência, em 2012, bandeira e hino nacional pontificaram nos protestos contra o governo, adendados de símbolos militares e religiosos. Entre o início do governo Dilma e maio de 2013, formaram-se ao menos 46 movimentos neste campo, responsáveis por eventos de mesmo estilo (Quadros 1 e 2).

Apenas o NasRuas, criado por Carla Zambelli em 2011, organizou protestos anticorrupção em 17 estados brasileiros. Em cinco meses logrou se implantar em 50 cidades e ganhar 50 mil curtidas no Facebook. Criou sua própria escola de samba, a Unidos Contra a Corrupção, e adotou um mentor, o jurista Ives Gandra Martins, entrevistado em vídeo para o II Congresso Contra a Corrupção, sediado pela Câmara Municipal de São Paulo. Manifestações de abrangência nacional.

Entre estes fogos, a petista adventícia optou por buscar diferenciar seu governo do PT e apostar em soluções técnicas e na comunicação direta com a opinião pública — via maqueteiro, que a vendeu como incorruptível e apolítica, uma “gerente”. De imediato, a estratégia rendeu aprovação pública, ao dissociá-la do que alcunhou de “mal feitos”.

Em março de 2013, dois meses e meio antes dos grandes protestos, a presidente dormia tranquila, pois, consultados, 65% dos cidadãos comuns não declaravam desagrado em relação a seu governo. Os descontentes eram minoritários, mas não eram quaisquer uns. Mais ricos, mais infelizes: dos com renda superior a 10 salários mínimos, 2% concordavam com políticas de acesso e permanência no ensino superior; menor número (1%) via com bons olhos o aumento do salário mínimo. 42% deles preocupavam-se com a condução da economia. Dos mais abaixo, ganhando entre 5 e 10 s.m., apenas 9% aprovavam o Bolsa Família.

No 6 de junho, quando os protestos começaram, o Datafolha, por coincidência, averiguava a popularidade da presidente. Dilma perdera 10% de apoio entre jovens, 16% dentre os com diploma superior, 10% no Sudeste e 14% no Sul. Mais vertiginosa foi a queda na aprovação global entre os mais ricos: de 67% para 43%.

Sinal amarelo aceso. Parte desses descontentes estava já organizada em movimentos e a postos para o combate. Eram a ponta do iceberg. Nos dias seguintes, emergiria colossal nas ruas.

Este artigo foi retirado da edição de maio de 2019 do Journal of Democracy em Português — publicação do Plataforma Democrática, uma iniciativa da Fundação FHC e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

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