As eleições para o Congresso americano e a segunda metade do mandato de Joe Biden

Fundação FHC
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8 min readOct 24, 2022

As eleições para o Congresso dos Estados Unidos em 8 de novembro deste ano terão significativo impacto na implementação da agenda do presidente Joe Biden na segunda metade de seu mandato. Dependendo do resultado, elas podem ajudar os democratas a construir uma narrativa vitoriosa rumo às eleições presidenciais de 2024 ou complicar ainda mais o debate político, já extremamente polarizado.

“Frequentemente acusado de ser um presidente fraco, Biden aprovou pelo menos quatro propostas legislativas importantes em apenas dois anos. Neste aspecto, foi mais bem sucedido do que seus antecessores, Donald Trump e Barack Obama. Mas é preciso garantir a implementação do que foi aprovado. Se perder a pequena maioria que possui no Congresso, sobretudo no Senado, sua administração ficará algemada na segunda metade do mandato”, disse Nick Zimmerman, membro do Brazil Institute e consultor-sênior da WestExec Advisors, empresa de consultoria estratégica sediada em Washington, D.C.

“Hoje os democratas têm uma maioria pequena na Câmara dos Representantes, com 224 das 435 cadeiras. O Senado está dividido, com 50 cadeiras para o campo democrata (que inclui dois senadores independentes) e 50 cadeiras para o Partido Republicano. O que garantiu a aprovação dos projetos de Biden no Senado foi o voto de minerva da vice-presidente Kamala Harris. As pesquisas indicam que os republicanos devem recuperar a maioria na Câmara dos Representantes, e os democratas devem manter o Senado por pequena margem. Há muitas coisas que um Congresso contrário ao governo ou dividido pode fazer para bloquear a agenda do presidente”, explicou a cientista política Anya Prusa, diretora sênior do Albright Stonebridge Group — empresa de consultoria estratégica sediada em Washington, D.C.

Em 8 de novembro, serão renovados a totalidade da Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) e um terço do Senado. Uma coisa é o governo perder a maioria no Senado, outra é perder só a Câmara. No primeiro caso, o governo Biden não conseguirá nomear altos funcionários que dependem da aprovação do Senado, o que dificultaria a implementação de medidas aprovadas até aqui, além de aumentar a chance de um impeachment. Também teria dificuldade de nomear juízes nos dois anos finais de seu mandato. Se perder a maioria na Câmara, ele teria dificuldades de aprovar novos projetos, mas conseguiria tocar o governo adiante.

“O eleitorado feminino pode garantir os votos necessários para que os democratas mantenham o controle do Congresso, ou pelo menos do Senado, porque muitas mulheres estão revoltadas com a recente decisão da Suprema Corte de revogar o direito constitucional ao aborto, deixando os estados livres para legislar sobre a questão. Esta decisão, tomada por juízes conservadores alinhados com o Partido Republicano, causou uma grande mobilização das mulheres, inclusive de republicanas mais moderadas, que pode beneficiar Biden”, disse o jornalista Paulo Sotero, que dirigiu o Brazil Institute, do Woodrow Wilson Center (Washington D.C.), de 2006 a 2020.

Na primeira metade de seu mandato (iniciado em janeiro de 2021), Biden aprovou pelos menos quatro novas leis consideradas importantes: o plano de auxílio econômico durante a pandemia de Covid-19 (2021); o programa Chips for America (2022), que visa revitalizar a indústria de semicondutores, incentivar a inovação e criar empregos na área de tecnologia; o Ato pela Redução da Inflação (2022), com uma série de medidas para reduzir o aumento dos preços no país; e o Plano de Infraestrutura e Energia (2022), que prevê grandes investimentos na renovação da infraestrutura norte-americana de maneira sustentável, com o objetivo de acelerar a transição do país para uma economia de baixo carbono. Os investimentos públicos previstos chegam a US$ 4 trilhões na próxima década.

Um referendo dos primeiros dois anos de Biden

“O que está em jogo é se esses importantes projetos de Biden receberão o apoio da maioria da população nas chamadas midterm elections (realizadas no meio do mandato), garantindo que sigam adiante. Ou se os eleitores, insatisfeitos com a inflação alta e outras questões relacionadas à situação do país de maneira geral, votarão contra o governo democrata. Trata-se, portanto, de um referendo sobre os dois primeiros anos da administração Biden”, disse a cientista política Anya Prusa, diretora sênior do Albright Stonebridge Group — empresa de consultoria estratégica sediada em Washington, D.C.

Segundo a convidada — que possui M.A em Estudos Latino-Americanos e Hemisféricos pela George Washington University e estudou políticas públicas brasileiras e relações entre os EUA e o Brasil –, pesquisas mostram que cerca de 70% dos norte-americanos acham que o país está indo na direção errada, mas a aprovação de Biden, que foi de apenas 36% em julho, vem se recuperando e atualmente está em 44%.

“Historicamente, apenas 40% dos eleitores norte-americanos costumam votar nas eleições de meio de mandato, 20 pontos percentuais a menos do que nas eleições gerais em que a Casa Branca está em jogo (as próximas serão em novembro de 2024). Mas temos visto bastante interesse por parte das pessoas neste ano, o que indica que o comparecimento às urnas deve ser alto”, disse Prusa.

“Biden enfrentou muitas dificuldades na primeira metade de seu mandato: pandemia, violência política e racial, uma sociedade muito polarizada. Pode-se dizer que ele saiu vitorioso até o momento. Mas aprovar leis que buscam melhorar a vida das pessoas importa? Democracia importa? Ou tudo se resume a memes nas redes sociais e à guerra de informação?”, perguntou Nick Zimmerman, que foi diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para o Brasil e Cone Sul no governo Obama.

Segundo o consultor, o que está em jogo é a governabilidade nos dois anos finais de Biden e seu capital político nas eleições de 2024: “Tudo bem não aprovar novas medidas nos próximos dois anos, mas é preciso garantir a implementação do que já foi aprovado e, assim, construir um discurso vitorioso para a campanha democrata daqui a dois anos, seja Biden candidato à reeleição ou seja outra pessoa.”

“Muitas pessoas, inclusive fora dos EUA, tendem a subestimar o presidente Biden, o que é um equívoco. Prestes a completar 80 anos, ele é um político extremamente experiente, muito bem relacionado tanto dentro do país como no exterior e altamente capacitado para a função que ocupa. Não tenho dúvida de que ele será candidato à reeleição em 2024”, afirmou Paulo Sotero, que já foi correspondente dos jornais “O Estado de S.Paulo” e “Gazeta Mercantil” em Washington D.C.

O fantasma de Trump e o futuro do Partido Republicano

Os três palestrantes concordaram que o ex-presidente Trump — embora desgastado por uma série de investigações relacionadas a sua atuação como presidente e como empresário — continua sendo um personagem influente no cenário político norte-americano.

“Desde 2016, quando Trump venceu as prévias republicanas e foi eleito para a Casa Branca, ele capturou o Partido Republicano. Embora tenha perdido boa parte de sua influência após sair do cargo, candidatos republicanos em vários estados decidiram copiar o estilo de fazer política e o discurso radical do ex-presidente. O trumpismo é um fenômeno político que veio para ficar”, disse Anya Prusa.

“Mesmo em 2020, quando não se reelegeu, Trump conseguiu eleger grande número de governadores alinhados com seu projeto de extrema direita. Independentemente se Trump será considerado culpado e, eventualmente, não poderá concorrer novamente à Casa Branca, o Partido Republicano abriga hoje um movimento de direita radical de apelo nacional que vem com força nas eleições deste ano e em 2024”, disse Nick Zimmerman.

“O Partido Republicano, que teve importância fundamental para a democracia norte-americana nos séculos 19 e 20, perdeu sua alma após se render a Trump. Abandonou completamente seus princípios em relação à economia e à política externa e optou por seguir cegamente um líder irresponsável, populista e autoritário. São poucos os políticos republicanos que têm coragem de desafiar o ex-presidente”, disse Paulo Sotero.

Para Anya Prusa, o Partido Republicano “perdeu a sua antiga alma, mas ganhou uma nova, nacionalista cristã na política e na cultura e protecionista na economia”.

Trump enfrenta hoje pelo menos três investigações concomitantemente: a primeira relativa à sua participação na invasão do Capitólio (prédio do Congresso) em 6 de janeiro de 2021, em uma tentativa de impedir a confirmação da vitória de Biden pelo Congresso; a segunda relacionada a fraudes bilionárias na gestão de suas empresas; e a terceira iniciada após a apreensão de documentos confidenciais da Presidência em sua mansão na Flórida, o que poderia colocar em risco a segurança dos Estados Unidos. Esta última, considerada a mais grave, pode levar a uma condenação criminal que impediria uma nova candidatura à Casa Branca.

A democracia norte-americana está ameaçada?

Esta foi a pergunta feita pelo cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, ao final do evento. Anya Prusa e Nick Zimmerman responderam que há motivos reais de preocupação, mas ambos destacaram aspectos positivos e negativos da democracia nos Estados Unidos, uma das mais antigas e admiradas do mundo.

“Preocupam as tentativas de tornar mais difícil as pessoas votarem, em nome de uma pretensa falta de segurança do processo eleitoral e das alegações de fraude eleitoral. Além disso, a crescente polarização é um combustível para discursos radicais, principalmente de direita mas também de esquerda, tornando mais difícil chegarmos a acordos políticos mesmo em questões fundamentais”, disse Prusa.

“Por outro lado, vemos um envolvimento cada vez maior das pessoas em questões políticas, o que mostra que existe espaço para fortalecer a democracia norte-americana. Quanto mais as pessoas conversarem e se engajarem, mais fortes seremos”, concluiu a cientista política.

“No Partido Democrata, há um debate muito rico em andamento, que inclui tanto pessoas mais à esquerda, quanto ao centro e também mais à direita. Isso é muito positivo e reflete no respeito e na representatividade que Biden tem hoje. Outro fator de otimismo é a tendência demográfica em curso nos Estados Unidos, que será uma nação mais diversa do ponto de vista étnico, social e cultural nas próximas décadas. Acredito que a alma deste país ainda não foi perdida e vale a pena lutar por valores como liberdade, justiça e igualdade de oportunidades”, disse Zimmerman.

“Por outro lado, é fato que os EUA vivem atualmente no mundo da pós-verdade, no qual cada grupo acredita cegamente em suas convicções e se nega a conversar com quem pensa de maneira diferente. Se não conseguimos entrar em acordo em relação a questões fundamentais, fica difícil construir uma nação. Este é um desafio existente em vários países, mas os EUA estão no topo do iceberg. O Brasil também. Vivemos processos políticos semelhantes, ambos extremamente desafiadores para a democracia”, concluiu o consultor.

Assista ao vídeo completo do webinar.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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