Capitalismo de Vigilância e Democracia, com Shoshana Zuboff

Fundação FHC
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6 min readMar 2, 2022

O direito da humanidade de se autogovernar, conceito básico da democracia, está em risco no mundo todo devido ao avanço do chamado “capitalismo de vigilância” e de seus efeitos na economia, na sociedade e na política. Apenas uma contrarrevolução democrática pode reverter esse processo iniciado no começo dos anos 2000, com o surgimento de empresas como o Google e o Facebook, que hoje dominam a internet e as redes sociais e têm mais poder do que muitos Estados e governos nacionais.

Este foi o alerta feito pela professora de Harvard Shoshana Zuboff, autora do best seller “A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder” (Edit. Intrínseca), em conversa online promovida pela Fundação FHC e Aberje. “Não tenha dúvida: esta é a luta pela alma de nossa civilização”, disse a pesquisadora norte-americana. “Nós podemos ser uma sociedade de vigilância ou uma democracia, mas não podemos ser ambas as coisas ao mesmo tempo. Esta não é uma história sobre tecnologia, mas uma história sobre poder e política”, continuou ela.

Na era do capitalismo de vigilância, todos são continuamente vigiados pelas Big Techs

Em seu livro, a professora emérita de Harvard alerta para uma nova era do capitalismo em que os cidadãos são constantemente vigiados por uma arquitetura digital ubíqua, que possibilita a extração incessante de volumes gigantescos de dados sobre o comportamento das pessoas — com total desrespeito à privacidade e sem nenhum tipo de contrapartida. Os principais beneficiados são as poderosas Big Techs, que resistem às tentativas de regulação por parte dos Estados nacionais e usam e abusam dos algoritmos para direcionar a experiência dos usuários em seus serviços online.

Não menos importante é a ameaça à democracia resultante de um cenário em que, através da disseminação de fake news e de conteúdos direcionados a grupos específicos, líderes sem compromisso com a democracia ou governos totalitários conseguem manipular partes expressivas das populações de seus países.

“Estamos entrando na terceira década do que defini como capitalismo de vigilância e a oportunidade de reverter seu domínio cada vez maior sobre todas as atividades humanas, econômicas, sociais e políticas, é agora. Quanto mais adiarmos, mais difícil e doloroso será esse processo”, disse Zuboff, ao término de sua fala inicial de 40 minutos, seguida de perguntas do jornalista Pedro Doria e do público (acesse o vídeo completo na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página).

Como fortalecer os valores e as instituições democráticas no século 21, marcado pela digitalização?

“Como devemos estruturar, organizar e controlar as infraestruturas e os sistemas globais de informação e comunicação de forma a preservar e fortalecer os princípios e os valores democráticos? Que novas leis, estruturas e instituições são necessárias para garantir que a coleta de dados digitais sirva aos interesses individuais e coletivos dos cidadãos, e não de um reduzido grupo de empresas poderosas e de líderes autoritários e sem escrúpulos?”, perguntou a palestrante.

Segundo Zuboff, ninguém sabe as respostas para esse desafio, inclusive porque apenas recentemente começamos a fazer as perguntas certas, mas a democracia é a única ordem institucional com a legítima autoridade e poder para alterar o curso dos perigosos acontecimentos que temos visto nas últimas duas décadas. “Se desejamos que o ideal de autogoverno, talvez a maior conquista da humanidade, sobreviva ao século digital só há um caminho: uma contrarrevolução democrática”, afirmou.

Zuboff descreveu três condições fundamentais para esse processo evoluir de maneira positiva:

- maior conscientização e mobilização do público;

- determinação das autoridades públicas e da sociedade de agir;

- diálogo e cooperação a nível internacional.

Erosão democrática se aproxima de um ponto de não retorno

“Assim como o aquecimento global está se aproximando de um ponto de não retorno, o mundo democrático também está sob ameaça de extinção se nada for feito para construirmos um futuro que seja ao mesmo tempo digital e democrático. Alguns dizem ser tarde demais, mas eu afirmo que não porque agora temos maior consciência das diversas questões envolvidas e podemos encontrar as respostas por meio de um diálogo transnacional de melhor qualidade. Este é o momento exato para nos dedicarmos a essa causa”, continuou.

Ainda segundo Zuboff, a discussão está amadurecendo na Europa, nos Estados Unidos e no Reino Unido e outros países devem se juntar e participar efetivamente do debate. “Tem muita gente boa no Brasil que conhece o assunto e pode colaborar na busca de soluções a nível nacional e global”, disse.

“Não resolveremos os diversos problemas que afetam nossas democracias em um dia e de uma só tacada, mas certamente não avançaremos enquanto não garantirmos a integridade e a privacidade dos dados que circulam online e a credibilidade da comunicação e das informações na internet. Retomar o controle sobre o mundo virtual é uma precondição para revertermos a decadência de nossas sociedades, cada vez mais polarizadas e pouco solidárias, e garantirmos a sobrevivência da política e da própria democracia”, afirmou.

“Durante anos, os governos de nossos países, inclusive o dos Estados Unidos, optaram por fechar os olhos devido aos seus próprios interesses pelos dados digitais dos cidadãos. Mas pouco a pouco se consolida uma maioria de cidadãos em diversos países preocupados com a defesa de seus direitos, de sua privacidade e de sua liberdade. Convoco-os a juntar forças conosco nessa luta pela sobrevivência da democracia no século 21. Não temos um minuto a perder”, completou.

Experimento social falido deixa rastro de destroços e vazio político

Zuboff descreveu a internet e as redes sociais como “um experimento social falido que deixou um rastro de destroços na sociedade” e um “vazio político, social e econômico”, com a destruição total da privacidade, a anulação de direitos fundamentais, o aprofundamento da desigualdade social, a destruição de normas sociais, o envenenamento do discurso político, a utilização indiscriminada de fake news e a fragilização das instituições democráticas.

“Nos 43 anos em que me dediquei a estudar o surgimento da digitalização como uma força econômica e política, e sobretudo nos últimos 20 anos, observei aquelas jovens e criativas empresas de internet se transformarem em verdadeiros impérios da vigilância baseados na apropriação do conhecimento sobre o comportamento das pessoas e na comercialização dessa valiosa informação como se fosse sua propriedade privada”, explicou.

“Na era do capitalismo de vigilância, o poder das corporações não é apenas econômico, mas social. Ele se baseia no controle de todos nós, os usuários de internet, o tempo todo e em qualquer lugar. Caminhamos pelo mundo virtual absolutamente nus, sem direitos, sem leis e instituições que nos protejam, quando deveriam fazê-lo em nome da democracia e dos direitos fundamentais”, disse.

Big Techs não foram eleitas para controlar o destino das pessoas

“Três perguntas resumem a questão da autoridade sobre os dados que circulam na internet. Quem detém o conhecimento? Quem decide quem detém o conhecimento? Quem controla quem decide quem detém o conhecimento? Os gigantes que criaram e se beneficiam dessa nova ordem socioeconômica detêm as respostas para cada uma dessas questões, embora nunca tenham sido eleitos para definir o destino de todos nós”, afirmou.

Para a professora, as Big Techs promoveram uma “tomada revolucionária do poder econômico, social e político” e afirmam que “os efeitos sociais e políticos negativos são apenas danos colaterais”, mas a verdade é que “eles são efeitos interligados de uma só causa: uma dominação econômica ubíqua, irrestrita e absolutamente sem controle.” Daí a necessidade de uma urgente contrarrevolução democrática.

“Se nada fizermos para impedir que essa revolução siga seu curso, não tenha dúvida: o objetivo final desse verdadeiro império da vigilância é’instituir uma governança computacional global, em que eles definirão as regras e definirão os destinos de todos nós, cidadãos transformados em usuários sem voz e sem direitos”, concluiu.

Assista ao vídeo:

Vale a pena perguntar: Entendendo a Regulação das Redes Socias — Anos 1990 até hoje, com Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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