Como as políticas personalistas estão mudando as democracias

Fundação FHC
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22 min readNov 4, 2021

Erica Frantz, Andrea Kendall-Taylor, Carisa Nietsche e Joseph Wright

Erica Frantz é professora de ciência política da Universidade Estadual de Michigan. Andrea Kendall-Taylor é pesquisadora sênior e diretora do Programa de Segurança Transatlântica do Centro para uma Nova Segurança Americana (CNAS) e professora-adjunta da Escola de Diplomacia da Universidade de Georgetown. Carisa Nietsche é pesquisadora do Programa de Segurança Transatlântica do CNAS. Joseph Wright é professor de ciência política da Universidade do Estado da Pensilvânia e codiretor do Programa de Estudos Globais e Internacionais.

Líderes personalistas, como o presidente russo Vladimir Putin, o presidente ruandês Paul Kagame e o ex-presidente líbio Muammar Gaddafi, dominam os sistemas políticos de seus países em tal grau que se tornam praticamente indistintos dos regimes que comandam. No caso da Rússia, Putin consolidou seu poder desde a eleição de 2000 ao eliminar sistematicamente os contrapesos à sua autoridade, incluindo o do Poder Legislativo, do Judiciário, de governos regionais e da sociedade civil. Ele também demoliu qualquer percepção de alternativa viável à sua liderança, até mesmo de indivíduos de dentro de seu regime, colocando pessoas leais a ele em cargos estratégicos do governo.

O personalismo refere-se à dominação do campo político por um único indivíduo. A personalidade do governante possui um impacto desproporcional nas políticas e em seus resultados, muitas vezes passando por cima de instituições e regras. Na política contemporânea, normalmente associamos esse tipo de governo a regimes autoritários. Em uma autocracia personalista, o líder governa de maneira irrestrita: nem mesmo o partido político do governante (caso haja) ou o aparato de segurança exerce controle independente. As escolhas de políticas públicas, por sua vez, refletem os caprichos do governante.

O governo personalista não é um fenômeno novo: por grande parte da história política, dos faraós do Egito e os imperadores de Roma aos czares da Rússia, era algo comum. O fim do século 20 representou um afastamento daquela norma, à medida que emergiam inúmeras democracias representativas durante a “terceira onda”. Ao longo daquele século, não apenas as democracias se espalharam, como as autocracias se tornaram mais diversas e, em muitos casos, não mais dominadas por um único indivíduo, como ilustram as estruturas de liderança colegiada de regimes comunistas da China pós-Mao, Laos, Vietnã, bem como das antigas juntas militares da Argentina, Brasil e Nigéria.

Desde o fim da Guerra Fria (1947–1991), no entanto, parece que a política vem lentamente regressando aos velhos tempos. Como já registramos em outras páginas, ditaduras personalistas estão em ascensão. Em 1988, esses regimes representavam 23% de todas as autocracias. Em 2010, essa proporção havia quase dobrado, chegando a 40%. Embora os dados sobre tipos de regimes autoritários terminem em 2010, todos os sinais indicam que essa tendência continuou, com a maioria das novas ditaduras exibindo sintomas de personalismo, incluindo a Turquia sob o comando de Recep Tayyip Erdogan e a Nicarágua de Daniel Ortega.

Esse aumento acelerado é alarmante: o governo personalista traz consigo uma série de consequências negativas comparado a outros tipos de sistemas autoritários. Um amplo corpo de evidências vem mostrando que ditadores personalistas adotam políticas externas mais arriscadas e agressivas e que eles são mais propensos a investir em armas nucleares e a provocar conflitos entre países. Quando esses autocratas são depostos, seus regimes são os com maior probabilidade de se democratizar entre todos os tipos de ditatura. Além disso, a saída de um líder personalista é frequentemente violenta e prolongada, como mostram os exemplos do Iraque e da Líbia após as mortes de Saddam Hussein e Gaddafi, respectivamente.

Acontecimentos políticos da última década sugerem que a tendência mundial de crescimento do personalismo pode já não estar limitada a sistemas autoritários. Ao redor do mundo, líderes democraticamente eleitos com estilos personalistas de governança têm dominado as manchetes, desde o presidente norte-americano Donald Trump ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e o presidente filipino Rodrigo Duterte. O aparente crescimento da proeminência desse tipo de líder levanta a seguinte questão: a política está se tornando mais personalista também nas democracias? Novos dados que capturam os níveis de personalismo em Estados democráticos sugerem que esse é de fato o caso. Embora essa tendência de maior personalismo possa ser temporária, os fatores e as consequências dessa dinâmica indicam que há motivos para preocupação.

O aumento do personalismo em democracias

Todos os sistemas políticos possuem algum grau de personalismo. No entanto, pelo fato de as democracias incluírem mecanismos de freios e contrapesos em maior ou menor grau, o personalismo nesse cenário se manifesta de maneiras mais sutis do que em sistemas autoritários. Por exemplo, um importante indicador de personalismo em regimes autoritários é o grau de controle de um líder personalista sobre o aparato de segurança do Estado, por meio de táticas como a criação de forças paramilitares privadas ou a indicação de amigos e familiares a cargos de alta patente nas forças armadas. Esses tipos de indicadores explícitos de personalismo são improváveis em democracias, onde normalmente há leis em vigor que separam as esferas civis e militares. Em última análise, no entanto, o conceito subjacente é o mesmo: líderes personalistas detêm mais poder em relação a seus partidos políticos do que os líderes não personalistas, de maneira que as políticas públicas refletem muito mais as preferências do governante do que um processo de negociação entre múltiplos atores e instituições. Outros acadêmicos conceituaram a personalização da política de maneira similar. Em seu estudo sobre a política israelense, Gideon Rahat e Tamir Scheafer a definiram como “um processo por meio do qual o peso político do ator individual no processo político aumenta ao longo do tempo, enquanto a centralidade do grupo político (isto é, o partido político) diminui”.

Maior personalismo em democracias traz consigo um risco elevado de polarização política, apropriação de poder pelo governante e, por fim, declínio e colapso democrático.

O personalismo em sistemas autoritários está associado a uma ampla gama de consequências negativas, e nossa pesquisa demonstra que ele também é prejudicial a sistemas democráticos. Maior personalismo em democracias traz consigo um risco elevado de polarização política, apropriação de poder pelo governante e, por fim, declínio e colapso democrático. Para pôr à prova nossas hipóteses sobre as causas e consequências do personalismo em democracias, compilamos novos dados cobrindo 106 democracias de 1991 a 2020 para criar um índice de personalismo. Coletamos indicadores observáveis e objetivos do equilíbrio relativo de poder entre o líder de um país e seu partido político e incluímos dois indicadores da base de dados Variedades da Democracia (V-Dem): personalização do partido e estratégias de legitimação do governo. A primeira variável mede se o partido é primeiramente um veículo para avançar a carreira política do líder, e a última mede se o líder é descrito como alguém que possui extraordinárias habilidades de liderança. Nosso índice não captura os traços de personalidade dos governantes ou seu comportamento em relação a atores políticos fora de seu partido, incluindo partidos de oposição, Legislativo, Judiciário ou imprensa, já que esses são os resultados que queremos testar.

Nosso índice latente de personalismo varia de -2 a +2 na amostra, com uma média em torno de zero. Valores mais altos sugerem maior personalismo e valores menores sugerem menor personalismo. Usando esse índice, podemos comparar os níveis de personalismo entre os líderes e de um líder ao longo de seu mandato. Por exemplo, nosso índice revela que, na França, o personalismo era baixo durante o mandato do presidente François Mitterrand (-1,14 em 1992, segundo ano de seu mandato) e alto durante o mandato do presidente Emmanuel Macron (1,16 em 2018, segundo ano de seu mandato). Mitterrand governou com o apoio do tradicional Partido Socialista, enquanto Macron governa com o apoio do Em Marcha!, um partido que ele criou para sua candidatura presidencial. Comparando entre países, o índice de personalismo de Macron também é maior do que o da chanceler alemã Angela Merkel, cujo índice flutuou em torno de -0,8 durante seu mandato. Ela vem de um partido de longa data, a União Democrata-Cristã.

A Figura 1 ilustra a tendência geral de personalismo em democracias de 1991 a 2020. O nível bruto de personalismo médio, representado pela linha contínua, indica que os regimes democráticos, de maneira geral, foram se tornando menos personalistas até o início dos anos 2000, até retornarem aos níveis observados durante os anos 1990. Em regiões onde houve muitas transições democráticas da terceira onda, como a Europa Central e o Leste Europeu, os níveis de personalismo foram altos porque os líderes possuíam uma influência fora do comum sobre os recém-criados partidos políticos. Em outras palavras, nos países cujo período autocrático não contava com uma competição eleitoral multipartidária, os partidos que emergiram após a democratização eram frequentemente novos. Seus líderes não haviam tido a oportunidade de ascender em seus partidos ao longo de uma carreira política. Isso teve como efeito a elevação dos índices de personalismo dos líderes. A linha tracejada na figura ajusta o índice de personalismo para a idade do regime democrático, permitindo levar em conta essas transições. Portanto, uma clara tendência emerge, com o personalismo aumentando consistentemente ao longo de um período de trinta anos.

Para melhor entender essas tendências, dividimos nossa amostra por região. A Europa representa boa parte das observações (40%), que incluem dados para cada ano em cada país em nossa amostra, seguida da África (17%), Ásia (13%) e América do Sul (11%). Os 19% restantes compreendem outras regiões do mundo e são pouco representadas na amostra. Quase todas as regiões no mundo observaram um aumento no personalismo nas últimas décadas. Mesmo em regiões como África e Ásia, onde o personalismo diminuiu nas primeiras décadas após 1990, ele vem crescendo desde 2010. Embora nem todos os países europeus tenham observado um crescimento do personalismo, muitas democracias da terceira onda o fizeram — incluindo a República Checa, a Hungria e a Eslovênia. O mesmo aconteceu na Ásia, onde o personalismo aumentou na Índia, Paquistão, Coreia do Sul e Taiwan.

Outros casos que demonstraram um crescimento substancial no personalismo incluem Benin na última década, El Salvador (com a eleição de Nayib Bukele), Guatemala, México (onde houve um salto substancial a partir de 2019), Mongólia desde 2006, Senegal (em particular após 2013), e a Venezuela após a eleição de Hugo Chávez em 1998. Curiosamente, apesar da impressão dada pela cobertura da imprensa, os níveis de personalismo não mudaram nas Filipinas sob Rodrigo Duterte, onde os níveis permaneceram comparáveis (ou até menores) durante seu mandato aos níveis das administrações de muitos de seus antecessores, incluindo Gloria Arroyo, Joseph Estrada e Fidel Ramos.

O personalismo está fortemente relacionado com o populismo, e os dois fenômenos cresceram de maneira conjunta. Usando nossos dados para medir o populismo, definido por Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser como uma ideologia que separa a sociedade em dois grupos homogêneos — as “pessoas puras” e a elite corrupta — e argumentando que a política deveria expressar a vontade popular, concluímos que os líderes personalistas e seus partidos têm maior probabilidade de serem populistas. Nossa medida de personalismo, no entanto, é menos subjetiva do que o conceito de populismo. Portanto, nosso índice de personalismo serve como indicador principal, ou um alerta precoce, das ameaças à democracia que iremos discutir.

O impacto na democracia

A ascensão do personalismo em regimes democráticos seria algo corriqueiro se fosse acompanhada de poucas mudanças importantes. Observamos, no entanto, que democracias personalistas — ou democracias com níveis de personalismo acima do padrão — se diferenciam em aspectos significativos de seus pares não personalistas, e que um maior personalismo é prejudicial à democracia. Os dados mostram que o personalismo aumenta a probabilidade de declínio democrático ao permitir a apropriação de poder pelo governante — o desmonte progressivo da democracia — , que se tornou a maneira mais comum pela qual as democracias sucumbem. O efeito colateral do personalismo também é válido para outras formas de retrocessos, seja um declínio acentuado ou o colapso total do regime.

Um preditor significativo, objetivo e fácil de se observar do personalismo ao longo do tempo é se o líder cria seu próprio partido político ou sua ascensão se dá dentro de um partido tradicional. Quando levamos em conta o fato de que alguns líderes sobrevivem mais tempo no poder do que outros, os dados mostram que os líderes que fundaram seus próprios partidos são substancialmente mais personalistas, e comandam governos que pontuam 11% menos na escala de poliarquia do V-Dem do que aqueles que surgem dos quadros de partidos tradicionais. De maneira similar, líderes personalistas têm probabilidade três vezes maior do que outros de testemunhar o declínio da democracia durante seu mandato, e os regimes democráticos que comandam têm probabilidade três vezes maior de entrar em colapso (2,9%, comparado com 1% entre líderes não personalistas).

Testes subsequentes usando o índice completo de personalismo, ajustando por possíveis variáveis de confusão como a idade e a qualidade da democracia, confirmam esses resultados. Encontramos efeitos estatisticamente significativos do personalismo sobre a erosão democrática, declínio democrático acentuado e colapso democrático. Em termos de erosão, um aumento de um desvio padrão em personalismo está associado, em média, a uma redução de um ano para outro de cerca de 1,4% no nível de democracia. Se esse efeito médio continuar ao longo de um período de cinco anos, haveria um declínio de aproximadamente 7%.

Com relação a declínios acentuados na qualidade da democracia (de 10% ou mais da nota da democracia no ano em que o governante assumiu o mandato, a que nós nos referimos como erosão democrática), encontramos resultados igualmente preocupantes. Os dados revelam que um crescimento da ordem de um desvio padrão do personalismo aumenta o risco de uma queda pronunciada de cerca de 1,3% em um ano qualquer. A Figura 2 mostra essa relação. A probabilidade de um declínio democrático acentuado aumenta de pouco mais de 1% em níveis mais baixos de personalismo para quase 2,5% nos níveis mais altos. Esse resultado permanece considerável após ajustar pelos possíveis fatores de confusão discutidos anteriormente. Há, em resumo, uma relação significativa e robusta entre o personalismo e o rápido declínio democrático nas últimas três décadas.

Além disso, um aumento de um desvio padrão em personalismo aumenta a probabilidade de colapso democrático em aproximadamente 1,4%, mesmo controlando por uma medida de populismo, que está correlacionada com o personalismo. Esse resultado é bastante significativo, dado que apenas 1,5% de todas as observações na amostra passaram por uma transição de democracia para autoritarismo.

A maioria dos eventos de colapso democrático desde a Guerra Fria resultou de apropriações incrementais de poder pelo governante. Alguns, no entanto, foram o resultado de golpes militares, e evidências anedóticas sugerem que o personalismo também desempenhou um papel nessas ocorrências. Em agosto de 2020, por exemplo, o presidente maliano Ibrahim Boubacar Keita (conhecido como IBK) foi deposto por um golpe militar, colocando abruptamente um fim à democracia do país. IBK havia criado seu próprio partido, Reagrupamento por Mali, e demonstrado tendências personalistas. Por exemplo, apesar da pouca experiência no parlamento, o filho de IBK, Karim, integrou a comissão de defesa, e o sogro de Karim, Issiaka Sidibé, era o presidente dessa comissão. Quando os militares intervieram em meio a amplas manifestações, associaram sua oposição a IBK a sua propensão ao personalismo. Após o golpe, seu porta-voz disse que “o clientelismo e a condução familiar dos assuntos de Estado acabaram com qualquer oportunidade de desenvolvimento desse lindo país”. A observação de tendências de personalismo, medido pela probabilidade de o governante criar seu próprio partido, oferece um alerta precoce dos riscos à democracia.

Como o personalismo deteriora a democracia

Existem inúmeras maneiras pelas quais o personalismo aumenta o risco de retrocesso democrático de um país. Primeiro, líderes personalistas aumentam a polarização nas sociedades que governam, o que as pesquisas apontam estar associado ao declínio democrático. Como mostra a Figura 3A abaixo, os líderes que criam seus próprios partidos promovem níveis muito mais altos de polarização após serem eleitos do que líderes de partidos tradicionais. Além disso, líderes de partidos tradicionais tendem a diminuir a polarização após cerca de quatro anos no poder, enquanto líderes longevos que criaram seu próprio partido continuam intensificando a polarização. A Figura 3B mostra a correlação positiva e estatisticamente significativa entre nosso índice de personalismo e a subsequente polarização após controlar pelo grau inicial de democracia no ano em que o governante assume seu mandato e pela idade do regime democrático e níveis iniciais de polarização e de institucionalização partidária.

O personalismo provavelmente alimenta a polarização porque uma vez que o poder está concentrado nas mãos do governante, as escolhas de políticas públicas incorporam poucas vozes. Excluídos, grupos de oposição acabam se desiludindo com o processo político, aprofundando a cisão entre os campos políticos. Como nossa medida de personalismo é anterior à chegada do líder ao poder, podemos garantir que a maior polarização está ligada ao comportamento do governante no exercício de seu mandato e não a características já existentes do líder ou do partido anteriormente no poder. A mensagem é clara: quando os líderes chegam ao poder apoiados por partidos que eles próprios dominam, o que se segue é uma maior polarização política. Um crescente corpo de estudos mostra que a polarização, por sua vez, é uma ameaça à democracia. Milan Svolik mostrou que, à medida que sociedades se tornam mais polarizadas, aumenta a disposição dos eleitores de tolerar abusos de poder e sacrificar princípios democráticos, se isso atender aos interesses de seu grupo e mantiver os outros grupos longe do poder. Em sociedades politicamente divididas, as pessoas desenvolvem fortes preferências por seu candidato ou partido favorito, a ponto de detestar aqueles que estejam do outro lado do espectro político.

Para além da polarização, diversas dinâmicas decorrentes da relação de um líder personalista com seu partido também aumentam os riscos de declínio democrático. Tipicamente, as democracias se deterioram por dentro em razão das ações de líderes para reduzir a capacidade de seus opositores de oferecer resistência. Essas ações podem incluir o redesenho de distritos eleitorais (gerrymandering), a intimidação de opositores e a monopolização do acesso à imprensa antes de campanhas eleitorais. Essas apropriações de poder têm maior probabilidade de serem bem-sucedidas quando os líderes governam com o apoio de um partido personalista. Primeiro, um maior personalismo significa que os líderes possuem maior poder de barganha em relação ao restante da elite partidária, tornando mais difícil para outras lideranças partidárias se oporem às tentativas do líder de consolidar seu controle. Além disso, partidos personalistas tendem a ser pouco organizados, aumentando os riscos para as elites caso tentem resistir às ações do líder.

Em segundo lugar, um líder personalista que cria seu próprio partido normalmente possui bastante controle sobre a seleção dos candidatos e de cargos importantes. Membros de confiança da família e outros correligionários leais têm prioridade em relação a políticos de carreira. Esses indivíduos têm menor probabilidade de resistir à apropriação de poder pelo governante porque sua fortuna política está fortemente ligada à daquele líder. Em partidos tradicionais, em contraste, as elites ainda são capazes de manter suas carreiras políticas mesmo na ausência do líder. Isso lhes dá um incentivo maior para agir caso o líder tente se apropriar do poder.

Por fim, há motivos para esperar que os líderes e indivíduos que compõem partidos personalistas sejam menos comprometidos com instituições democráticas do que aqueles de partidos não personalistas. Em partidos tradicionais, os indivíduos chegam ao poder após progredirem dentro da estrutura de seus partidos, passando por governos locais ou por cargos importantes do governo. São mais expostos à política democrática e a seu funcionamento. Aprendem habilidades de negociação com a oposição, realização de acordos políticos e construção de coalizões que, por sua vez, moldam suas preferências normativas pela democracia. Líderes e dirigentes de partidos personalistas são muitas vezes recém-chegados ao jogo político — outsiders da política — , e falta-lhes esse tipo de exposição e compromisso com as instituições democráticas. Isso pode torná-los mais propensos a tentar se apropriar do poder.

O caso da Hungria ilustra muitas dessas dinâmicas. Em 1995, Viktor Orban deslocou o partido Fidesz da centro-esquerda para a direita do espectro político. Essa mudança de ideologia fraturou o alto escalão do partido, permitindo a Orban remover lideranças que se opunham a seu governo. Isso abriu caminho para a ascensão de correligionários leais a ele, muitos dos quais nunca haviam feito parte do establishment político da Hungria e não possuíam experiência de governo. Em particular, ele nomeou Lajos Simicska, antigo colega de escola e de universidade, para os postos de tesoureiro do partido e chefe da autoridade tributária da Hungria de 1998 e 2002. Simicska tornou-se um importante conselheiro para Orban e proprietário de um dos maiores conglomerados de comunicação na Hungria até eles romperem em 2015. Após a derrota eleitoral do Fidesz em 2002, Orban reformou o estatuto do partido ampliando seu controle sobre o processo de seleção dos líderes locais, dos candidatos e da liderança do partido no Legislativo. Ao colocar pessoas leais a ele em posições-chave, Orban esmagou a oposição interna a ele e a sua agenda.

A ausência de contrapeso ao poder de Orban dentro do Fidesz e a supermaioria parlamentar que o partido conquistou em 2010 abriram caminho para que Orban perseguisse o poder absoluto e permitiram o declínio democrático na Hungria. Ele tomou as rédeas da imprensa e promoveu narrativas pró-Fidesz ao colocar centenas de meios de comunicação sob a supervisão de uma fundação monitorada por seus aliados. Ele reduziu a independência do Judiciário diminuindo a idade de aposentadoria de juízes e forçando a renúncia de mais de duas centenas deles. O Fidesz também colocou aliados políticos na alta corte, na comissão eleitoral, no órgão de controle do Executivo e no banco central. O personalismo e o retrocesso democrático formam um círculo vicioso, à medida que o crescente controle de Orban sobre seu partido e sobre o governo da Hungria amplifica seu poder pessoal às custas das instituições políticas.

O deslocamento de Orban para a direita do espectro político também ampliou a polarização na Hungria. Na prática, sua “Nova Direita” criou um sistema partidário de dois blocos, com o Fidesz e o Fórum Democrático Húngaro à direita do centro político e a Aliança de Democratas Livres e o Partido Socialista Húngaro convergindo mais à esquerda. Todo esse processo aprofundou clivagens sociais existentes. Nas eleições de 2006, as divisões entre os dois blocos foram tão pronunciadas que passeatas acabaram em “brigas nas ruas entre manifestantes e a polícia”.

Personalismo e mudança tecnológica

O movimento em direção a um maior personalismo nas democracias tem acontecido lentamente ao longo das últimas duas ou três décadas. Pesquisadores apontaram para evidências impressionistas dessa mudança, como a substituição de símbolos partidários por imagens de líderes durante campanhas eleitorais e a crescente propensão da imprensa de mencionar os candidatos em vez dos partidos aos quais pertencem. Mesmo nos sistemas parlamentaristas, estudiosos apresentaram evidências específicas de alguns países de que os eleitores estão se tornando mais centrados em candidatos em suas preferências eleitorais. Dados comparáveis entre países não estão disponíveis para medir a tendência de longo prazo em direção ao personalismo, mas nossos dados desde 2000 indicam que ela esteja acelerando. Embora o personalismo seja um processo complexo movido por diversas dinâmicas interrelacionadas, um fator que está contribuindo para o crescimento do personalismo é o uso pelos governantes de ferramentas digitais para facilitar a consolidação do poder.

Há evidências anedóticas associando a ascensão do personalismo ao crescimento da mídia digital, especialmente a televisão nos anos 1950 e 1960. A mídia televisiva, incluindo a crescente importância de debates políticos pela televisão durante campanhas eleitorais, influenciou significativamente como eleitores viam seus líderes. Na Rússia, a televisão desempenhou um papel fundamental na percepção de Vladimir Putin na eleição presidencial de 2000 — num momento no qual a democracia era frágil e as eleições eram mais competitivas do que são atualmente. Em Between Two Fires [Entre dois incêndios], Joshua Yaffa descreveu como a imprensa estatal impulsionou a imagem de Putin e o apresentou como um sucessor inevitável do presidente Boris Yeltsin. Nos primeiros dias do mandato de Putin, a televisão estatal facilitou sua personalização do poder ao retratá-lo como o comandante-chefe de facto, supervisionando operações militares na Chechênia, e como o único qualificado para resolver os problemas da Rússia. Yaffa observa que, à época, as pesquisas eleitorais indicavam um crescimento de Putin de quatro ou cinco pontos por semana. De maneira similar, outros líderes personalistas como Hugo Chávez usaram o rádio e a televisão para estabelecer um contato direto e não mediado com seus apoiadores, elevando o perfil pessoal do líder acima de outras instituições e até mesmo do partido governista.

Atualmente, as ferramentas digitais podem estar amplificando essas dinâmicas ao permitir que os governantes alcancem audiências ainda maiores. Além do poder de disseminação, as tecnologias digitais — incluindo o uso de inteligência artificial (IA) para filtrar o vasto conteúdo online ou bots que amplificam campanhas de influência e inundam as redes sociais de posts visando distrair ou enganar — criam oportunidades para que líderes censurem e manipulem seu ambiente midiático, silenciando vozes críticas, e “controlem a narrativa” de maneira mais efetiva. Para testar essa hipótese, construímos uma variável capturando a repressão digital estatal. Essa variável incorpora informações sobre múltiplos aspectos da capacidade de um governo de monitorar, censurar e silenciar redes sociais, de filtrar e desligar a internet, e de criar alternativas de redes sociais controladas por agentes do Estado.

Nossos resultados de 2001 até 2020 indicam que a repressão digital aumenta o personalismo, mas não observamos evidência do oposto (de que o personalismo amplifica a repressão digital). Tanto a repressão digital quanto o personalismo aumentaram ao longo desse período, mesmo levando em conta as diversas capacidades de repressão digital dos Estados. Essas tendências permanecem correlacionadas mesmo após controlar pelas diferenças entre países e observações anteriores de repressão e capacidade digital.

À medida que aumenta a repressão digital, notamos um aumento do personalismo nos anos subsequentes. Isso sugere que a tecnologia reduz os custos para os líderes que tentam consolidar o poder. Um maior controle da narrativa pode fazer com que consigam diminuir a resistência à apropriação do poder, reduzindo a necessidade de repressão para consolidar o poder e personalizar o sistema político. Democracias na parte inferior da escala de repressão digital, como o Japão de Shinzo Abe, Senegal de Macky Sall e a Turquia de Bulent Ecevit, tendiam a não observar o aumento do personalismo durante o mandato de seus líderes. Aqueles no topo da escala — como a Nigéria de Muhammadu Buhari e a Sérvia de Aleksandar Vucic — testemunharam crescimentos muito maiores do personalismo.

Embora sejam necessários estudos mais aprofundados para esclarecer como líderes democráticos usam ferramentas digitais para facilitar o personalismo, evidências anedóticas oferecem algumas pistas. Na Turquia, por exemplo, antes de sua transição para uma ditadura em 2016, o então primeiro-ministro Erdogan adotou medidas severas contra as redes sociais após os protestos da Praça Taksim, em meados de 2013. Sua dura resposta a um protesto contra a construção de um shopping no lugar de um parque em Istambul desencadeou manifestações por todo o país contra o crescente autoritarismo de seu governo. O governo indiciou 29 pessoas por supostamente incitar a violência nas redes sociais. No início de 2014, o governo aprovou uma emenda à Lei da Internet 5.651 permitindo que as autoridades de telecomunicações do país bloqueassem o acesso a determinados websites que considerassem “discriminatórios ou ofensivos a certos membros da sociedade” — uma medida que o regime usaria posteriormente como pretexto para remover conteúdo de páginas de opositores e veículos de comunicação. Além disso, o regime concedeu à Agência Nacional de Inteligência acesso ilimitado e indefinido a “dados privados, documentos e informações pessoais […] sem mandado judicial”. Google e Twitter também viram um aumento de pedidos vindos de autoridades turcas de remoção de conteúdo que o governo considerava questionável. Na primeira metade de 2014, o “Twitter recebeu 186 pedidos de remoção de conteúdo envolvendo 304 contas” — um aumento em relação aos sete pedidos envolvendo trinta contas em 2013. A tentativa de golpe de 2016 acelerou ainda mais as tentativas de Erdogan de aumentar o controle sobre a internet, com medidas contra as redes sociais, bloqueios a páginas da Web e remoção de conteúdo online.

Também na Polônia a repressão digital pode estar facilitando o personalismo, especialmente na medida em que o regime usa a tecnologia para amplificar narrativas da mídia tradicional que semeiam a divisão na sociedade polonesa, promovem o partido governista, o Lei e Justiça (PiS), e um conservadorismo cultural. Em novembro de 2015, apenas um mês após o PiS chegar ao poder, a Cat@Net, uma fazenda de trolls polonesa apoiada com recursos públicos do Fundo Nacional de Reabilitação de Pessoas com Deficiência, começou a criar contas nas redes sociais para promover narrativas pró-regime. O PiS combinou a inserção de desinformação na esfera pública com tentativas offline de silenciar veículos de imprensa críticos ao regime. Em janeiro de 2016, o PiS aprovou uma lei de imprensa colocando a televisão pública, incluindo um dos canais de maior audiência, a Telewizja Polska (TVP), sob o controle governamental alegando viés ideológico. A TVP agora cobre de maneira desproporcional autoridades do PiS, dedicando significativo tempo de antena ao líder do partido, Jaroslaw Kaczynski. A fazenda de trolls amplificou as narrativas da TVP, incluindo aquelas favoráveis a Kaczynski.

O declínio democrático que vem de cima

A tendência global de aumento do personalismo, não mais confinado a regimes autoritários, é uma nova fonte de riscos para as democracias. Com base em nossos estudos, o retrocesso democrático de hoje é, sob vários aspectos, uma dinâmica de cima pra baixo: políticos enfraquecem os mecanismos de freios e contrapesos e aos poucos consolidam o poder, mesmo quando o apoio público à democracia permanece alto. Em Benin, por exemplo, o presidente Patrice Talon começou a minar as instituições democráticas após chegar ao poder em 2016. Nas eleições parlamentares de 2019, já não havia democracia: novas regras eleitorais barraram todos os candidatos de oposição. Isso ocorreu apesar de amplo apoio popular à democracia. Nossos achados sugerem que é o relacionamento de um governante com seu próprio partido, e não apenas as escolhas dos cidadãos, que polariza as sociedades e aumenta os riscos de ruptura democrática. Caso os cidadãos tentem responsabilizar tais líderes, sua capacidade de fazê-lo é frequentemente limitada pela degradação da integridade do processo eleitoral ou por mudanças nas regras do jogo que tornam difícil remover do poder aspirantes a autocrata.

Líderes personalistas tendem a dominar as estruturas internas de seus partidos, enfraquecendo ou eliminando a resistência intrapartidária à crescente apropriação de poder que se tornou a causa mais comum de declínio democrático. Nosso índice de personalismo, que considera as relações do líder com outros atores de dentro do partido governista, oferece um alerta precoce claro de retrocesso que pode ajudar grupos de defesa da democracia a priorizar sua alocação de recursos. No nível mais elementar, mostramos que um país no qual o líder chega ao poder apoiado por um partido que ele criou é um risco elevado de retrocesso democrático.

Melhores percepções sobre os fatores capazes de impedir ou desacelerar o processo de personalização são cruciais para garantir que a política reflita uma diversidade de preferências e não apenas as preferências de líderes personalistas e seu círculo mais próximo. Embora haja vários fatores por trás do crescimento global do personalismo, oferecemos evidências preliminares de que tecnologias digitais facilitam a capacidade de líderes de personalizar a política. A repressão online e na imprensa tradicional permite que líderes personalistas, seja em autocracias ou em democracias, tenham meios de disseminar narrativas positivas sobre sua liderança, bem como de censurar ou manipular narrativas desfavoráveis. Tecnologias maduras terão o potencial de acelerar essas dinâmicas. Novas ferramentas como microssegmentação ou algoritmos de IA podem ser usados para reforçar o apoio ao regime ou para neutralizar fontes específicas de insatisfação. Esses avanços darão aos líderes mais oportunidades de consolidar sua posição e eliminar controles sobre seu poder.

Outras explicações para o declínio democrático, em contraste, sustentam que as ações dos cidadãos criam condições que podem ser exploradas pelos líderes para consolidar o controle. Se, como sugerimos, os riscos à liberdade ao redor do mundo derivem menos das escolhas dos cidadãos do que das elites — especialmente dos governantes apoiados por partidos personalistas — que desmontam a democracia de cima para baixo, precisaremos prestar mais atenção às causas e consequências do personalismo. A representação, a accountability, a igualdade política e a própria democracia dependerão disso.

Journal of Democracy em Português, Volume 10, Número 2, outubro de 2021 © 2021 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press.

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