Os últimos 30 anos na política mundial: o que mudou?

Fundação FHC
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20 min readMay 4, 2020

Francis Fukuyama

Francis Fukuyama é pesquisador sênior e diretor do Centro de Estudos sobre Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito e do mestrado em política pública internacional da Universidade Stanford.

O que mudou na política mundial nos últimos 30 anos, desde que o Journal of Democracy publicou sua primeira edição em janeiro de 1990, e como esse periódico mudou em decorrência disso?

Primeiro e mais óbvio: vivemos hoje um clima político bastante diferente daquele que existia em 1990. O Journal of Democracy começou a ser publicado no meio do que Samuel P. Huntington chamou de a “terceira onda” da democratização.

O Muro de Berlim havia acabado de cair, e os regimes comunistas haviam começado a entrar em colapso por toda a Europa Central e o Leste Europeu — o maior avanço democrático nessas três décadas. Atualmente, estamos vivendo o que Larry Diamond chama de “recessão democrática”, com motivos para crer que ela possa se transformar em uma depressão generalizada. Grandes potências autoritárias como a Rússia e a República Popular da China desafiam abertamente o modelo liberal-democrático ocidental, ao mesmo tempo que populistas e nacionalistas lançam ataques a esse modelo de dentro do próprio Ocidente. Esses retrocessos aconteceram não apenas em democracias periféricas, mas nos Estados Unidos e no Reino Unido.

As páginas do Journal refletiram tal mudança, indo de um otimismo cauteloso no início dos anos 1990 a análises sobre os diferentes caminhos da transição democrática nos anos seguintes, de um ceticismo sobre se “transição” seria um conceito adequado para descrever o que estava acontecendo em diferentes países a uma preocupação crescente diante do surgimento de novas ameaças à democracia. Mais recentemente, os artigos selecionados passaram cautelosamente a tratar de ameaças vindas de dentro de países considerados democracias “consolidadas”, bem como as novas formas de “sharp power” que regimes autoritários estão empregando para enfraquecer as normas e regimes liberais-democráticos no mundo inteiro.

Novo eixo de polarização política

Por trás dessas mudanças está um deslocamento do principal eixo de polarização política. No maior parte do século 20, a política foi caracterizada pela divisão ideológica entre esquerda e direita, definida em grande medida em termos econômicos, com a primeira demandando maior igualdade socioeconômica e políticas redistributivas e a segunda priorizando liberdade individual e forte crescimento econômico. Atualmente, a polarização política gira cada vez mais em torno de questões relacionadas à identidade e tanto esquerda como direita estão redefinindo seus objetivos.

A base psicológica da política identitária apoia-se nos sentimentos das pessoas de que elas possuem valor e dignidade intrínsecos, mas que a sociedade ao seu redor não os reconhece como deveria. Essa identidade desprezada pode ser exclusiva de um indivíduo, mas frequentemente vem do ‘pertencimento’ a um determinado grupo, em particular um que tenha sofrido algum tipo de marginalização e/ou desrespeito. Está intimamente relacionada a sentimentos como orgulho, raiva e rancor.

E, embora injustiças econômicas possam estimular a demanda por reconhecimento, esse ímpeto é distinto das razões materiais que movem o homo economicus e, muitas vezes, pode levar a ações que vão contra o próprio interesse econômico comumente entendido. Muitos dos que votaram pelo Brexit (plebiscito realizado no Reino Unido em 2016), entendiam que o país poderia sofrer economicamente como resultado da separação da União Europeia, mas julgaram que aquele era um preço necessário para restaurar a identidade nacional do país. Embora nacionalistas e islâmicos se mobilizem por questões diferentes, em comum eles compartilham o sentimento de terem sido marginalizados e exigem respeito às suas opiniões e demandas.

Eleitores populistas na Hungria e na Polônia, por exemplo, sentem que suas identidades nacionais estão sob ameaça devido à imigração e de valores sociais liberais. Os apoiadores do Brexit viam a Europa como uma ameaça à soberania e aos interesses do Reino Unido, assim como muitos dos que elegeram Donald Trump à Casa Branca em 2016 se sentiam prejudicados por mudanças na economia, no mercado de trabalho e principalmente em suas vidas, com frequência atribuídas ao processo de globalização. Na Índia, os apoiadores do nacionalismo hindu, cujo líder, Narendra Modi, exerce o cargo de premiê desde 2014, querem basear a identidade nacional indiana no hinduísmo, assim como os militantes budistas em Mianmar e Sri Lanka sentem que as identidades religiosas de suas nações estão sob ataque.

Esse progressivo deslocamento da polarização política rumo a questões identitárias também tem ocorrido em democracias desenvolvidas e consolidadas. Se a esquerda do século 20, fosse ela comunista, socialista ou social-democrata, promovia os interesses da classe trabalhadora de forma mais ampla, a esquerda do século 21 está mais inclinada a defender grupos identitários específicos como minorias raciais, imigrantes, mulheres, pessoas com deficiência, minorias sexuais, povos indígenas e assim por diante. Como cada um desses grupos foi marginalizado de maneiras específicas (ao longo da história ou mais recentemente), as soluções deveriam ser específicas para cada grupo.

Essa mudança ideológica no campo da esquerda trouxe consequências políticas: em vez de focar na antiga classe trabalhadora e seus sindicatos (cuja grande maioria dos afiliados pertencia ao grupo racial ou étnico dominante), partidos de esquerda nos EUA e na Europa passaram a se ver cada vez mais como representantes dos interesses de variadas minorias. Um dos resultados desse afastamento em relação à classe trabalhadora tradicional é o crescente apoio dos eleitores pertencentes a esta classe a movimentos nacionalistas e/ou populistas.

Transformação similar tem ocorrido no campo da direita. Partidos conservadores do século 20 defendiam o livre mercado e direitos individuais, com apoio de grupos empresariais que apoiavam o livre comércio e mesmo uma imigração controlada. Mas aquela antiga direita vem perdendo terreno para uma que enfatiza a identidade nacional de base étnica, cujo discurso se baseia na ideia de que “nosso país” está sendo tomado de assalto por uma conspiração formada por imigrantes (oriundos de países da África, do Oriente Médio e da Ásia Central, da América Latina e outras regiões/países em conflito ou menos desenvolvidos), competidores estrangeiros (principalmente da Ásia, fortalecidos pela globalização) e elites políticas cúmplices desse “crime contra a identidade nacional”.

O surgimento da ‘democracia iliberal’

O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán (no poder desde 2019 e a cada dia mais forte), afirma abertamente que a identidade nacional húngara se baseia na etnia húngara e defende uma “democracia iliberal” na qual maiorias democráticas não estão necessariamente obrigadas a respeitar os direitos humanos universais (e os de minorias vistas como ameaça à identidade nacional vigente).

Esse tipo novo e emergente de conservadorismo ganha uma dimensão internacional cuja construção teve papel importante desempenhado pela Rússia (governada por Vladimir Putin desde 1999, alternando entre os cargos de premiê e presidente). Tem como base a defesa da cultura nacional e dos valores tradicionais em oposição a valores liberais como os direitos de minorias sexuais e a abertura à imigração (mesmo que controlada).

Existe uma conexão profunda (e crescente) entre as ideias predominantes na Rússia de Putin e na ideologia de parte da direita cristã norte-americana, oposta ao “casamento gay” e defensora de uma América cristã. Nos últimos anos, a Rússia também tem oferecido apoio moral e financeiro a líderes e/ou movimentos nacionalistas europeus, entre eles o Rassemblement National (nova designação da antiga Frente Nacional) de Marine Le Pen, na França, e a Liga (antiga Liga Norte) de Matteo Salvini, na Itália.

Quando Putin foi eleito presidente da Rússia pela primeira vez em 2000 (já exercia o cargo de premiê desde o ano anterior, a convite de Boris Ieltsin) e começou a se afastar dos Estados Unidos e da Europa, o líder russo parecia estar em busca de uma ideologia que justificasse sua oposição a políticas ocidentais. Flertou com ideias como a “democracia soberana” de Vladislav Surkov, que não chegou a se popularizar, e cada vez mais parece ter descoberto o papel de mentor de conservadores populistas em todo o mundo democrático. Não está claro quão a sério Putin leva essas ideias, mas são elas que baseiam sua política externa voltada a minar as elites políticas de nações que ele enxerga como rivais.

A “sociologia da polarização” também tem enfrentado mudanças. Jonathan Rodden mostrou que a baixa densidade populacional é a variável isolada que apresenta maior correlação com a o incremento da votação populista tanto nos EUA como na Europa. A economia global tem concentrado emprego e oportunidades em cidades cada vez maiores, que tendem a produzir eleitores mais liberais, enquanto os eleitores de cidades pequenas, vilarejos e áreas rurais têm optado pelos populistas. Esses eleitores tendem a ser mais velhos, ter menor escolaridade e se mudar pouco de domicílio. A densidade populacional passou a refletir não apenas oportunidades econômicas, mas também valores culturais.

Tecnologia: de aliada a inimiga?

A segunda maior mudança que ocorreu nos 30 anos de existência do Journal diz respeito ao impacto da tecnologia, fenômeno não diretamente relacionado à ascensão da identidade como principal eixo da política mundial. Os anos 1990 assistiram ao nascimento da internet para o grande público, que à época foi quase universalmente entendida como um importante instrumento à disposição dos democratas, pois ajudaria a disseminar informação — e, portanto, poder — para uma gama muito mais ampla de pessoas, contribuindo assim para a derrubada de hierarquias autoritárias. E de fato o fez: as revoluções populares que varreram o mundo comunista no final dos anos 1980 e no início dos 1990 e levantes como a Primavera Árabe (2010–2011) tiraram vantagem da capacidade de ativistas de se organizar espontaneamente, usando novas formas de comunicação em rede.

Infelizmente, aquela internet descentralizada não durou muito. Por um lado, pioneiros do mundo digital como Google e Facebook se agigantaram e desenvolveram controles monopolistas da rede mundial. Por outro, governantes autoritários em Pequim e Moscou compreenderam a ameaça representada pela rede mundial de computadores e aprenderam a moldá-la para servir a seus próprios objetivos. Atualmente, a internet divide-se em duas, uma fechada, controlada pela China, e outra mais aberta, dominada por um punhado de empresas privadas norte-americanas.

A internet chinesa é intencionalmente administrada com o objetivo de sustentar e proteger o governo autoritário da China, enquanto a internet “ocidental”, embora, em princípio, não se oponha à democracia tem sido operada para servir aos interesses comerciais das gigantes privadas que a controlam.

A tendência dessa nova política identitária, tanto no campo da esquerda como no da direita, tem sido a de fragmentar as sociedades em grupos identitários ainda menores. Sob vários aspectos, as redes sociais, cada vez mais populares, facilitam essa fragmentação social. Elas permitem a indivíduos com interesses comuns descobrirem uns aos outros, não apenas em suas próprias cidades ou países, mas em todo o mundo, ao mesmo tempo em que se fecham a críticas e outras visões, formando bolhas. Também se tornaram terreno fértil para atores antidemocráticos, que lançam mão de teorias conspiratórias e informações falsas para espalhar suas mensagens e atrair cada vez mais apoiadores.

Declínio da autoridade de instituições tradicionais

Seria equivocado, no entanto, atribuir o aumento da fragmentação social simplesmente à popularização da internet nos anos 90 (e das redes sociais nas décadas seguintes), pois o declínio da autoridade de instituições sociais tradicionais começou ainda antes e tem se aprofundado desde então. Essas instituições consistem não apenas em governos, mas em uma gama completa de estruturas de mediação social, incluindo partidos políticos, sindicatos, igrejas e outras organizações da sociedade civil. Esse fenômeno foi observado pela primeira vez no Journal of Democracy por Robert D. Putnam, que publicou seu famoso ensaio Bowling Alone [Jogando boliche sozinho] publicado pelo Journal em 1995. Pesquisas de opinião mostram o declínio da confiança nessas instituições ao longo do tempo e, embora existam variações dependendo do país e do momento, é um fenômeno transnacional — aparece em país após país por todo o mundo democrático.

Entre as hierarquias abaladas pela internet e as redes sociais está a chamada “mídia tradicional” — órgãos da mídia impressa, rádio e televisão que tiveram enorme influência nos países democráticos no século 20 e desenvolveram padrões jornalísticos para checar e verificar as informações publicadas. A ascensão de Google, Facebook e Twitter, entre outras empresas nascidas na internet, enfraqueceu o velho modelo de negócio da imprensa, baseado principalmente em publicidade e, atualmente, não está claro que incentivos econômicos existem para a oferta de notícias confiáveis e independentes a um público democrático amplo.

Esse enfraquecimento da confiança em instituições de mediação social é, em parte, subproduto de mudanças positivas que têm acontecido no planeta no século 21. A escolaridade da população da maioria dos países é maior hoje do que há algumas décadas, o que faz com que as pessoas pensem por si mesmas e não recorram simplesmente a fontes tradicionais de autoridade. Também há uma exigência bem maior por transparência na atuação dessas instituições do que anteriormente. Um exemplo disso são as acusações de pedofilia envolvendo padres católicos e as denúncias de violência e crimes sexuais envolvendo homens poderosos no topo de grandes empresas. Há mais informação disponível, e as pessoas estão menos dispostas a tolerar abusos ou a ocultação de informações prejudiciais em nome de um bem maior com os quais já não se identificam mais.

Quando Putnam observou que havia um declínio de longo prazo na participação e no apoio a associações de voluntariado nos Estados Unidos, alguns argumentaram que a sociedade americana havia passado por transformações profundas desde os anos 1950, tornando-se mais inclusiva e diversa. Mulheres e minorias raciais haviam ingressado no mercado de trabalho e em organizações das quais haviam sido previamente excluídas. Os “clubes do Bolinha” altamente homogeneizados em termos raciais, de gênero e religião produziam altos níveis de confiança, mas às custas de excluir importantes partes da população. O declínio na confiança em instituições é, portanto, em parte, o resultado de sociedades democráticas modernas terem se desenvolvido de maneira mais inclusiva e socialmente justa.

Os antigos apóstolos da revolução da informação acreditavam que ela agiria como uma força pela democracia em parte porque acreditavam que novas tecnologias teriam um impacto direto no nível do indivíduo. Nos anos 1980, o advento do computador pessoal multiplicou o número de pessoas com poder computacional em suas mãos. Os anos 1990 assistiram à ascensão da internet universal, enquanto os anos 2000 juntaram tudo isso de maneira portátil e onipresente na forma de um smartphone.

Avanços tecnológicos recentes reforçam centralização

Avanços tecnológicos mais recentes, no entanto, deslocaram o poder de volta para uma maior centralização. Embora a inteligência artificial e o machine learning possam ser embutidas em dispositivos pessoais — e, de fato, dependam de um vasto conjunto de informações coletadas por esses dispositivos — , os indivíduos não são capazes de dominar facilmente essas tecnologias e se proteger de eventuais consequências negativas. De fato, as bases de dados que permitem às máquinas aprender são tão gigantescas que apenas grandes empresas ou, em alguns casos, grandes países, conseguem utilizá-las plenamente. O tipo de sistema de vigilância que vem sendo implementado na China, interligando centenas de milhões de sensores e câmeras a centrais de análise e monitoramento, é possível sobretudo em sistemas políticos autoritários.

Até mesmo nas sociedades mais democráticas a emergência da “internet das coisas” vem coletando uma extraordinária montanha de informações (Big Data), cujo uso será ainda mais obscuro para usuários individuais. Por sua vez, organizações gigantes e tecnicamente preparadas, tanto governos como empresas privadas, cada vez mais exploram essa quantidade impressionante de dados para reforçar seu poderia econômico ou político. Nada disso contribui para o “empoderamento” democrático, embora ainda seja cedo para prever suas consequências políticas a médio e longo prazo.

Por fim, seria equivocado atribuir as ameaças à democracia somente a desdobramentos inesperados da popularização da internet e das redes sociais. Também houve uma importante mudança na mídia tradicional, cujo controle em alguns países vem sendo cada vez mais exercido por oligarcas. Em um padrão iniciado pelo ex-premiê Silvio Berlusconi na Itália, mega-empresários adquiriram órgãos de imprensa e os usaram para alavancar suas carreiras políticas. Uma vez no cargo, esses oligarcas usam sua influência política para proteger seus interesses comerciais pessoais. Na Ucrânia, os principais canais de televisão estão ligados a uma meia dúzia de oligarcas que dominam a economia. Na Hungria, a mídia tradicional é atualmente controlada por empresários ligados ao Fidesz, partido de Orbán.

O neoliberalismo e seus críticos

Várias outras mudanças mais lentas transformaram o ambiente democrático tal como o conhecíamos no Ocidente durante a maior parte da segunda metade do século 20. A primeira tem a ver com a economia. O início dos anos 1990 foi marcado pelo apogeu da revolução do livre mercado desencadeada uma década antes por Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, no Reino Unido. Em reação à estagflação dos anos 1970, o modelo mental no qual as elites pensavam sobre política econômica foi revisto por acadêmicos como Milton Friedman, Gary Becker, George Stigler, Robert Lucas Jr. e outros. Esses pensadores desenvolveram um modelo mental sofisticado que basicamente endossava a frase jocosa de Ronald Reagan: “As nove palavras mais assustadoras da língua inglesa são: ‘Sou do governo e estou aqui para ajudar’”. A outrora dominante economia keynesiana havia desempenhado um papel positivo para governos lidarem com os ciclos econômicos, mas o “keynesianismo” foi substituído por um monetarismo estrito e um esforço de reduzir a intervenção estatal como um todo por meio de cortes de impostos, desregulamentação, privatização, redução tarifária e uma atitude branda em relação ao tamanho e poderio das empresas — o famoso “Consenso de Washington”.

Essa mudança para o que atualmente se chama pejorativamente de “neoliberalismo” — aliado ao aprofundamento do processo de globalização — possibilitou a emergência dos tigres asiáticos, da China e, mais recentemente, da Índia, em um processo que tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza, principalmente na Ásia, e desencadeou poderosas forças empreendedoras nos Estados Unidos e em outros países. Mas também teve consequências perniciosas nos anos pós-1990.

A primeira foi o agravamento da desigualdade de renda, com uma riqueza cada vez maior concentrada nas mãos de uma reduzida elite ao redor do mundo. A segunda foi a “financeirização” da riqueza e a desestabilização do setor financeiro em consequência de sua desregulamentação, provocando profundas crises financeiras na América Latina, no Leste Asiático, nos EUA e na União Europeia (zona do euro). A crise do subprime iniciada nos EUA em 2008 e a crise do euro de 2010 contribuíram para desacreditar aquelas elites econômicas e políticas que haviam promovido a ordem liberal internacional e criaram as condições para a ascensão do populismo na década seguinte.

O colapso da antiga União Soviética em 1991 parecia validar as visões promovidas pelos defensores do livre mercado. “Atordoados com o sucesso” (como diria Stalin), esqueceram que em um mercado eficiente o Estado continua a desempenhar funções vitais de garantia do Estado de direito, manutenção da estabilidade política e regulação da atividade econômica. O conselho vindo dos centros de poder ocidentais no início dos anos 1990 era de que era necessário desregular e privatizar o mais rápido possível, mesmo em locais ou setores onde a fraqueza do Estado era extrema.

Nesses casos, os resultados foram caos econômico, aprofundamento da pobreza e ascensão de uma classe de oligarcas e privilegiados. Para muitas pessoas, essas consequências tornaram-se associadas à própria democracia, abrindo caminho para a ascensão de Putin e outros autocratas na década seguinte.

O modelo mental de toda geração é influenciado pelas experiências coletivas que marcam o período de formação de seus membros. Para as pessoas que viveram a Guerra Fria e sua derrocada, a palavra “socialismo” tinha conotações bastante negativas. Para as pessoas nascidas após 1990, é o neoliberalismo e suas políticas relacionadas de austeridade fiscal, privatização e livre comércio que adquiriram uma conotação negativa. A popularidade do socialismo entre os membros progressistas da geração dos “millenials” nos Estados Unidos e a hostilidade à União Europeia professada por jovens da Europa Central e do Leste Europeu são subprodutos desse tipo de esquecimento geracional.

O retorno do nacionalismo e do populismo

Ivan Krastev e Stephen Holmes sugerem que há uma questão ainda mais profunda que explica o fortalecimento do nacionalismo e do populismo. Os regimes comunistas da Europa Central, do Leste Europeu e da antiga União Soviética fingiam que haviam resolvido o problema do nacionalismo, quando, na verdade, haviam simplesmente varrido a ameaça para debaixo do tapete. Após 1945, nenhum desses regimes havia tentado persuadir a geração do pós-guerra em relação aos perigos do nacionalismo, como os alemães ocidentais fizeram com êxito em relação às gerações nascidas no pós-guerra. De fato, para muitos na região, nacionalismo e identidade nacional passaram a ter um significado positivo, já que regimes comunistas haviam tentado suprimi-los, como foi o caso da URSS no esforço para manter o império soviético. Após 1989–91, as antigas “nações cativas” sob seu domínio abraçaram a parte democrática da democracia liberal, mas não necessariamente a ideia de que povos diversos ou mesmo os vários setores que compõem uma sociedade podem conviver harmonicamente dentro de um regime de “direitos iguais, aplicados de forma igualitária”. O resultado foi a emergência da democracia iliberal em países como Hungria e Polônia.

Ao mesmo tempo, na antiga União Soviética a política econômica dos Estados Unidos havia causado um efeito negativo nas perspectivas democráticas até hoje não plenamente conhecido. Mas os equívocos da política americana também prejudicaram o panorama democrático em outros aspectos. O período entre 1991 e 2008 foram extraordinários para a hegemonia política e militar norte-americana, quando o orçamento militar de Washington ultrapassava os gastos totais com defesa do resto do mundo somado, e os EUA não possuíam nenhum “competidor à altura” que pudesse contrabalancear seu poderio. A vitória relativamente fácil da coalizão liderada pelos Estados Unidos na Guerra do Golfo de 1991 convenceu os formuladores de políticas públicas dos EUA de que dispunham de um instrumento único para influenciar a política global. Isso levou a um segundo grande erro de cálculo político, que foi a invasão do Iraque em 2003. Diante de temores decorrentes da possível existência de armas de destruição em massa no Iraque, que posteriormente descobriu-se serem falsos, a administração do presidente George W. Bush derrubou a ditadura de Saddam Hussein e perseguiu uma agenda de “libertação” mais ampla, com o objetivo de refundar a política de todo o Oriente Médio.

Essa jogada teve inúmeras consequências imprevistas de longo prazo: a invasão deslocou o equilíbrio de poder na região a favor da República Islâmica do Irã e seus aliados xiitas no Oriente Médio. Isso levou ao prolongamento da instabilidade no Iraque até hoje e ao surgimento de um novo grupo terrorista, o Estado Islâmico. A guerra “sem fundamento” contra o Iraque de Saddam também prejudicou seriamente a OTAN (aliança militar ocidental), ao mesmo tempo que desacreditou o governo britânico, então sob a liderança de Tony Blair, por seu apoio equivocado a Washington (já que as armas de destruição em massa que haviam justificado a invasão nunca foram encontradas). Por fim, nas mentes de muitos mundo afora, a invasão e a ocupação do Iraque criaram uma associação indelével entre o uso unilateral do poder militar pelos EUA e a tentativa (frustrada) de promover a democracia em países onde essa tradição não existe.

A invasão do Iraque e a guerra sem fim no Afeganistão (iniciada após os atentados contra as Torres Gêmeas em 2001) tiveram um importante impacto em como os norte-americanos veem sua relação com o mundo exterior. Apesar de suas muitas diferenças, o democrata Barack Obama e o republicano Donald Trump compartilham a crença de que os EUA deveriam reduzir sua presença no Oriente Médio e no Afeganistão e evitar intervenções (em particular com propósitos humanitários) quando os interesses norte-americanos não forem centrais. Tudo isso produziu níveis cada vez maiores de ceticismo por parte dos jovens americanos em relação às perspectivas de uma promoção efetiva da democracia.

Em resumo: as experiências combinadas do antigo mundo comunista e no Oriente Médio felizmente resultaram em um grau maior de realismo na visão norte-americana sobre a viabilidade de promoção da democracia mundo afora (os europeus já costumavam ser mais céticos). A transição aparentemente rápida para uma democracia liberal em países como Hungria e Polônia após o colapso repentino do comunismo foi, em retrospectiva, um evento altamente fortuito, do qual muitos nos EUA extraíram a lição errada. Em 2005, o segundo discurso inaugural de George W. Bush abordou a universalidade das aspirações e dos direitos democráticos e incumbiu os Estados Unidos da tarefa de pôr fim à tirania ao redor do mundo — uma tarefa, disse o republicano, cuja consecução também garantiria a segurança nacional dos EUA a médio e longo prazo. Mas o foco no fim das tiranias ignorava a enorme dificuldade de construir uma democracia liberal sustentável entre os destroços deixados por elas.

Democracia e capacidade estatal

A imensa literatura disponível sobre transições democráticas, grande parte da qual publicada no Journal of Democracy, foca em instituições democráticas como eleições, regras eleitorais, partidos, legislaturas e coisas afins, e, em menor grau, nos principais elementos do liberalismo, como constituições e diplomas legais.

Essas instituições são desenhadas para restringir o poder que legitimam — mas têm como base o fato de que o poder existe, em primeiro lugar, na forma de um Estado que emprega o monopólio do uso legítimo da força em dado território. No que se refere ao problema de construção do Estado em territórios divididos ou conflagrados e onde não existe tradição democrática, no entanto, a ciência política contemporânea tem pouca coisa útil a dizer. A ironia é que até mesmo Hungria e Polônia, que pareciam no início dos anos 2000 serem transições bem-sucedidas para uma democracia liberal consolidada, revelaram-se muito menos do que isso.

Consequentemente, a política norte-americana tornou-se muito mais cautelosa — e com razão — em relação à capacidade de forças externas de controlar o que acontece no dia seguinte à saída de um ditador. O último exemplo desse tipo de intervenção foi a ação (limitada) da OTAN na Líbia em 2011. Obama extraiu dessa experiência a lição de que deveria evitar uma ação militar significativa na Síria após a eclosão da guerra civil no país e mesmo depois de o governo sírio ter utilizado armas químicas contra sua própria população, ultrapassando uma linha vermelha estabelecida pelo próprio presidente norte-americano na época.

A literatura sobre transições, seguindo uma mudança na agenda política, transformou-se de um foco intenso em instituições democráticas para a questão de capacidade estatal e, como parte disso, para reflexões sobre o problema da corrupção e como resolvê-la. Afeganistão e Iraque são casos extremos de Estados fracos, mas havia um reconhecimento crescente de que muitos países em desenvolvimento com governos estáveis também sofriam de baixa capacidade estatal e altos níveis de corrupção. Em alguns casos, como na Rússia, a corrupção era organizada a partir do topo e tornou-se a base do poder do Estado. Em outros casos, como no Brasil e no México, a corrupção coexistiu com o funcionamento das instituições democráticas, mas terminou por deslegitimar líderes eleitos. Consequentemente, ambos os países latino-americanos são atualmente liderados por presidentes populistas (um de direita no Brasil e um de esquerda no México).

O que precisa ser mais bem investigado é a relação entre democracia, por um lado, e o problema da corrupção e da capacidade estatal do outro. Há uma suposição generalizada, mas raramente declarada, de que a solução para a corrupção sistêmica é mais democracia, mas a relação empírica entre essas duas coisas é muito mais complicada.

A recente ascensão do populismo levou a um questionamento de parte do consenso que existia há apenas uma geração sobre transições democráticas. Naquela época, cientistas políticos falavam sobre “democracias consolidadas”, normalmente medidas pelo teste clássico de “dupla alternância” de Huntington: se eleições resultaram em o poder mudar de mãos de maneira pacífica uma vez, e depois novamente, poder-se-ia dizer que a democracia havia se consolidado em determinado país. Com os recuos que ocorreram recentemente em boa parte das democracias consolidadas (incluindo os Estados Unidos e o Reino Unido), a noção de que a democracia nunca retrocede após atingir certo nível parece estranha. Autores do Journal of Democracy como Steven Levitsky argumentaram que a ameaça mortal às democracias modernas não é o golpe militar, mas uma erosão gradual e contínua de normas e instituições como o que vem ocorrendo na Hungria desde 2011. Muitas pessoas veem esse processo se desenrolando até mesmo nos EUA.

Seria errado encerrar esse panorama de maneira pessimista. Ao longo do último século, a democracia passou por muitos altos e baixos. A crise atual não é tão grave quanto a que atingiu os anos 1930, quando o fascismo se alojou no coração da Europa. E aquela crise é certamente comparável com a queda da confiança na democracia que assolou o Ocidente durante os múltiplos problemas dos anos 1970. A faísca que deu início às transições de 1989–91 ainda existe em muitas partes do mundo. Apenas nos últimos anos, Ucrânia, Argélia, Sudão, Nicarágua, Armênia e Hong Kong assistiram à emergência de manifestações em massa contra governos autoritários, ainda que não tenham resultado em transições democráticas. Chéquia, Geórgia, Romênia, Eslováquia e até mesmo a Rússia testemunharam pressões populares contra a corrupção e o controle oligárquico do processo democrático.

Embora Donald Trump tenha desafiado muitas das instituições de freios e contrapesos da democracia americana, elas conseguiram em grande medida resistir. A mais importante delas, as eleições, deve ocorrer em 2020. No longo prazo, a democracia não parece favorecer o populismo. Jovens continuam a migrar de áreas rurais para grandes cidades, onde, como já dissemos, o populismo não costuma ser majoritário.

Para chegarmos no longo prazo, no entanto, precisamos primeiro sobreviver no curto prazo. Há atualmente duas tendências opostas no mundo: a primeira é a fragmentação social, acompanhada pelo declínio da autoridade de instituições de mediação, sobretudo em democracias consolidadas. A segunda é a ascensão de novas hierarquias centralizadas de Estados autoritários. Sobreviver ao presente significa reconstruir a autoridade legítima das instituições da democracia liberal e, ao mesmo tempo, resistir aos poderes que aspiram tornar instituições não democráticas centrais. O Journal of Democracy tem feito um trabalho extraordinário de analisar esses fenômenos ao longo dos últimos 30 anos. Torçamos para que continue a fazê-lo pelas próximas décadas, pois seus insights serão certamente úteis.

Publicado originalmente como “30 Years of World Politics: What Has Changed?”, Journal of Democracy, Volume 31, Número 1, January 2020. @ National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press.

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