Crossdressing e antropologia
O travestismo é expressão comportamental desde a obra de Shakespeare até a resistência de comunidades transgêneros na Índia
Por Marina Seibert Cezar
A prática da adoção pelos homens, de adornos atribuídos somente ao feminino tal como conhecemos como um mecanismo histórico, atinge as mais variadas manifestações de exposição social. Sobre uma perspectiva situacional e histórica, o travestimento pode ser interpretado como uma expressão ampla, já que compreende desde as brincadeiras de carnaval até os ritos nativos locais como o berdache. É expressão desde quando Shakespeare utilizava esse artifício em seus personagens para retratar as máscaras sociais de cada cidadão, até quando aparece na técnica do teatro japonês kabuki, no qual somente aos homens era permitido encenar.
Por essa razão, eles atuavam também nas figuras dramáticas femininas. Alguns atores inclusive se especializavam exclusivamente a essas interpretações, chamados de Onnagata. Arthur Markwick lembra que “Só na década de 1660 os papéis femininos, no palco, passaram a ser regular e continuamente interpretados por mulheres”. Assim como na Índia, o treinamento de ator de kathakali era por séculos, dado somente aos meninos, que interpretavam tanto os personagens quanto as deusas.
Há também, na subcultura das Lolitas, as brolitas, que são os jovens japoneses que desafiam as lógicas masculinas, ao usarem figurinos e excesso de elementos estéticos do grupo. Todavia, observam-se esses exemplos com o caráter da exceção e/ou que possuem a licença poética da arte, e por isso, não geram tanto conflitos quanto quando a prática é levada ao cenário cotidiano, no qual se estabelece como uma estrutura de desejo permanente.
Como acréscimo, para alguns estudiosos como Anna Stegh Camati, Shakespeare teve por função ir muito além da sátira às trocas de papeis. O escritor inglês utilizava a linguagem cênica como estratégia para problematizar as noções de gênero. Fazia isso, em especial porque na época, o teatro era uma importante instituição política para desafiar ideologias. Este era o caso das hierarquias sexuais vistas como uma fatalidade biológica, fundadas em um discurso patriarcal. Por meio das representações de seus personagens, Shakespeare forneceu indícios para subverter as identidades e, por conseguinte, para criticar as relações de poder mediante as estratégias do travestimento.
E avançando na questão do berdache, José Carlos Rodrigues explica que na tradição etnológica norte-americana, este é também conhecido como pessoa de dois espíritos. A base dessa ideia é o que o cientista social nomeia como uma gramática do sexo e nesse sentido, acredita em um desenvolvimento gradual de uma reação erótica, presente desde o nascimento, que orienta as manifestações da sexualidade. Além de relativismos e comparações culturais, esse autor evoca que as definições dos papeis sexuais e das maneiras pelas quais se relaciona esse xamã — para muitos nativos, esta seria a melhor explicação — se situam afastadas da biologia. Na visão do grupo, não existiria uma conformação anatômica e fisiológica sobre aquele.
Então, desses ajustamentos, ocorre a criação de uma terceira categoria, conhecida como berdache, ou seja, um sujeito que transita entre mundos. Na esfera tribal, o homem assume um comportamento antes restrito às mulheres nativas, como por exemplo, utilizar as vestimentas características dessas, assumindo suas funções tradicionais dentro do grupo, simulando inclusive, ciclos menstruais e gravidez. Aqui, incita um eixo de análise sobre os enfrentamentos ultrapassarem os limites de deliberação, uma vez que, no grupo, passa a ser alguém incorporado com às suas simulações. Em uma perspectiva de atravessamento de fronteiras culturais, ele se crê como mulher e nessa perspectiva, veste-se como ela deve ser, sem haver qualquer conotação homossexual.
Pelas inscrições tribais, Pierre Clastres também apresenta uma estrutura de pesquisa relacionada com as sociedades primitivas indígenas, ao identificar as diferenças das dimensões simbólicas pelas condições sexuais. Ele dedica um capítulo para desvendar a propriedade bastante distinta do uso de elementos culturalmente típicos, em que o homem mantém o arco como sua principal ferramenta; e a mulher, a cesta. Seus estudos sobre a cultura indígena Guaiaqui também discute a inversão da lógica nas atribuições de sentido do comportamento de Krembegi, nome de um dos índios nômades que tensionou os princípios das categorias de gênero. Diferente dos demais da sua tribo, seu corpo era flácido, seu cabelo era longo e ele negava a encostar-se nos arcos, símbolo material distintamente masculino e muito respeitado por eles. Em reforço, preferia carregar a cesta trançada pelas suas próprias mãos, fato interpretado como má sorte, praticamente uma execração, pois era uma das atividades destinadas exclusivamente às mulheres locais.
Por esse hábito endêmico do tímido índio, seus pares não podiam contar com ele como provedor de carne, principal alimento do grupo, ofício de caça para o qual os meninos desde muito cedo, eram preparados. Representação da virilidade, o canto noturno também fazia parte desse ritual na caça, mas o índio jamais o fez. Em vista de ele ter contado com o acolhimento de uma família, a partir dali, houve solicitação de algumas ações de esposas, como a busca de água, o descascamento de raízes e a fabricação de colares.
Esta última atividade era feita com extrema dedicação, sobrepondo-se inclusive, ao capricho das mulheres que enfiavam os dentes dos animais abatidos que seus maridos traziam no cordão. Mas não Krembegi. Pela análise etnográfica do pesquisador, este escolhia cuidadosamente somente os dentes de macaco, e do acúmulo, selecionava aqueles que tinham tamanho semelhante. Como fazia todos esses afazeres desde o seu nascimento, em um certo período de sua vida, não chamava mais atenção da tribo. Seguia respeitosamente todas as regras locais, mesmo que na ordem invertida de seu sexo.
Diferente do segundo exemplo, Chachubutawachugi já não teve tanta aceitação. Foi obrigado a morar sozinho e por isso, realizou mais atividades femininas como somente cozinhar. Também conhecido como o homem portador de cesta, tinha um porte grande, possuía longa barba e caçava, apesar de não usar arco. A pane o atacou de repente, deixando-o incapaz de ocupar um dos dois lugares. Ocorreu que tentou preencher os dois espaços, algo ainda mais inaceitável.
Sempre confuso, carregava a cesta, mas do seu jeito: usava a tira de sustentação no peito e não na testa, como de costume. O que ele achava pelo caminho era proveitoso para seu adorno corporal, incluindo resquícios de materiais deixados pelo homem branco. De qualquer forma, “Esse tabu sobre o contato físico com as insígnias mais evidentes do sexo oposto permite evitar assim toda transgressão da ordem sócios sexual que regulamente a vida do grupo”, norteia Clastres.
Ainda sob um ponto de vista antropológico sobre as normatizações de atitudes sexualmente ordenadas, Margaret Mead fornece outras evidências. Cruzando os materiais de análise originados da vivência com três característicos grupos étnicos em Nova Guiné, coleta realizada na década de trinta, utiliza-se dos estudos da produção do caráter sem consideração do sexo e do papel da cultura nesse processo. Por ter vivenciado de perto o cotidiano daqueles, ela pôde concluir que havia temperamentos aprovados para homens e outros para mulheres, assim como atribuídos a ambos. Foram identificadas diferentes prescrição de caráteres sexuais nos Arapesh e nos Mundugumor.
Uma terceira tribo, os Tchambuli, destoava mais da estrutura cultural graças a alguns papéis que, quando comparados, eram invertidos. Todavia, nenhuma conclusão foi creditada a bases biológicas, mas sim, a segregações feitas pela instrução que se estabelece ainda na fase infantil. Como unidade de análise, essa pesquisadora percebeu que os mecanismos de educação podem ser formas de adestramento para acentuar as diferenças temperamentais bastante arbitrárias, pois não se reconhecem dotes genuinamente individuais. Noções de masculinidade e feminilidade são antes, tidos como potencialidades rotuladas pela ordem biológica que dependiam de valores assimilados mediante um condicionamento cultural, que invariavelmente, cria expectativas sobre as atuações.
Assim como em qualquer cultura, há complexidade no conjunto de regras que visam garantir o poder e equilíbrio. Comumente, há utilização do sexo como uma forma de organização, para estabelecer traços de personalidade como um condicionamento social, esclarecendo na mesma instância, o sentido da natureza humana como algo extremamente maleável quando interage em um dado ambiente. Esse tipo de planejamento da ordem social sobre as crenças de comportamento congênito tem bases na complementaridade e é instituído como padrão que evoca uma grande pressão social.
Mead adverte que essas conformações interferem no curso de toda a vida do sujeito: “A existência numa dada sociedade de uma dicotomia de personalidade determinada pelo sexo, limitada pelo sexo, pune em maior ou menor grau todo indivíduo que nasce em seu âmbito. Aqueles indivíduos cujos temperamentos são indubitavelmente anômalos não conseguem ajustar-se aos padrões aceitos, e pela sua própria presença, pela anormalidade de suas respostas, confundem aqueles cujos temperamentos são os esperados para o seu sexo”.
Sobre esses traços contraditórios, a autora identificou o que ela chama de ‘inadaptados’, e suas implicações nas relações, os quais na sua maioria, são agrupados desta forma, orientados por um conforto generalista. Os desajustados seriam aqueles que não percebem uma vazão congenial para os seus dotes e com isso, não se encaixam aos roteiros que lhe seriam reservados. Disso decorre, pois qualquer membro que desobedece aos juízos aplicados está violando o outro também, o sujeito dos julgamentos.
Em sociedades que se especializam em comportamentos baseados no sexo, de forma invariável afloram justamente aqueles impróprios, que não são desejados, e que condenam esses diferentes a enfrentar desfavor social nas várias esferas de sua vida. Por outro lado, pouco é compreendido quanto ao conceito de travestimento em culturas que não cultivem padrões tão enraizados em papeis sexuais; logo, nesse caso, são oferecidas escolhas conforme os interesses em jogo.
Um homem Mundugumor pode, por exemplo, exercer atividades que têm a insistência em constituir uma associação feminina, sem ferir a masculinidade. Mas outras atividades que possuem diferenças padronizadas podem suscitar o que alguns grupos consideram inatural, como o já mencionado berdache. Qualquer indício de um filho com tal comportamento implica embaraço e preocupação, necessitando de atenção redobrada. Pessoas que, sem a variação no temperamento, inclinam-se para o desajustamento, confrontam-se nas suas evidências anatômicas, com as especificações decretadas dicotomicamente. E sempre, para haver tal desajuste, é necessário apresentar formas de organização que levam a concluir ser indigna a pura e simples classificação pelos padrões comuns determinados.
Um outro e último exemplo etnográfico, que desafia os moldes normativos e conduz a repensar conceitos universalisantes são as hijras, assim chamadas os transgêneros na Índia. Camila Almeida refere-se às comunidades transexuais como parte das tradições indianas há mais de quatro mil anos, sempre repletas de misticismo. Acredita-se que estas podem determinar o destino, prevendo, abençoando ou amaldiçoando. Em algumas regiões indianas que reverenciam o deus Aravan, aquelas são mais conhecidas como aravani, havendo inclusive, concursos de beleza aravani e um grande festival transgênero todos os anos, para celebrar o casamento hindu com o deus Krishna.
No período medieval, elas foram inclusive entendidas como líderes hindus, até a colonização britânica, quando foi decretada prisão perpétua aos que mantivessem relações sexuais com elas. A criminalização do sexo considerado para eles contra a natureza, foi por pouco tempo revogada: de 2009 a 2013. Foi somente em 2014 que as organizações dos direitos humanos permitiram às transexuais portar documentos oficiais, caracterizando um terceiro sexo. Embora ainda marginalizadas, elas têm espaço por leis de cotas nas escolas e nos trabalhos públicos.
*Marina Seibert Cezar é professora doutora do curso de Moda da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo. O texto acima faz parte da dissertação “Gênero e Moda: a construção da aparência na prática de cross-dressing”, apresentada durante o Doutorado em Ciências Sociais.