Dossiê: Caio Fernando Abreu
Crítico da ditadura. Ícone da contracultura. LGBT e soropositivo na década de 90. Os 70 anos de um dos escritores mais viscerais da literatura brasileira
Por Igor Zahir
“Pode-se dizer que a literatura e a vida de Caio encontraram seu destino na doença e na morte por AIDS. Depois do impacto inicial e da divulgação por ele próprio do diagnóstico nas célebres crônicas intituladas Cartas para Além dos Muros, a vivência da enfermidade tornou-se o núcleo de seus projetos de escrita — de maneira intensa, porém desdramatizada. Como se sabe, paradoxalmente pacificado pela iminência da morte, no período final de sua vida, Caio voltou ao começo e reescreveu e republicou os contos de Inventário do Irremediável, assim como organizou Ovelhas Negras, a marcante coletânea de inéditos e semi-inéditos retirados da gaveta. Destino é reencontrar, no fim, o início, muitas vezes de maneira invertida”.
Com essas palavras, o crítico literário e professor da UERJ Ítalo Moriconi faz uma análise no posfácio da volumosa edição que a Companhia das Letras lançou, com todos os contos de Caio Fernando Abreu. Se o escritor, atualmente uma verdadeira celebridade nas redes sociais, destacou-se no gênero do conto, para o acadêmico isso é reflexo de uma tendência geracional.
Basta lembrar-se de tantos outros contistas surgidos na década de 70: Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Silviano Santiago, entre tantos outros. Como diz Moriconi, o ano da morte de Caio F., 1996, bem pode servir como marco cronológico de um deslocamento geracional na periodização de nossa história literária. Hoje assistimos ao amadurecimento dessas prosadoras e prosadores da virada do século. Para a geração de Caio, os 80 é que foram a década de amadurecimento.
Heloísa Buarque de Hollanda e Alexandre Vidal Porto, que também comentaram a obra de Caio para a coletânea de contos, concordam que os textos dele falam da crise da contracultura como projeto existencial e político. “Do resgate sofrido pela utopia de um mundo alternativo centrado na recusa selvagem da racionalidade e resgatado pelos princípios do prazer e pela realidade espontânea do aqui e agora. Em Morangos Mofados a viagem da contracultura é refeita e checada em seu ponto nevrálgico: a questão da eficácia do seu ‘sonho-projeto’”, diz a pesquisadora em sua análise.
Vidal Porto acrescenta que “tudo o que significava libertação em alguma direção o interessava. Tinha muita curiosidade intelectual. Seus contos estão coalhados de referências musicais, literárias e cinematográficas. É como se, deliberadamente, se apresentasse como integrante de um sistema cultural cuja curadoria era feita por ele mesmo. Nesse exercício, acabou compondo uma das crônicas mais vívidas dos costumes e das angústias existenciais dessa geração, que fez a transição do regime militar para um Brasil liberto e se preparava para viver sua plenitude, quando foi confrontada com o espectro da AIDS”.
Dessexualização angelical
Organizador de um importante volume de cartas de Caio F. Abreu, Ítalo Moriconi chama atenção, no posfácio de Contos Completos, para a violência homofóbica que o autor colocava em seus textos, provavelmente como consequência do que vivia no cotidiano. “A literatura como vingança. Uma das páginas mais marcantes da literatura gay brasileira é Sargento Garcia, que está em Morangos Mofados. Aqui temos a iniciação sexual do gay em modo de sociedade tradicional: violentação do jovem (no papel de submisso, fêmeo) pelo coroa macho (um militar). Conto visto, com razão, como uma obra-prima dentre as alegorias literárias da ditadura no Brasil. Alegoria da presença sufocante do conservadorismo machista numa sociedade opressora e da conexão sexo-poder, em termos teóricos mais gerais (conforme Foucault). E não se pode deixar de ver no conto uma imagem projetada do próprio pai militar do autor”.
Moriconi conclui que, nos escritos de Caio, embora o sexo seja abundante e complicado, há também uma dessexualização angelical que comparece em graus e situações diferentes. “Leitores precisam estar preparados para descrições gráficas de homoerotismo. O universo gay aqui não é o das homoafetividades normalizadas, e sim o dos porões da pegação, das baladas e boates”.
“A homoafetividade é desejada, às vezes tangenciada pelas trepadas casuais. Há contos em que a trepada é hétero, mas o imaginário é gay. No conto Os sapatinhos vermelhos, os atos da protagonista feminina projetam fantasias claramente masculinas, homoeróticas. O quarteto heterossexual mascara o sonho de uma orgia gay. No célebre monólogo de Dama da Noite, é também o imaginário gay que fala pela voz da mulher devassa ou trans”.
O poema Fever 77° declamado por Fábio Assunção
A sete chaves
O Instituto de Cultura Delfos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem mais de 500 itens doados pela família de Caio F. Abreu, como cartazes de apresentações, folders e manuscritos. No entanto, a relíquia que todo pesquisador de sua obra sonha em colocar as mãos, é o armário onde estão oito diários secretos, mantidos pelo autor entre 1964 e 1996, ano de sua morte.
O empenho que as irmãs do escritor têm em manter tudo discretamente é tanto que, para se ter uma ideia, nem o guardião, o professor Ricardo Barberena, conhece o conteúdo daqueles cadernos, como ele mesmo revelou em entrevista ao jornal O Globo. “Não há dúvida de que esse diário é um item valioso para entender o imaginário poético de Caio. É um desafio paradoxal: meu trabalho é revelar e conhecer a sua obra, mas também respeitar a sua intimidade”.
Poucos pesquisadores já tiveram um breve acesso ao diário. Letícia Chaplin, a primeira a analisar a poesia do autor, explica que se tratam, sobretudo, de registros do processo de criação. “Várias versões de um poema, embriões de personagens e tramas, expressões e apelidos recuperados nas cartas. Mas também tem muita intimidade reunida: é Caio falando para ele mesmo, sem se preocupar com os outros”.
Enquanto o suspense em torno do diário fascina os fãs e entusiastas e os estudiosos citados nesse dossiê falam sobre sua colaboração transgressora para a literatura LGBT, o confidente e ex-secretário, Gil Veloso, afirma que a sexualidade era um ponto conflituoso para o escritor. “Não era um problema com a família, com aceitação por parte das irmãs. O problema era dentro dele”, diz o amigo no vídeo abaixo, ao falar sobre as paixões, relações e frustrações de Caio.
Cartas marcadas
“Tua carta, lida quatro vezes, me deu uma vontade absurda de estar em SP. Absurda porque tive a oportunidade de ficar aí em fevereiro e não quis. Você me pergunta pela minha paixão… Saco, acho que aqui to sentindo falta de estímulos-externos: barras mui violentas, batalha por grana, por casa, por emprego, essas coisas. Nas vezes em que estive mais pressionado de fora para dentro foi quando mais produzi. Estou cansado da meia boca daqui: sentimentos mornos — quanto tempo faz que não me apaixono? quanto tempo faz que não sinto ódio? quanto tempo faz que não tenho vontade de morrer? É como um filme de Antonioni fase-antiga, longas tomadas, lentíssimas, mui sacais — & nada acontecendo. Quanto tempo faz que não beijo alguém na boca? Many time, my friend”.
O trecho acima faz parte de uma das inúmeras correspondências que Caio, na época com 27 anos, trocou com o também escritor Nei Duclós nos anos 70. Cartas escritas à máquina em papel pardo comum, e corrigidas com caneta.
“Biógrafos e estudiosos já me pediram essas cartas. Uma biógrafa chegou a duvidar da existência delas, já que eu não ofereço a aparência de um capital simbólico suficiente para convencer os deslumbrados. Mas por algum motivo não cedi”, conta o interlocutor à revista Cult, onde divulgou em primeira mão as preciosidades.
“São todas cartas legítimas, originais, com a assinatura do amigo que já tinha grande prestígio na época e se transformou num escritor cult, numa celebridade nacional, queridíssimo por muitos milhares de leitores. Divulgo para o meu país conforme recebi: com o espírito desarmado e abraçado ao grande amor que os escritores do Brasil tem pela literatura que aqui se faz e aqui se paga com a vida”.
Doces memórias
Nesta quarta-feira, 12 de setembro de 2018, Caio completaria 70 anos. As irmãs, Márcia e Cláudia, cientes do que o escritor representa para tantas gerações desde a sua morte, decidiram prestar uma homenagem com a exposição que segue em cartaz até o dia 28 de setembro, no Museu Nacional da República, em Brasília. Na exibição estão cartas, versões originais de textos publicados, prêmios, manuscritos, móveis, fotos, aúdios e até roupas.
“Ele foi o que queria ser e isso chama atenção das pessoas. Ele é admirado porque nunca foi o que esperavam dele”, disse Claudia ao portal G1. Já a curadora e pesquisadora Lara Souto Santana aponta os temas universais em seu legado. “São angústias muito atemporais. Ele falava do que sentia e são coisas que a gente também sente. Qual a diferença de olhar pro texto de um Cervantes e pros textos do Caio Fernando Abreu? A linguagem dele não é hermética, é próxima da nossa e com angústias iguais às nossas”.
“Tudo o que ele escreveu ainda é muito atual”, explica Cláudia. “Qualquer texto pode perfeitamente ser encaixado hoje em dia. Não é que ele tivesse um comportamento irreverente. Ele não negava o que era. E não tinha outro jeito de ser, não queria ser e não conseguiria ser outra coisa”.
Cláudia de Abreu Cabral fala da relação de Caio com a família.
Como destacou o jornalista Tom C. Avendaño no jornal El País, Caio Fernando Abreu foi repetidamente o que não se podia ser. Gay e crítico da ditadura nos anos setenta e oitenta. Soropositivo nos anos 90. Teve outros traços, e esses mencionados não são nem equiparáveis entre si nem estão unidos por um fio condutor, mas compartilham uma ideia central.
“Caio é muito visceral, fala da angústia, do medo, do desespero”, afirma na mesma reportagem a editora Alice Sant’Anna, responsável pela publicação de seus contos na Companhia das Letras. “Ao longo dos anos, essa característica o marcou entre os leitores jovens. O contexto mudou, mas não a sua forma de falar a partir da contracultura. Ele continua sendo muito atual”.
Essa atemporalidade é ressaltada também por Schneider Carpeggiani, editor da revista cultural Pernambuco e da editora Cesárea. “Devido a todas as mudanças políticas que vivemos no Brasil, sobretudo após as passeatas de 2013, com mais e mais vozes no debate e com toda uma literatura que tem repensado a ditadura brasileira, um Caio mais interessante talvez esteja emergindo”.
“Estamos olhando para a relação da sua literatura com a ditadura, um trauma de geração que percorre seus livros até quando ele não é explicitado. Um trauma que é escrito algumas vezes por subtração. Vivemos um momento em que a literatura brasileira, por pura contingência, repensa sua relação com a ditadura. E essa política da época também nos faz olhar melhor, aceitar melhor, as nuances queer da sua literatura, as nuances bicha-louca e irônica da sua escrita”.
* Igor Zahir é presidente da Fundação LGBT+ Agreste e crítico cultural da Bravo!