Etnicidade e homossexualidade

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Fundação LGBT+ Agreste
11 min readSep 14, 2018

No conflito de identidades que inclui processo de exclusão e contexto histórico, entra em jogo a posição política dentro das tribos indígenas

Os “Dois-espíritos” são nativos americanos que desempenham vários papeis de gênero (Foto: Luke Gilford/OUT Magazine)

Por Martinho Tota

Rômulo foi meu primeiro interlocutor autodenominado homossexual. Tinha 25 anos quando o conheci e era um dos líderes da OJIP. Natural da cidade pernambucana de Olinda, terra natal de seu pai, aos 13 anos, Rômulo acompanhou os irmãos e a mãe viúva no regresso a uma das aldeias Potiguara, local de nascimento dela. Toda a família materna de Rômulo era da Baía da Traição, sendo por ele classificada como ‘indígena’. Dizendo ele apresentar ‘aspectos negro e indígena’, foi na Baía onde Rômulo começou a ‘viver mais essa história da cultura do meu povo. Eu vim aculturado, mas hoje eu já tô completamente conectado à situação. Hoje, diante do meu povo, existe um certo respeito comigo, por conta do trabalho que eu tento desenvolver com a comunidade’.

Quanto à identidade étnica de seu pai, as palavras de Rômulo eram no mínimo ambivalentes. Num primeiro momento, informou que o pai era negro. Já em outra ocasião, Rômulo falou que seu pai era fruto da união entre uma índia Fulni-ô e um índio Kapinawá (duas populações indígenas localizadas no estado de Pernambuco). O ponto de junção entre as duas versões de sua ascendência residia no “orgulho étnico” expresso por ele. A segunda, porém, era especialmente importante para Rômulo em se tratando do local onde ele vivia, de sua trajetória e aspirações políticas, uma vez que aqui ele dizia sentir- se “triplamente indígena”, por correr em suas veias os sangues Potiguara, Fulni- ô e Kapinawá.

Talvez essa flagrante incongruência operada pelo narrador Rômulo pudesse ser lida à luz de algumas questões refletidas por Homi Bhabha quando diz que, “para além das narrativas de subjetividades originárias, devemos focalizar aqueles momentos produzidos na articulação de diferenças culturais”. Esses momentos fronteiriços, segundo o autor, “fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação (singular ou coletiva) e novos signos de identidade”.

Nesse sentido, Bhabha aponta para a emergência de “interstícios”, para a negociação do valor cultural e de experiências intersubjetivas, enfatizando que a representação da diferença não deve ser lida como mero reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos. Para ele, a articulação social da diferença é uma negociação complexa, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que surgem em momentos de transformação histórica. Assim, nossa imagem pública vem a ser revelada não por sua coerência ou fixidez, mas antes por suas “descontinuidades”. Essas considerações eram válidas para a autoimagem que Rômulo procurava construir, reconstruir e modificar de acordo com seus propósitos e segundo as interações sociais em que estivesse envolvido.

No dia em que o entrevistei pela primeira vez, conversamos também a respeito da realidade vivida pelos sujeitos homossexuais indígenas na região da Baía da Traição. Segundo ele, era ‘complicado, porque meu povo vê a família como algo intocável. Para nossas lideranças, que têm uma visão muito fechada, o homem nasceu para casar com a mulher e a mulher com o homem, constituir família e viver da sua família’.

Para ele, a situação era especialmente complicada, uma vez que muitas das lideranças indígenas o viam como ‘liderança, um jovem militante, atuante, mas que é um cara que também tem uma falha. É como se a minha orientação sexual fosse uma falha diante do meu caráter’. Contudo, ele emitia um discurso segundo o qual ‘nós não somos a nossa opção sexual. Eu sou Rômulo, eu trabalho, eu tenho a minha família, tenho minha vida, eu me doo para minha comunidade, eu vivo Rômulo, eu não vivo homossexual. Eu quero um espaço de respeito, de alguém que quer lutar, de um homem que sou, indígena, e quero meu espaço independente da minha sexualidade’.

‘Nós passamos por alguns constrangimentos, discriminações. O espaço não é cor-de-rosa’, dizia ele, ‘mas a gente está sempre batalhando’. Para Rômulo, os homossexuais na Baía da Traição viviam ‘muito em off. Os outros têm medo, porque a gente sofre algumas represálias, passa por algumas situações’. As ‘represálias’ a que ele se referia se davam igualmente em outros espaços que não a Baía da Traição. Em Brasília, por exemplo, por ocasião de um congresso sobre juventude indígena, índios de outras etnias o chamaram ironicamente de ‘guerreiro’, numa clara alusão à sua sexualidade.

Todos os anos os “Dois-espíritos” se encontram em Montana (Foto: Luke Gilford/OUT Magazine)

No referido encontro, um dos grupos de trabalho, coordenados por Rômulo, tinha como tema justamente a questão dos jovens indígenas homossexuais. Lá, seu discurso foi o de que ‘os povos indígenas de todo o país tenham as suas especificidades, que não vão ser ofuscadas pelo fato de um homossexual estar num Toré ou em algum ritual, desde que você saiba discernir entre o que é importante para o seu povo e o que é importante para a sua vida particular’.

Rômulo apontou como uma característica comum a todo homossexual, independentemente de sua identidade étnica, a ‘sensibilidade em relação às coisas’. Os não indígenas, porém, ao contrário dos índios, seriam mais ‘desprendidos’ por estarem menos preocupados com as questões ‘social’ e ‘cultural’. ‘Para nós, a comunidade, a visão que as pessoas têm de você, é muito importante. Não estou dizendo que sejam outros valores ou que sejam pessoas diferentes, mas são pessoas que têm um projeto de vida diferente; não vivem de glamour como um homossexual não indígena’.

É importante destacar das palavras de Rômulo a tensão existente entre a homossexualidade e a instituição familiar em seu modelo heteronormativo, notando inicialmente aqui que o componente étnico em si não fora enfatizado como um dado agravante sobre a situação vivida pelos homossexuais. Por outro lado, como diz Didier Eribon, ao fazer com que estabelecesse uma comparação entre homossexuais indígenas e não indígenas, ele representou os primeiros como indivíduos mais “sujeitados” que os outros, em virtude dos imperativos ‘comunitários’.

Em certa medida, depreendia-se a partir do discurso de meu interlocutor que os homossexuais indígenas, via de regra, ver- se-iam destituídos de suas vidas pessoais (ao menos de uma parte delas) em detrimento dos imperativos ‘sociais’, ‘culturais’ e ‘comunitários’. Aí residiria sua especificidade em relação a homossexuais inseridos em outros contextos: numa ‘preocupação’ engendrada sob a égide do étnico enquanto símbolo/instrumento político, mas envolto numa conjuntura moral de maior amplitude (ilustrada pelo valor conferido à ‘família’), cujos contornos intersociais, portanto, seriam difusos.

Sendo assim, ao retratar os homossexuais genericamente como pessoas mais ‘sensíveis em relação às coisas’, Rômulo essencializava suas identidades, acionando, como liame entre elas, uma suposta ‘sensibilidade’ em comum. Ao mesmo tempo, promovia uma desessencialização da “homossexualidade indígena”, enfatizando que o que importava de fato concernia a um aspecto de natureza eminentemente social.

Ainda sobre a comparação entre homossexuais indígenas e não indígenas, valeria a pena insistir em um aspecto, qual seja: a atribuição a estes últimos de um ‘projeto de vida diferente’. Nesse sentido, parecia-me que em certa medida Rômulo exemplificara o que Gilberto Velho escreveu a respeito da noção de “projeto”, a qual, conforme o autor, remete-se a “explorações, desempenho e opções ancoradas nas definições que os sujeitos fazem da realidade”. Nas grandes cidades, tais definições seriam extremamente controversas, pois aqui “encontramos não só um maior número e diversidade de papéis e domínios, como evidentes descontinuidades e contradições entre estes”.

No filme “Antes o Tempo Não Acabava”, um indígena questiona as tradições de seu povo e sua sexualidade

Nesse contexto, “família, trabalho, religião, lazer, opções políticas, bem como trajetória, origem, poder, prestígio” (associados à natureza da estrutura social), configurariam um campo de possibilidades em que os atores individuais se movem com uma gama de alternativas e opções (daí os projetos individuais). A viabilidade de tais projetos dependeria da interação com outros — individuais ou coletivos — da natureza e da dinâmica desse campo de possibilidades. Analisando as palavras de Rômulo, seguindo essa perspectiva, seria lícito dizer que ele apontava para os limites impostos aos homossexuais indígenas, pois estes, contrariamente aos “brancos”, teriam à sua disposição uma menor gama de “opções”/“alternativas” e, consequentemente, um empobrecimento de seu campo de possibilidades.

O status social e político que Rômulo atribuía a si (‘professor, liderança, militante’) parecia-me constituir outro detalhe de grande valor heurístico, tendo em vista que uma de minhas hipóteses estava em saber se, em virtude de suas práticas sexuais e/ou performances de gênero, sujeitos homossexuais sofreriam algum tipo de exclusão por parte de membros ou lideranças Potiguara. Aparentemente, no caso dele, tal hipótese não se mostrava pertinente, ainda que ele tenha dito ser visto por muitos como ‘um cara que tem uma falha de caráter’. No entanto, embora socialmente apontada e “diagnosticada” como um problema em seu ‘caráter’, a sexualidade de Rômulo não interferiu em sua trajetória social e política.

Confiando em suas palavras, algumas interpretações poderiam ser aventadas: teria sido a própria atuação de Rômulo, na condição de professor, ‘liderança’ e ‘militante’, responsável por fornecer certa blindagem contra a discriminação sexual, ou, pelo contrário, seu status o tornava um alvo mais visado e vulnerável aos comentários e achincalhes públicos? Dito de outra forma, sua condição de líder, longe de suavizar o estigma que sobre ele recaía, não acabaria realçando o aspecto considerado mais “negativo” de sua personalidade?

Esquivando-nos de leituras dualistas, porém, a trajetória de Rômulo ilustrava como o próprio discurso em torno da homossexualidade poderia ser acionado politicamente, tanto no sentido de conferir legitimidade a alguns sujeitos definidos sob essa alcunha quanto para respaldar o lugar de destaque e respeito almejado por aqueles que intentam ocupar um papel de liderança. Afinal, conforme Eribon, toda fala que consiste em dizer a homossexualidade só pode ser ouvida como uma vontade de afirmá-la, exibi- la, como um gesto de provocação ou um ato militante. […] Ninguém nunca pode dizer simplesmente que é homossexual: isso sempre é afirmado para e contra tudo, para e contra todos.

Desse modo, o discurso ‘militante’ proferido por Rômulo, não apenas diante do etnógrafo, mas também perante uma plateia composta por indivíduos de outras coletividades indígenas do Brasil — insistindo na necessidade de se discutir os problemas relacionados aos jovens indígenas homossexuais –, marcava, como afirma Eve Kosofsky Sedgwick, não apenas uma “saída do armário”, estritamente pessoal, sendo igualmente um indicativo de sua posição e aspirações políticas. Nas palavras de Erving Goffman: assim, por vias insuspeitas, um símbolo de estigma era estrategicamente transmutado em símbolo de prestígio– o mesmo valendo para o discurso étnico.

Indígena em encontro anual dos “Dois-espíritos” (Foto: Luke Gilford/OUT Magazine)

Entretanto, Rômulo, talvez ciente dos riscos de ter uma identidade reduzida à sua sexualidade, afirmou com perspicácia e veemência não “ser” apenas homossexual e almejar a ocupação de um espaço social independentemente de sua sexualidade. Desse modo, em poucas palavras, ele dava mostras de ter uma visão bastante sofisticada a respeito do que estava em jogo nos debates sobre as identidades pessoais e coletivas. Ao dessubstancializá-las, Rômulo corroborava com as considerações de autores como Martin Sökefeld, Stuart Hall, Rogers Brubaker e Frederick Cooper, e tantos outros, para quem os sujeitos — ou, como diria Anthony Giddens, os selves — constroem-se a partir de uma pluralidade de identidades, numa continuada e (in)constante formatação, o que requer deles um trabalho reflexivo diário envolvendo suas “condutas” diante dos “outros”.

Retornando à inserção social e política de meu interlocutor, suas palavras revelavam um Rômulo com um olhar bastante crítico e perspicaz, alguém preocupado com o seu ‘povo’. Na prática, porém, esse suposto status realmente se efetivaria ou a sexualidade dele interferia em sua posição dentro da organização política Potiguara? Cheguei a cogitar que Rômulo fosse parcialmente excluído do quadro de lideranças, mesmo porque ele havia comunicado a dificuldade que tinha no sentido de legitimar-se frente a outras personagens de destaque. Igualmente pensei que seu discurso político, dito quando o entrevistei pela primeira vez, consistisse numa mise-en-scène para impressionar o entrevistador.

Entretanto, observando sua performance verbal em outras situações interativas, sobretudo informais, percebi que na dramaturgia da vida social, mais do que um modelo esquemático do tipo “preto no branco”, há muito mais cores e matizes em jogo. Um dia, estávamos, ele e eu, na companhia de outros homens reunidos em torno de uma mesa de bar. Falando, entre outras coisas, da questão indígena, Rômulo comparou a dificuldade de “ser” índio à de “ser” homossexual. Para ele, índios e homossexuais teriam em comum o fato de historicamente haverem sido forçados a negar suas identidades, a viverem ‘escondidos’.

Além de estabelecer um vínculo entre uns e outros — um laço construído pelo compartilhamento de um processo de exclusão, que, embora vivido segundo modalidades variadas de acordo com os momentos históricos, os contextos sociais, os interesses políticos e/ou morais, a natureza da marca passível de discriminação, ainda assim, segundo o discurso de Rômulo, os unia –, o que me impressionou naquele momento fora o fato de este, na presença de outros homens (índios e não índios), arrolar, num mesmo texto, suas homossexualidade e indianidade: discurso híbrido, político e descontraído, em que evocava suas identidades étnica e sociossexual, demarcando posição com argúcia e seriedade, mas sem perder de vista a graça expressa no bom e velho humor camp.

Esse discurso híbrido, no qual humor e política se sobrepunham, viria à tona em outras situações de interação, borrando as fronteiras entre os papéis sociais desempenhados por Rômulo e levando-me ao encontro das palavras de Goffman, para quem, na vida real, o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes. […] quando um indivíduo chega diante de outros suas ações influenciarão a definição que se vai apresentar. Às vezes, agirá de maneira completamente calculada, expressando-se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de impressão que irá provavelmente levá-los a uma resposta específica que lhe interessa obter.

Cena do filme “Antes o Tempo Não Acabava”

Ou seja, como disse Howard Becker, ainda que em determinadas situações Rômulo fosse tido como um “outsider”, sua identidade não se restringia a isso, afinal, como ele mesmo fez questão de afirmar, ‘não vivia homossexual’, mas sim ‘Rômulo’, colocando em jogo o caráter situacional de sua (auto)imagem. Esses episódios, ao mesmo tempo que poderiam nos levar a inferir que Rômulo, apesar de reconhecidamente homossexual, não era alvo de preconceito aberto por parte de outros índios (ao menos não em um nível capaz de bloquear sua inserção política) — revelando desse modo uma situação de relativa tolerância para com sua sexualidade –, conduziam-nos numa outra direção, na qual essa aparente “condescendência” se daria em virtude de a sexualidade de Rômulo não ser tomada em quaisquer circunstâncias como a principal característica de sua personalidade. Em algumas situações, digamos que esta se limitaria à configuração de um status subordinado. Nesse caso, destacar-se-ia seu status principal, relativo à identidade étnica. Quiçá, se não fosse índio, Rômulo sofreria bem mais com a discriminação.

Isso nos dizia algo sobre a maneira como os “outros” lidavam com ele. Quanto à forma pela qual Rômulo elaborava suas identidades étnica e sociossexual, aparentemente as duas instâncias de seu Self não se entrechocavam. Em nenhum momento, ouvi ou observei da parte dele algo que insinuasse alguma espécie de conflito ou fratura tendo por origem a confluência de um marcador e outro. Mesmo afirmando que um homossexual não índio sofria menos coerções sociais do que um indígena, Rômulo não se considerava menos índio por “ser” homossexual, nem menos homossexual por “ser” índio.

O mesmo caso se estenderia, seguindo sua concepção, a outros atores indígenas e homossexuais, não havendo contradição entre a posição por eles ocupada enquanto membros de um grupo étnico e suas práticas e comportamentos sexuais. Rômulo, porém, fazia uma ressalva: estes deveriam saber ‘se colocar na sociedade’, de maneira a não reforçar o preconceito e a discriminação, uma vez que isso poderia comprometer a imagem do grupo como um todo e colocar em xeque suas reivindicações políticas e econômicas. Destarte, enquanto atribuía um valor positivo à homossexualidade (pela ‘sensibilidade’), Rômulo admitia, no plano social mais amplo, o “perigo” da homossexualidade para a reputação dos gays e demais membros de seu ‘povo’.

*Martinho Tota é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, tem Pós-Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, e o artigo acima foi escrito durante o Doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional — UFRJ.

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