O decoro de uma prostituta

Consequência do apetite burguês para o prazer, a figura da meretriz repercutiu na literatura brasileira e resistiu aos valores patriarcais, católicos e escravocratas

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15 min readSep 19, 2018

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“Madame Bovary”, baseado no romance homônimo de Flaubert, ganhou remake em 2015 dirigido por Sophie Barthes e protagonizado por Mia Wasikowska

Por Eliane Robert Moraes

A fabulação literária em torno da prostituta passou por significativas mudanças na Europa da segunda metade do século XIX. Talvez esse tenha sido um dos imaginários que mais se alterou no período, marcando o ocaso das cortesãs romanescas que, dotadas de uma nobreza de alma sem par, não mediam esforços para sacrificar as promissoras carreiras — e mesmo as vidas — em função de seus amados. Assim, se a gloriosa aparição de Marguerite Gautier na cena simbólica da metade do século representou o auge desse tipo de personagem, não menos digno de nota foi seu declínio nas décadas seguintes. A partir de meados dos oitocentos, o mito hegemônico da prostituta redimida pelo amor foi perdendo espaço para uma imaginação complexa e plural que impedia o confinamento dessa mulher numa só imagem.

Por certo, tal deslocamento seria improvável não fossem as expressivas alterações que se evidenciavam igualmente no gosto de um público cada vez menos identificado com as virtudes das heroínas românticas. Se a fabulação sobre o amor venal mudava nos livros era porque sua percepção nas ruas passava igualmente por significativas transformações. Lembra Alain Corbin, em seu clássico estudo histórico sobre o tema, que, a partir de 1870, a França viu aparecer “uma nova demanda em termos de prostituição; mudança mais qualitativa que quantitativa; demanda de outra natureza social e mental que suscitou condutas consumistas de maior visibilidade e mais apreciadas pelo olhar burguês”.

Afinal, a figura da cortesã de boa índole havia se tornado inverossímil quando confrontada com as protagonistas da cena histórica. Já no início do Segundo Império, a capital francesa viu nascer um novo tipo de oferta sexual, pactuada com o apetite burguês para o consumo e o prazer. Para atender a essa demanda, uma nova mulher surgia, circulando à vontade entre os redutos reservados e as ruas parisienses, onde ficava exposta às fantasias dos passantes. Ousada, a cortesã tornava-se então uma construção artificial, exibindo-se à vontade no espaço público e atraindo os olhares para sua figura excêntrica, cujos feitos escandalosos alimentavam as crônicas diárias da imprensa. Como conclui Charles Bernheimer, “cheia de disfarces, subterfúgios e falsificações”, o que nela mais atraia era “sua espetacular teatralidade”.

Não cabe aqui um exame aprofundado dessa tópica, mas convém ao menos citar o nome de Baudelaire que, já em meados do século XIX, foi o grande artífice literário dessa transição entre sensibilidades. Para definir a estética da modernidade, da qual ele foi efetivamente o precursor, sua obra evoca amiúde a meretriz que, em parceria com o flâneur, lhe serve como alegoria da cidade e da vida moderna. Com as Fleurs du mal, de 1856, o poeta supera o tom por vezes melodramático de Splendeurs et misères des courtisanes, publicado na década anterior por Balzac, para realçar a ambivalência trágica das mulheres “decaídas”, o que também sinaliza o nascimento do modernismo nas artes.

Ora, é justamente em Le peintre de la vie moderne que Baudelaire faz demorados comentários sobre a profusão de ornamentos femininos que caracteriza as cortesãs da época, sempre “muito enfeitadas e embelezadas por todas as pompas artificiais, seja qual for o meio a que pertençam”. Esses aparatos cênicos funcionavam como molduras da condição marginal dessas mulheres, chamando a atenção do poeta: “espécie de boemia errante nos confins de uma sociedade regular, a trivialidade de sua vida, que é uma vida de astúcia e de combate, vem à luz fatalmente através de seu invólucro majestoso”.

Portadora de muitas faces, a cortesã da segunda metade dos oitocentos tornou-se uma interrogação vertiginosa, excedendo as fronteiras da fabulação literária. Basta recordar o candente debate que se travou entre médicos, policiais e juízes no fim do Segundo Império, cujas classificações beiram o absurdo, acerca de qual mulher deveria ser considerada, ou não, nessa categoria. Basta lembrar, igualmente, a quantidade de termos com que a meretriz passou a ser designada a partir de então, que comportavam inúmeras variações de significado, das mais ínfimas às mais expressivas. A essas evidências poderiam ser acrescentadas muitas outras, todas elas convergindo para uma só conclusão: a prostituta termina o século ostentando, em definitivo, o estatuto de enigma. Enigma, vale repetir, que se exibia em toda sua pompa teatral.

No Brasil, essa mudança de perspectiva ocorreu um pouco mais tarde, coincidindo com a virada do século XIX ao XX, quando se ampliou sensivelmente o imaginário literário em torno do amor venal. A voga dos romances que seguiam o modelo romântico da prostituta redimida pelo amor — cujo melhor exemplo é Lucíola, publicado por José de Alencar em 1862 — também sofreu grande impacto. E ainda que não tenha sido de todo ultrapassado, esse modelo antes hegemônico com certeza se retraiu diante do aparecimento de novas formas narrativas que abordavam a personagem valendo-se de outras molduras.

Nunca é demais lembrar, contudo, que o país estava longe de partilhar a mesma sociabilidade que dava base a tais deslocamentos sensíveis na França. Afinal, na sociedade brasileira do fin-de-siècle, o novo apetite burguês se acomodava a antigos valores patriarcais, católicos e escravocratas, estabelecendo parâmetros bem diferentes dos europeus para as equações locais entre forma literária, erotismo e moralidade. Mesmo assim, em condições históricas distintas, os modos de fabular a prostituição também passaram por transformações significativas. Estas ocorreram em paralelo à passagem do Império para a República, quando a cultura nacional buscava vias de renovação e a leitura de autores franceses se tornava cada vez mais corrente entre o público letrado da nação, do qual faziam parte nossos melhores escritores.

Entre eles estava a figura ímpar de Machado, que pode ser considerado o primeiro autor do país a representar a prostituta fora dos padrões fixados ao longo do século XIX. Com efeito, ao criar a impenetrável protagonista de “Singular ocorrência”, de 1883, o escritor iria instaurar um marco na fabulação brasileira em torno dessa personagem, operando uma virada definitiva na sua imagem literária.

Robert Taylor e Greta Garbo na adaptação para o cinema de “A Dama das Camélias” (1936)

Não são poucos os intérpretes que consideram “Singular ocorrência” um dos contos mais enigmáticos de Machado. Não são poucos, igualmente, os que veem esse enigma formulado já no título, cuja estranheza parece acentuar-se quando cotejado com a trama. De fato, numa primeira leitura, nada parece realmente singular na história banal de uma aventura amorosa entre um respeitado pai de família e uma moça qualquer. Afinal, a “vida dupla” de homens poderosos, coronéis, políticos ou magistrados, era absolutamente comum na sociedade oitocentista do país, da mesma forma como o era a existência de Marias de tal, as chamadas “teúdas e manteúdas” que só conseguiam superar o desamparo familiar e social quando entravam na órbita desses homens em troca de seus “favores”. Daí que boa parte dos intérpretes associe a ocorrência referida no título à inesperada traição por parte de Marocas.

Luís Roncari chama atenção para o confronto entre um Andrade — personagem indicada pelo nome de família — e uma Maria qualquer, que nem nome tem: como, então, uma mulher de seu extrato colocaria a perder o relacionamento com um sujeito bem colocado na sociedade por uma noitada com um pobre-diabo? Segundo o crítico, a notável ironia do título dá a chave do texto ao apontar a ousadia da personagem feminina, que não só inverte o código social ao trair um bacharel com um sujeitinho qualquer, como termina por triunfar diante dos dois “andros”, Andrade e Leandro.

Assim, também, John Gledson aposta na singularidade dessa mulher, observando que ela se destaca dos perfis literários estereotipados da prostituta oitocentista, a exemplo inclusive de Marcela, a cortesã espanhola das Memórias póstumas de Brás Cubas. Gledson chega a sugerir que o conto de Machado, numa espécie de profissão de fé feminista, defende “uma visão das necessidades (e direitos) emocionais e sexuais da mulher que teria chocado a maioria de seus leitores masculinos (e femininos) até o fundo da alma”.

Para além mesmo das razões elencadas por Roncari e por Gledson, os intérpretes são unânimes quanto à particularidade da protagonista do conto, a quem sempre cabe o epíteto de singular e uma infinidade de outros termos que o reiteram. É o que propõe Ivo Barbieri ao dizer que Marocas aparenta “uma face distinta a cada momento”, por ser “surpreendente, imprevisível, inverossímil”.

Os exemplos se multiplicam e não deixam de sugerir que os repetidos adjetivos evocados pelos críticos, no afã de descrever a singularidade da moça, cabem para qualificar o próprio conto, que também provoca certa estranheza, como se envolvido por uma aura de irrealidade. Como bem sintetizou Antonio Candido, a exemplo do que acontece com a figura de Marocas, em “Singular ocorrência”, “os atos e os sentimentos estão cercados por um halo de absurdo, de gratuidade, que torna difíceis não apenas as avaliações morais, mas as interpretações psicológicas”.

Uma aura de irrealidade, um halo absurdo, uma gratuidade estranha — talvez esteja precisamente aí, nesses atributos vagos e equívocos, o segredo desse texto tão enigmático quanto sua protagonista. Por isso, uma possível chave para se abordar essa dimensão que foge à realidade e escapa às marcas do possível é dada pela incontornável presença do teatro no interior do conto.

João Roberto Faria dedicou um esclarecedor artigo ao tema, observando que “Singular ocorrência” é “escrito na forma de um diálogo entre um narrador e um interlocutor e estruturado com base num outro diálogo, menos evidente, travado com três peças teatrais: A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, O casamento de Olympia, de Émile Augier, e Eu janto com mamãe, de Lambert Thiboust”.

Para o crítico, apesar das diferenças entre Marocas, meretriz pobre e analfabeta, e as cortesãs de luxo que protagonizam as peças francesas — Marguerite Gautier, Olympe Taverny e Sophie Arnould — a intertextualidade com o teatro se impõe “como princípio estruturador do enredo e das características da personagem central”. Importa, aqui, atentar para a analogia entre a trama e sua protagonista, ambas compostas segundo a lógica teatral.

Com efeito, o conto se organiza em torno de uma rigorosa dinâmica do olhar que, não raro, se superpõe às falas para indicar uma marcação fixa entre aqueles que olham e aquela que é olhada. Isso se evidencia já no primeiro parágrafo quando Marocas, sendo observada na entrada da igreja, se detém no adro para dar uma esmola. Cena ambígua, que pode supor tanto uma simples descrição do narrador que a vê à distância quanto uma encenação da personagem que se sabe olhada.

Ambiguidade que se repõe em diversas passagens, como na ocasião em que a moça aborda Andrade na rua, pedindo ajuda para encontrar um endereço: isso feito, ele a segue com o olhar e a surpreende diante da “casa que buscava, ainda assim perguntando em outras”. Também digna de nota é a cena do teatro, onde ela parece disputar com Marguerite Gautier a atenção de seu observador, ao ser flagrada na plateia em copiosas lágrimas. Aliás, mais tarde ela será vista exatamente “como a Dama das Camélias”, papel de que só abre mão para “fazer como a Sofia Arnoult da comédia”, no dia em que Andrade vai jantar com a família.

Há uma expressiva troca de sinais nessa dinâmica, uma vez que “ser vista” parece implicar menos a posição passiva dada pelo tempo verbal do que a posição ativa de uma atriz no palco. Aqui o espaço cenográfico se torna mais importante que o tempo, e o gesto fala mais alto do que o verbo.

Em “Le peintre de la vie moderne” (1863) Baudelaire tece comentários sobre as cortesãs da época

A chave permite interpretar inúmeras passagens do conto, em especial aquelas em torno da suposta traição de Marocas. Como se sabe, ao confronto entre a moça e Leandro sucedeu-se uma cena “breve, mas dramática”, como que anunciando a dramaticidade ainda mais intensa do reencontro dos amantes no dia seguinte, quando “Marocas chorou muito e perdeu os sentidos” diante dos olhares masculinos que a cercavam. Transcorridas as peripécias de praxe, entre lágrimas, desmaios e toda sorte de comoções que, descritas em detalhe, levaram à reconciliação, a derradeira cena que merece menção coincide com a morte do Andrade. Mesmo não sendo sua esposa, ela “considerou-se viúva” e, enlutada, representou o papel com tal propriedade que “nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia do aniversário”.

Findo o relato do narrador, seu discreto interlocutor, abismado com o que ouvira, pergunta se o amigo não teria abusado de sua “ingenuidade de rapaz para imaginar um romance…”. Escusado dizer que tal desfecho, ao acrescentar a hipótese de que a história em questão poderia ser mera invenção, repõe o enigma em torno do conto e de sua protagonista, incluindo nele a figura do narrador. Afinal, essa suposição abre a possibilidade de que tudo, ou boa parte daquilo que foi contado, possa ser interpretado como um “faz de conta”. Ou, se preferirmos, como um “teatro”.

Reforça-se aí a lógica teatral do texto e, com ela, a hipótese de que Marocas age como uma atriz, o que se confirma ainda mais na adjetivação que os críticos lhe atribuem. De fato, é curioso verificar que, mesmo sem formularem tal hipótese, vários intérpretes do conto abordem sua protagonista por meio de um léxico totalmente adequado ao métier teatral, valendo-se de expressões que poderiam perfeitamente designar os atores. Tomem-se, por exemplo, as palavras com que Barbieri, para ficar num só nome, descreve Marocas: ao sustentar que ela aparenta “uma face distinta a cada momento”, ele acentua a capacidade camaleônica — “múltipla e singular, esquiva e exposta” — que faz dela “a ocorrência que se dá uma única vez e nunca mais se repete”.

Daí ele afirmar, numa observação que caberia sem reservas ao contexto teatral, que “projetando o seu perfil, cambiante a cada momento do evento, Marocas é a donna mobile, não no sentido operístico de volúvel, mas no da mutabilidade em contínuo devir”. Barbieri insiste nessas diversas e contraditórias faces da heroína, que vão da moça disponível na rua à amante apaixonada, da mulher desesperada à senhora piedosa e daí por diante, para concluir que “a multiplicidade dos papéis representados confunde os intérpretes”.

De fato, o crítico está coberto de razão quando diz que a protagonista do conto “confunde os intérpretes”. E será que isso não acontece justamente porque, antes de tudo, ela confunde os personagens com quem contracena? É o que ocorre com Andrade, com Leandro e, sobretudo, com o narrador, todos eles implicados na sua história. Seria o caso, pois, de incluir Marocas no complexo de ambiguidades que envolve as mulheres machadianas, habituadas aos mais sutis estratagemas do disfarce, como argutamente demonstra José Luiz Passos. Mas, além disso, seria o caso também de reconhecer que ela desempenha sua profissão como uma atriz. Ou seja, se age “como a Dama das Camélias” é porque atua como aquela que faz o papel da “Dama das Camélias”. Daí a notável economia do olhar que permeia todo o conto, a confirmar que os homens com quem Marocas contracena são, mais que tudo, seus espectadores.

Isso nos permite retornar às palavras de João Roberto Faria, encampadas também por Barbieri, ao concluir que, no conto, “o intertexto teatral é introduzido para ser negado”, uma vez que Marocas difere em essência das pomposas cortesãs que protagonizam as peças francesas citadas por Machado. Contudo, se a hipótese aqui esboçada for pertinente, deve-se acrescentar à conclusão dos dois críticos que o intertexto só é efetivamente negado enquanto enredo, uma vez que sua função no conto, fundamental e estruturante, é a de chamar a atenção para a performance da personagem. Isso nos faz retornar à afinidade de base entre o teatro e o amor venal, ou melhor, entre a atriz e a prostituta, ambas tão afeitas às artimanhas da dissimulação.

Sobre tal afinidade há ampla bibliografia e não cabe explorá-la aqui. Todavia, convém ao menos lembrar que, embora a aproximação entre o universo da prostituição e o mundo do teatro venha de longe, ela ganha contornos particulares conforme se consolida a modernidade na Europa, reaparecendo sob novas máscaras no tecido social e no imaginário coletivo.

Os paralelos entre prostitutas e atrizes tornam-se cada vez mais frequentes no decorrer do século XIX, não raro obscurecendo as distinções entre umas e outras, como indicam os já citados Alain Corbin, Amanda Anderson e Charles Bernheimer e muitos historiadores do amor venal. T. J. Clark vem se juntar a eles para lembrar que em meados de Oitocentos a cortesã era deveras “considerada uma representante essencial da sociedade moderna”, o que resultava, antes de tudo, do fato de que “a prática social estava toda impregnada de duplicidade” e nada, decididamente nada, “escapava da regra da ilusão”. A rigor, completa o crítico, era sua “falsidade que a tornava moderna”.

Entende-se por que, em particular na França, será a dramaturgia a primeira arte a fazer da cortesã uma de suas principais personagens, logo seguida pela pintura e pela literatura, que não se cansam de admirar a ofuscante teatralidade de sua figura. Entende-se igualmente por que o autor de O pintor da vida moderna, depois de mencionar a “grandeza artificial” dessas mulheres, venha a concluir categórico: “As observações relativas à cortesã podem, até certo ponto, aplicar-se à atriz, pois ela também é uma criatura de aparato, um objeto de prazer público”.

Ora, seria tentador estender tal conclusão à prostituta criada por Machado de Assis, não fosse o fato de que sua performance prescinde por completo das “pompas artificiais” e dos “invólucros majestosos” referidos por Baudelaire. Ao teatro ostensivo das cortesãs que fascinam os contemporâneos do poeta francês, Machado responde com sua habitual aposta no recato. Nunca é demais lembrar que o autor de Dom Casmurro sempre preferia a discrição à ostentação.

Já numa crônica de 1863, ele fazia reiteradas críticas ao sucesso do amor como “glorificação dos instintos”, o qual, “a despeito da vitória que lhe dê o favor público, nada tem com a arte elevada e delicada. É inteiramente uma aberração, que, como tal, não merece os cuidados do poeta e as tintas da poesia”. Palavras possivelmente escritas em reação ao sucesso de Madame Bovary e do romance realista, que ele por vezes chamava de “literatura de escândalo”, como iria repetir dez anos depois em importantes passagens de “Instinto de nacionalidade”.

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Foram esses julgamentos amadurecidos, pois, que na década seguinte parecem ter orientado o escritor na criação desse conto singular, recorrendo a um engenhoso jogo de papéis entre a protagonista e o narrador. Como vimos, o estatuto da fala deste é muitas vezes desqualificado pelas enfáticas encenações daquela, encenações estas que, não raro, prescindem de palavras. Não seria descabido dizer que há, entre ambos, um efetivo conflito de interesses, o que pode ser verificado tanto pelas distintas posições que cada qual ocupa na economia da trama, como também — e talvez principalmente — pelas diferentes linguagens de que se valem. Trata-se, portanto, de uma questão em que fundo e forma são indissociáveis.

Há duas histórias em “Singular ocorrência”: uma narrada e outra encenada. A primeira está a cargo do narrador e é contada para um amigo que, a princípio, poderia muito bem fazer parte do círculo de amizades de um Andrade ou de qualquer outro indivíduo bem posicionado naquela sociedade. Em suma, é uma história feita sob medida para aqueles homens, cujo lugar social jamais poderia se confundir com a “lama” onde chafurdavam pobres-diabos como o “tal Leandro” e mulheres ordinárias como a “Dona Maria de tal”.

Já na história encenada, não só as posições são outras como o são igualmente os seus artífices, o que estabelece um jogo mais complexo entre eles. Como foi aqui sugerido, a encenação fica a cargo da protagonista que, no mais das vezes, tem como espectadores eletivos o amante e o narrador. Percebe-se aí a mão do autor que, tal qual um diretor, se mantém oculto e onipresente ao longo do espetáculo. Num lance de mestre, Machado joga o tempo todo contra o narrador, e por certo desestabiliza a sua arrogância patriarcal ao dotar Marocas de um extraordinário talento como atriz.

Talento que, para ser eficaz, ela é obrigada a ocultar quase que por completo, confundindo seus parceiros de cena e de leitura. Escusado dizer que os empréstimos intencionais aos melodramas só corroboram para disfarçar sua verdadeira aptidão teatral, que não se rende aos caricatos turbilhões de lágrimas das heroínas românticas. Tal é o paradoxo no qual se equilibra a personagem, já que sua performance não comporta ostentações, acomodando-se antes à ideia de uma “discreta teatralidade”.

Não se engane, porém, o leitor: discreta, mas dona da cena, a simplória meretriz brasileira nada deixa a dever às deslumbrantes cortesãs europeias em termos de eficácia. A exemplo do que ocorre com seu criador, aquela moça vulgar que, pelos idos de 1860, atendia pelo “nome familiar de Marocas” dá inesperado testemunho da notável produtividade da discrição. Afinal, o decoro da representação sempre pode se tornar um expediente eficaz nas profissões que trabalham com a fantasia — como a do escritor, a do ator e, obviamente, a da prostituta.

*Eliane Robert Moraes é professora do Departamento de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e organizadora da antologia “O corpo descoberto — contos eróticos brasileiros (1852–1922)”, lançada este ano pela Cepe Editora. O texto acima foi publicado originalmente na Revista de Estudos Literários.

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