O entre-lugar das trans nas escolas

LGBT+ Agreste
Fundação LGBT+ Agreste
12 min readSep 4, 2018

Quando a transgressão nas normas de gênero se torna um ato político que expressa subjetividades produzidas em diferentes espaços culturais

O filme “Tomboy” fala sobre a transgeneridade na escola e juventude

Por Fernando Guimarães Oliveira da Silva

Em 1998, na obra O local da cultura, o professor indiano Homi Bhabha demonstrou preocupação sobre os efeitos do colonialismo na leitura do presente e para as novas formas de expressão do multiculturalismo. Indagava-se como uma ou mais pessoas interagiam culturalmente e construíam a ambivalência. Constatou que a ambivalência permitia uma divisão na identidade do colonizado, o que nos permite vê-lo como híbrido entre sua identidade cultural e a identidade cultural do colonizador. Valorizando a enunciação, por exemplo, o autor reconheceu que a cultura é um elemento em que a diferença ganha terreno, uma vez que ocorre a articulação entre um sistema tradicional de referência, que se acredita estável, com outro que se permite corroer por incertezas e que “há um retorno à encenação da identidade como iteração, a recriação do eu no mundo da viagem, o restabelecimento da comunidade fronteiriça da migração”.

Bhabha apresenta que o discurso colonial era ambíguo e maltratava tanto colonizadores como colonizados: por um lado, ele considerava a realidade do colonizado e do colonizador. Com fundamento nisso, entendemos a tradição heterossexual como marca-fim da sexualidade ocupando o lugar de colonizadora dos corpos e, por outro lado, outras formas de expressão da sexualidade como colonizadas. A articulação entre eles trazia ideias contraditórias, mantinham-se em uma relação que se via o consumo de artefatos culturais entre eles, mas conservavam as posições de colonizador e colonizado, garantindo as vias de controle. Não podemos falar num possível processo de descolonização apenas pelo fato da existência das estudantes transgêneros. Isso não promoveu desequilíbrios significativos que tenham tamanha amplitude para direitos e reconhecimento delas, porque, como o próprio Bhabha enfatiza, não se vive a plenitude da liberdade. Traduzindo para este estudo, o processo de transgeneridade não é aceito socialmente. Por outro lado, acreditava-se que o consumo poderia representar algo significativo para as travessias feitas. “O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria a ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural”.

No que se referem às travessias entre identidades heteronormativas e transgêneras, acredita-se que a interação cultural entre elas têm produzido diferentes possibilidades, enquanto categoria transformativa de pessoas. Bhabha compreende que a cultura representa tudo aquilo que está em nós, o que nos leva a crer que não podemos ser pensados fora dela. Ele utiliza do exemplo do migrante para analisar que sua cultura pura choca-se com a cultura do país que o recebeu e, ao situar-se nessa diversidade, o conceito de “entre-lugar” ganha vida. Ele crê que a cultura é um terreno que produz novas existências por ser um lugar de instabilidades, de movimentos, de processos e, por assim dizer, de hibridismos.

Em suas palavras, essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.

Nas escolas, a presença de adolescentes expressando diferentes modos de ser e estar das identidades de gênero consolida a direção do que Bhabha previa e vislumbrava. Ainda que o nosso país seja responsável pelos maiores índices de transfobia, a questão da diversidade de gênero sempre se pautou, ao longo das décadas, em diferentes bandeiras que lutam contra o tratamento degradante e violento a que estão submetidas mulheres cis e mulheres transgêneros. Muitas delas avançaram e criaram novos modos de se relacionar com o mundo e com as pessoas, reivindicaram um universo de possibilidades e transformaram a vida social. É possível perceber que a transgressão que as trans fazem nas normas de gênero podem ser consideradas como um ato político que expressa diferentes subjetividades produzidas em diferentes espaços culturais.

As trans estão ocupando espaços, contestando, produzindo e interagindo com outras pessoas, e já não é mais possível eliminá-las dos diferentes espaços, em especial das escolas. Problematizando este último espaço, lá se produzem diferentes expressões de negociação entre os sujeitos: “uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História teleológica ou transcendente”. As identidades de gênero também compõem esse processo. O masculino e o feminino estão reféns dos modos como a cultura “[…] constrói e distingue corpos e sujeitos […]”, como diz Dagmar Meyer, no pensar e no agir cotidiano por meio de um conjunto de condições científicas, políticas e de sociabilidades.

Novos sentidos são conferidos às relações entre identidades heteronormatizadas e transgêneras, uma contínua relação de disputa em que o primeiro, como dominante, adquire forças sobre o conjunto das explicações e das verdades sobre o segundo. Esse ponto de entrecruzamento em que dois ou mais modos culturais se relacionam é definido por Bhabha como o “entre-lugar” da cultura, que “[…] é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”.

Nossa incursão envolve as relações de negociação ocorridas entre a cultura heteronormativa e a transgeneridade, encontrando o “entre-lugar” deste entrecruzamento. Desse modo, a entrada das trans nas escolas pode não representar uma aceitação política ou social, mas atende aos ditames legais de uma sociedade que presa pelo atendimento educacional independente das condições de manifestações particulares das expressões das crianças e adolescentes. Digamos, assim, que o atendimento educacional à diversidade sexual e de gênero pode estar silenciado nos discursos de professores, gestores e profissionais da educação, mas, pela via do direito público, as estudantes trans podem (e devem) estar na escola.

A entrada delas nas atividades da escola produz transformações em práticas docentes e escolares rotineiras. Vemos, assim, que a escola se choca com a sua proposta de práticas inovadoras, e que, sobretudo, as acolhe com o objetivo de assegurar percursos formativos mais consistentes e menos agenciados de transfobias. A crítica ao modo como a escola tem acolhido estudantes transgêneros representa um desafio na busca por protagonismos destituídos de sujeição, classificação e hierarquização, que tanto contribuem para negligenciar suas existências.

No filme “Meu Nome é Ray”, Elle Fanning interpreta garoto transgênero em transição

A escola ainda é um ambiente disciplinar e o gênero se apresenta como fator de reprodução das desigualdades culturalmente impostas, contidas em brincadeiras, corporalidades, sociabilidades que são cobradas diretamente das crianças e adolescentes. Efetivamente, observa-se uma plena aceitação, segundo Rogério Diniz Junqueira, da “pedagogia do insulto” no cotidiano de estudantes transgêneros, por meio de “piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes etc. se constituem poderosos mecanismos de objetivação, silenciamento, dominação simbólica, normalização, marginalização e exclusão”.

Mesmo que as fixações culturais dos/para/pelos gêneros represente um embate histórico das vias que intensificam o controle, não queremos nos ater apenas a essas condições e limitar um conjunto de (im)possibilidades de esgotar o tema. Concordamos com Bhabha: “A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é um negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica”. É nessa articulação que o autor nos convida a pensar sobre a não fixação de aspectos culturais. Aliado a isso, as transgeneridades situam-se no que o autor denomina de “a periferia do poder”. Nesse processo de negociação, a heteronormatividade pode se desvencilhar de seu estatuto de norma e garantir a reinvenção da história através de um reconhecimento parcial da transgeneridade com o viés da diferença para a produção da articulação entre norma e diferença.

Com essa incursão articuladora entre cultura norma e cultura diferente, Bhabha afirma que as identidades não se constroem mais em referência aos demarcadores tradicionalmente incutidos em sociedade, mas emergem de fronteiras que já não podem mais ser contidas ou ignoradas pelas frentes de poder. A fronteira em que as pessoas se encontram é compreendida pelo autor como “[…] o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente […]”. Ele reconhece esse lugar como o “além”, o caracteriza como um espaço intermediário e revisionário, que possibilita reescrever nossa contemporaneidade cultual e histórica. Adere ao além da fronteira a previsão de um futuro, mesmo vivendo no presente, o que nos leva a compreender as transgeneridades incluídas num processo de sociedade em que se ampliam condições de atendimento e direitos sociais.

A presença de pessoas trans, por exemplo, contesta diferentes formas de se promover um atendimento mais qualificado às diversas demandas que elas apresentam: educação, esporte e lazer, poder judiciário e etc. Nessas condições que colocamos o conceito de “entre-lugar” na articulação com os diversos modos com os quais as pessoas trans se posicionam no encontro com formas normativas que redimensionam as relações de poder em nossa sociedade.

O modo como elas produzem seus corpos e suas atitudes as torna producentes de uma feminilidade peculiar. Elas ultrapassam padrões de referência do expressar-se como uma feminina cisgênera para demonstrar subjetividades produzidas num contexto de conflitos e contestações frente às normas sociais. As dificuldades que elas apresentam para permanecer nas escolas representam sua resistência às fronteiras do poder que tenta colocá-las às margens. O poder, nesse contexto, pode se tornar repressivo se visto apenas em si e desconsiderar as diferentes corporalidades que as transgeneridades produzem e que são valoradas no universo de sexualidades e gêneros dissidentes. Na contramão disso, observa-se que, no interior de diferentes produções culturais acerca das sexualidades e dos gêneros, as transgeneridades causam uma multiplicidade de formas de ser e estar que não conseguem encontrar demarcadores sociais comuns. Elas tornam esses marcadores incomuns, na medida em que (des)colonizam o universo de explicações sobre marcadores de gênero. Ocorre, assim, o que o autor caracteriza como a emergência de novas subjetividades que produzem estratégias de resistências: “Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistência”.

O essencialismo tradicionalmente instituído para explicar a encenação única do corpo é substituído pelo local da cultura, ou poderíamos considerar os “locais de culturas”, cujos processos em andamento indicam uma ruptura em processos performativos de identidades culturais. Ao designar os “locais de culturas” no plural, entendemos os vários “entre-lugares” em que a heterossexualidade como princípio de norma produz cisão com as transgeneridades.

(Des)colonizando uma conclusão

Ao articular os contextos das identidades culturais, um mais marcado por privilégios e o outro por fortes encadeamentos de desproteção e tratamento assimétrico, nos aproximamos dos “entre-lugares” das culturas existentes sobre gêneros e sexualidades. Parte significativa disso toma forma quando oportuniza problematizar a reinscrição do imaginário social que tanto colonializa uma em detrimento da outra.

Berenice Bento

Atrás de explicações sobre o “entre-lugar”, buscamos, nas construções teóricas de Berenice Bento, o ponto de encontro de transexuais com as escolas ou poderíamos dizer, o ponto de encontro com as normas. A autora apresentou um conjunto de reflexões que garantiram problematizar como as instituições sociais, no caso a escola, lidam com as demandas de estudantes transgêneros. Afirma que os corpos vivem trânsitos por aquilo que eles consideram como parte de seus sistemas de auto identificação e que nem sempre estão alinhados a padrões culturais sobre os corpos sexuados e generificados. Confere ao que denomina “fuga do cárcere” uma série de conflitos que demarcam que “as experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas. O sistema não consegue a unidade desejada”.

Vale considerar, nesse sentido, que as pessoas transgêneros oferecem um fértil terreno para produção de práticas sociais diversas. Elas não se restringem ao conjunto de sentidos construídos dentro do grupo de trans, mas se dispersam em práticas sociais, políticas, culturais, linguísticas e outras, porque não aceitam de modo intermitente as condições precárias que lhes são dirigidas. Não há uma submissão aos aspectos que norteiam a cultura heteronormativa, por sua vez sexista e misógina. Elas contestam um lugar deslocado das margens para o centro de um conjunto de possibilidades.

Tomando por referência o que analisam estudiosos da identidade, a exemplo Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Tomaz da Silva, não é possível tornar os modos de se identificar completos em si mesmos. As identidades se constroem a partir de um processo ininterrupto e contínuo, principalmente porque ele é permeado de imprecisões e incertezas sociais atravessadas por outros demarcadores. Esses autores apontam, com recursos analíticos de Michel Foucault e de outros conceituados estudiosos, inúmeras (im)possibilidades do contínuo processo de tornar-se uma identidade nômade dotada de leveza que impede identificar-se plenamente dentro de uma única forma de ser e estar.

Para tanto, estratégias de contenção da vazão dos corpos trans das escolas representam o tratamento dado aos “entre-lugares” que as trans ocupam na sociedade e que refletem neste espaço. Não acreditamos que na passagem que elas fazem pela escola não ocorra qualquer marca que permaneça nos profissionais que lá atuam. Mais do que sentimento de pena pelas constantes cenas de transfobias, é preciso compreendê-las como parte de uma sociedade em que os direitos humanos, dentre eles o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero, fazem parte do atendimento humanizado pertinente às políticas sociais. Como observa Bhabha, os espaços do indizível transitam entre o público e o privado e nos oferecem o deslocamento de uma visão homogeneizadora para uma dividida e desnorteada: “Embora o ‘estranho’ seja uma condição colonial e pós-colonial paradigmática, tem uma ressonância que pode ser ouvida distintamente — ainda que de forma errática — em ficções que negociam os poderes da diferença cultural em uma gama de lugares trans-históricos”.

Com os recursos de que nos dispusemos acerca de Bhabha, podemos afirmar que os estudantes transgêneros passam pela escola em busca, também, de reconhecimento. Reconhecimento de uma cultura identitária que produz e expressa características particulares forjadas em meio a fugas constantes das identidades mais normatizadas. A experiência trans na escola perde espaço para a heteronorma das práticas escolares. Essa perda se apresenta como estar na fronteira dos “entre-lugares” que dissipam suas existências. Para Bento, por exemplo, na família e na escola se convive com práticas cotidianas de reiteração das normas de gênero e sexualidade. A mesma autora considera tais práticas como pertencentes ao que denominou de ‘heteroterrorismo’, uma prática em que cada enunciado “incentiva ou inibe comportamentos, a cada insulto ou piada homofóbica”.

Ao que tudo indica, quando um adulto enuncia uma piada como: “isso é coisa de bicha!”, ele mobiliza uma série de efeitos práticos de invisibilização cuja tendência imediata é a de eliminar, matar ou rejeitar uma possibilidade de ressurgir uma identidade renovada. Por meio dessa prática veicula-se uma cultura heterossexista e heteronormativa, o que leva a transgeneridade ser “entendida, portanto, como a materialização do impossível, o inominável, aquilo que transcende a capacidade de compreensão”.

Assim sendo, a articulação entre cultura heteronormativa e transgênera convive com processos de negociação. A primeira perfaz trânsitos em que as tradições persistem com seus conteúdos culturais que explicam sexo, gênero e sexualidade como produtos de uma determinação social de corpos sexuados. A escola, enquanto uma instituição do social, pressupõe que a transgeneridade passa “a interiorizar essas verdades como se fossem uma pele, algo que está conosco desde sempre, o que nos faz esquecer os inúmeros, cotidianos, reiterados “ensinamentos”: a sexualidade normal e natural é a heterossexualidade”.

O estudioso indiano Homi K. Bhabha

Berenice Bento também nos possibilita transitar pelo território do “entre-lugar” quando enuncia que a escola é um espaço extremamente aversivo para estudantes transgêneros. Para ela, a natureza da violência que leva uma criança a deixar de frequentar a escola porque tem que trabalhar para ajudar a família não é da mesma ordem daquela que não consegue se concentrar nos conteúdos transmitidos porque é “diferente”. Daí a importância de pesquisas (com recortes de gênero e sexualidade) que demonstrem os encaixes dos indicadores de “sucesso” e “fracasso”, deslocando o olhar dos conteúdos visíveis para os invisíveis.

Na busca do “entre-lugar”, enfatizamos, a partir de Berenice Bento, que o atendimento educacional brasileiro à diversidade sexual e de gênero aponta a desarmonia entre direitos sociais e uma sociedade conservadora. A reflexão sobre o lugar atual das trans nas escolas brasileiras nos leva a buscar outro lugar que redefina o formato do atendimento educacional, pensando no desmantelamento de discursos e atitudes desqualificadas em relação a elas. Colocamo-nos frente à necessidade de revisão do espaço das trans nas escolas brasileiras com o objetivo de produzir outro lugar. Pensamos em reverberar outro lugar para que a escola acolha com mais atenção diferentes modos de ser e estar na sociedade, no caso em que as trans se reapresentam para a sociedade.

Ao problematizarmos a necessidade de repensar a educação das trans a partir da produção de outro lugar, não queremos trazer o que já foi pensado sobre assunto nem tampouco dizer sobre crenças antigas. Nosso objetivo é dar condições para pensar numa proposta de acolhimento para pessoas como nunca foi pensado antes, entendendo-as como parte de um construto cultural que depende também da heterossexualidade para existir e faz parte dela. Precisamos ter o passado — experiências de transfobia escolar — como referência para mudarmos a rota do que pretendemos produzir de novidade na vida de estudantes trans nas escolas.

*Fernando Guimarães Oliveira da Silva é Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e o texto acima faz parte do material bibliográfico da tese “Vulnerabilidades de estudantes transfemininas da Alta Noroeste Paulista e do Leste de Mato Grosso do Sul”.

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