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Conectada à Igreja Adventista do Sétimo dia, a SDA KINSHIP se mobiliza para acolher e apoiar membros LGBTI dentro e fora da comunidade espiritual

LGBT+ Agreste
Fundação LGBT+ Agreste
9 min readSep 26, 2018

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Por Josué de Castro Filho

Fora do ambiente religioso, o diálogo sobre novos modos de vida tem sido fomentado muito mais enfaticamente. A partir dos movimentos sociais feministas e LGBT, surge o questionamento deste tipo de arranjo familiar centrado no homem como líder e provedor da casa e na mulher como liderada e cuidadora da casa. A luta pela autonomia da mulher é intensificada. A validação de outros tipos de gênero, além do que se postulava binariamente como masculino e feminino, se torna evidente. E, por conseguinte, surge a pergunta: por que haveria uma performatividade ideal para cada pessoa?

É nesta ambiguidade situacional (entre a Igreja Adventista do Sétimo Dia — IASD e os movimentos progressistas) que em meados dos anos 70, dois grupos independentes (um na Califórnia e outro Nova York) de membros da igreja que não se encaixavam nos padrões incitados por ela se reuniram para falar de suas similaridades, discutir seus sentimentos e encontrar apoio entre si frente a uma igreja que os excluía e pregava a condenação eterna de deus por conta de seus comportamentos inadequados. Esses encontros eram viabilizados por anúncios, postados em revistas americanas nacionais para o público gay, que procuravam por adventistas de mesma sexualidade. A partir de então, leitores dos Estados Unidos e do Canadá começaram a se comunicar e se encontrar.

Por conta desses encontros, em 1981 foi fundada uma organização não governamental sem fins lucrativos chamada Seventh Day Adventist Kinship (SDA KINSHIP), significando irmandade ou parentesco Adventista do Sétimo Dia, que pudesse acolher pessoas que se sentiam socialmente excluídas por esta comunidade religiosa porque se consideram lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, acolhendo também seus amigos, suas famílias e seus associados.

Com a chegada da internet, ficou mais fácil que pessoas com os mesmos dilemas conseguissem se conectar. A tecnologia ajudou a organização a crescer e a melhorar o diálogo entre pessoas de diferentes continentes. Por conta disso, atualmente a SDA KINSHIP é uma organização mundial que atende e conecta pessoas de todo o mundo que têm um vínculo com esta igreja e que se sentem sensibilizadas com as questões LGBT, ou que foram marginalizadas por sua diversidade de gênero ou de sexualidade.

Para a divulgação da organização e a conexão dos seus membros, SDA KINSHIP possui um site internacional que oferece informações sobre seu histórico, sobre sua proposta, como também realiza fóruns de discussão, promove reuniões sociais e encontros periódicos. Uma reunião anual, que geralmente acontece nos Estados Unidos, chamada “Kampmeeting”, é promovida e serve como um congresso para o diálogo entre os membros e outros convidados sobre as pautas mais atuais.

SDA KINSHIP também lança mensalmente um jornal chamado “The Connection” com artigos sobre espiritualidade, sobre o cristianismo Adventista e as diversas sexualidades e gêneros. Um blog de notícias da organização é alimentado e postado mensalmente, contendo informativos e mensagens dos líderes da organização. O blog e a revista podem ser acessados livremente através do site da organização.

Além destes recursos, o site oferece uma lista de outros sites virtuais e outras organizações de outras religiões ou não religiosas que lidam com o tema da religiosidade e diversidade sexual. Ele também apresenta várias cartas, artigos e notas sobre a possibilidade de diferentes interpretações bíblicas sobre as sexualidades alternativas e diversidade de gêneros, como também vários estudos científicos sobre estes temas. Dois livros que falam sobre uma perspectiva adventista mais inclusiva sobre a homossexualidade também são apresentados e dá-se a possibilidade de que eles sejam comprados.

Além de acolher membros oprimidos, a organização tenta informar leigos da igreja sobre este tema através de um espaço educacional em seu site virtual. O apoio para as famílias, educadores e outros membros da igreja sobre diversidade sexual e de gênero com relação a ambientes mais acolhedores e que combatam a violência sexual e o bullying é encontrado em uma sessão específica.

Associados ao site da SDA KINSHIP, outros sites independentes da instituição, mas que vêm da comunidade adventista e que lidam com o tema são promovidos, especialmente aqueles que falam sobre as histórias de vida de membros e ex-membros da igreja, suas experiências, seus sentimentos, suas percepções de sofrimento social e de superação por serem gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.

O site mais promovido é o chamado “We Are SDAS” (em português “Nós somos Adventistas do Sétimo dia”), no endereço www.wearesdas.com, que coleciona 12 depoimentos sobre as implicações de ser adventista e ao mesmo tempo LGBT. O próprio site da organização apresenta alguns vídeos obre as histórias de alguns de seus membros.

Outro site promovido tem como objetivo divulgar um filme documentário de longa-metragem chamado Seventh Gay Adventists (que faz alusão ao nome dos membros da igreja em inglês Seventh Day Adventists), no endereço www.sgamovie.com, que foi lançado com a ajuda de membros da organização para mostrar a vida de casais homossexuais da comunidade adventista que buscam combinar sua sexualidade com os princípios e valores da IASD.

Na página da rede social “Facebook”, a organização também tem um perfil e além dele, está representada por vários subgrupos que têm em suas especificações modos de participação privadas. Diversos grupos ligados a organização servem para as diversas categorias: para jovens menores de 30 anos, para mulheres, para pessoas que falam espanhol, para pessoas de várias localidades, etc. Existe também um grupo destinado aos homens desta comunidade, chamado SDA KINSHIP MEN, que mantém um espaço exclusivo para o debate sobre a masculinidade neste grupo excluído da igreja.

Como os demais membros, os participantes brasileiros também se comunicam pelo Facebook e têm um espaço destinado especificamente para eles. SDA KINSHIP tem 15 assistentes que gerenciam a manutenção da comunidade. Dividida por regiões e sub-regiões, a organização tem representantes em todos os continentes, com mais de mil associados encontrados em mais de 20 países. Para o Brasil existe um coordenador regional que administra o contato dos membros brasileiros com a organização.

Por lidar com pessoas que geralmente sofrem ou sofreram retaliação de sua comunidade, é uma organização que preza pela confidencialidade e preserva a identidade de seus membros caso eles peçam sigilo sobre suas identidades ou sexualidades.

A organização também enfatiza que não é uma dissidência da igreja e nem tem um sistema teológico paralelo ao da IASD, mas sim oferece um local para que membros e ex-membros da igreja possam ter um local seguro para discutir sobre espiritualidade e sexualidade. Da mesma forma, SDA KINSHIP informa que não tem um objetivo de transformar homossexuais em heterossexuais, nem de ajudar seus integrantes a sublimarem seus sentimentos e percepções de gênero ou sexualidade. Ao contrário, ela refere que encoraja as pessoas a lidarem de forma saudável com sua espiritualidade, sexualidade, gênero e relações sociais, mantendo uma harmonia entre todas estas questões.

Ainda que não esteja concentrada em questões teológicas, a organização mantém contato com a conferência geral da IASD, já tendo tido reuniões com delegados oficiais da igreja para discutir sobre o assunto de sexualidades e gêneros não heteronormativos. A primeira reunião aconteceu em 1980, com 35 membros da organização e com dois pastores e três professores do seminário adventista.

Após esta reunião, os pastores criaram empatia e se familiarizaram com o isolamento e sofrimento social que os membros de suas igrejas sentiam e se prontificaram em trabalhar para diminuir tal isolamento social e a desconfiança entre os membros em vista de trazer menor sofrimento. Naquela época, criaram- se propostas, sugerindo que estas questões de gênero deveriam ser especialmente estudadas pelo seminário, que as publicações adventistas deveriam ser equilibradas ao falar sobre esse assunto, e que as escolas deveriam incluir a discussão sobre homossexualidade nos programas de educação sexual.

Encontro da SDA KINSHIP em Collegedale, no Tennessee.

A partir de então, mais de cem pastores e professores do seminário adventista já compareceram aos encontros anuais da SDA KINSHIP. Por encontros, tanto a conferência geral, como muitos membros, igrejas e universidades nos Estados Unidos têm tido maior contato com a organização e os temas associados a ela. Muitas vezes esta organização mandou informativos sobre HIV/AIDS às igrejas americanas, tendo também participado de conferências da igreja sobre esse tema.

Mesmo que a relação da igreja com a SDA KINSHIP seja amistosa, alguns conflitos já aconteceram no passado, por conta de algumas posições da igreja significativamente rígidas. Essa rigidez se fez notável em 1981, quando um artigo de Charles Wittschiebe publicado na revista adventista advertiu que ainda que haja compaixão entre a igreja e a comunidade LGBT, “a igreja não pode negociar com grupos organizados que referem a si mesmos como gays ou lésbicas adventistas do sétimo dia nem pode estabelecer relações diplomáticas com tais grupos quando tal posição poderia ser considerada endosso ou apoio a uma filosofia e estilo de vida divergente’”.

Outro conflito entre a igreja e o grupo surgiu por conta do uso do nome da igreja no nome da organização. A igreja fez uma ação legal nos Estados Unidos contra este uso, mas em 1991 a organização foi absolvida, sendo que a juíza responsável pelo caso afirmou que a organização não infringia os direitos autorais da igreja, podendo assim usar este nome como identificação.

Ainda assim, igreja não considera a organização como integrante aos demais órgãos da instituição por essa não compartilhar dos mesmos princípios e valores voltados às questões de gênero e sexualidade.

Em 9 de outubro de 2015, um documento do seminário adventista da Universidade de Loma Linda, nos Estados Unidos, foi publicado descrevendo sobre a compreensão da visão bíblica quanto as práticas homossexuais e como deve ser o cuidado pastoral frente a seus membros. De acordo com Eliel Cruz, este documento, que demorou 6 meses para ser produzido, mostrou pouca compreensão sobre a sexualidade humana por confundir sexo, gênero e sexualidade.

Cruz refere que ainda que o documento teologicamente critique relacionamentos formados por pessoas do mesmo sexo, como tem feito desde sempre e sem nenhuma novidade, ele peca em lidar sem profundidade com os temas da transexualidade e em elaborar pouco sobre o que seriam as práticas homossexuais pecaminosas.

O autor também aponta que o documento não provê exemplos sobre como amar e cuidar do membro LGBT em sofrimento — seja sofrendo bullying, com ideias suicidas, sofrendo violência física ou ameaças –, mas diz que o pastor deve, com sensibilidade e amavelmente, promover no outro uma mudança comportamental a fim de que o membro seja celibato ou não se relacione sexualmente com o mesmo sexo. De acordo com Cruz, ainda que as terapias reparatórias para mudança de sexualidade sejam altamente perigosas para o público LGBT, o documento ainda diz ter esperança que seus membros possam mudar sua condição.

Frente a um ambiente de difícil flexibilização, a luta da SDA KINSHIP para providenciar acolhimento a adventistas ou ex-adventistas LGBT tem sido extensa, sendo que por 35 anos tem subsistido mesmo em tempos de muito preconceito. Entretanto, muitos dos membros e ex-membros ainda não conhecem esta organização. Frente a um número de mais de 17 milhões de membros da igreja mundial, a faixa abaixo dos dois mil membros associados à organização, sendo ela também uma comunidade virtual, é impactante.

Uma menor representatividade de membros da igreja na organização pode significar uma série de questões: a defesa contra a exclusão da igreja; a evitação de conflitos, não chamando a atenção para si, mantendo uma postura de abstenção do debate para que não se gerem tensões dentro da comunidade Adventista; a falta de informação de que existe um grupo que debata e aceite livremente as questões LGBT de forma sigilosa e respeitosa.

Esta falta de informação sobre a existência desta comunidade é notada ao se observar que a divulgação do trabalho desta organização acontece principalmente nos Estados Unidos, numa escala muito maior do que em outras partes do mundo. No Brasil, por exemplo, não existem informações fornecidas pela organização às universidades adventistas brasileiras, tendo elas sido pouco influenciadas ou contatadas pelo trabalho da SDA KINSHIP.

Um exemplo disso é a existência de uma coalisão universitária entre Universidades Adventistas norte — americanas que apoia os grupos de alianças entre gays e heterossexuais e que tem base no trabalho da SDA Kinship, sendo que no Brasil, as universidades adventistas ainda não oferecem estes grupos, muito menos têm alguma associação entre si ou com as universidades de lá.

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*Josué de Castro Filho é doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela Universidade de São Paulo, e desenvolve estudos acadêmicos em religiosidade, sexualidade e gênero. O texto acima foi publicado originalmente na dissertação durante o Mestrado em Ciências pela mesma Universidade.

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