Privilégios x servilismo: a escalada da inconsciência coletiva no Brasil

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4 min readJun 4, 2020

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*por Marcela Fujiy

Nascer e crescer no Brasil em uma família privilegiada significa que você tem uma empregada doméstica. E se você mora no Norte/Nordeste você terá várias com a única função de deixar a sua vida mais fácil. Para limpar, cozinhar, lavar ou cuidar dos seus filhos.

Sempre foi assim e comigo não foi diferente.

Até que a vida pode te oferecer uma oportunidade de enxergar as coisas de um outro ângulo: você pode ficar mais consciente ou como diz a gíria em inglês “stay woke” — uma expressão em inglês que nasceu dentro da comunidade negra e era usada para descrever aqueles que são autoconscientes, questionando os paradigmas de raça e lutando por algo melhor — ou você pode ir morar fora, como eu fiz e de preferência na Suécia.

Aos poucos fui aprendendo a limpar minha casa, fazer minha comida, lavar meu banheiro e a achar aquilo normal. Aos poucos fui vendo uma sociedade inteira funcionando sem o servilismo.

12 anos depois era hora de voltar. Casada e com dois filhos pequenos, sentamos eu e meu marido para conversamos sobre como manter em casa e na família tudo que havíamos aprendido nessa jornada de mais de uma década. Dentre outras muitas decisões não teríamos empregados domésticos por mais que isso facilitasse a vida.

Eu sabia que ia precisar de uma ajuda em casa assim como eu tinha na Suécia — uma empresa que vinha semanalmente fazer a limpeza pesada do apartamento — mas sabia também da inexistência desse tipo de empresa com esse serviço no Brasil além saber do perigo de ter na nossa realidade pessoas desconhecidas com acesso a minha casa.

A saída que achei foi a diarista. Foi quando conheci Andreia. Em 2013.

Aliás, foi apenas em 2013 que o trabalho da empregada doméstica foi de fato oficializado como qualquer outro trabalho no governo da Presidente Dilma Rousseff.

Andreia me ajudava uma ou duas vezes por semana dependendo da dinâmica familiar. Na época eu e meu marido viajávamos tanto a trabalho que perdi a conta de quantas vezes nos encontramos apenas no aeroporto antes de eu partir e ele chegar ou vice-versa.

Até 2013 era “permitido” que as empregadas domésticas trabalhassem por anos a fio em casas de famílias sem seus direitos assegurados, jornadas infinitas e salários abaixo do mínimo estipulado.

Não foi diferente com Andreia. Quando eu assinei a carteira de Andreia para que ela disponibilizasse 3 dias da semana para minha família, ela que com 34 anos havia trabalhado 13 em uma família sem nunca ter sua carteira registrada.

Um terço de sua vida sem nenhum direito assegurado. Fazendo as contas começou a trabalhar ainda criança com 11 anos.

Andreia, responsável que era, um dia me liga avisando que não iria vir trabalhar. Seu filho havia sido assassinado. Executado. Envolvido em uma briga de tráfico de drogas.

Ali naquele momento eu me dei conta como eu havia caído nesse ciclo vicioso novamente. Achando que Andréia era sortuda de ter um emprego que a permitisse vir apenas três dias ao trabalho enquanto ganhava um salário mínimo. O quão sortuda ela era por ter me achado e ter sua carteira registrada. Eu do meu pedestal olhava para ela com a relação de serventia e servilismo que toda elite e classe média brasileira tem.

Andreia tem seu filho assassinado e eu daqui do meu pedestal avaliando o quão sortuda ela é de me ter em sua vida.

Recentemente li um artigo de um jornalista alemão que mora no Rio com uma análise sobre as Empregadas Domésticas x Covid19 e todo servilismo enraizado em nossa sociedade. De alguma forma ler o artigo de Marian Blasberg era como ter uma voz antiga ecoando lá do fundo.

Todas as vezes que eu começava essa discussão com alguém eu sempre esbarrava no argumento de que “ mas ao menos essa é uma oportunidade para elas” ou “ esse é um trabalho como qualquer outro” ou mesmo “ isso gira a economia”.

Mesmo sendo um dos trabalhos mais dignos que já vi, a relação quando se emprega uma empregada doméstica mesmo que exista muito respeito é de serventia. E isso é o que nos impede de progredir enquanto uma nação mais igualitária. A relação de igualdade parte do pressuposto que somos iguais em todos os sentidos. Uma relação de serventia não tem como base a igualdade. A base é do manda quem pode obedece que tem juízo.

Passado alguns meses que o filho de Andreia foi assassinado, minha vida mudou e a dela também. Tornei a me incomodar com essa situação de pedestal. Ela seguiu com sua vida. Eu com a minha.

Hoje tenho uma diarista que vem em casa uma ou duas vezes por semana. Todos na família são participativos nos afazeres domésticos. Limpar, lavar roupa e cozinhar.

Dentre muitos ciclos que foram se encerrando e se iniciando em minha vida está o nascimento há dois anos da Be.Labs Aceleradora, uma aceleradora de mulheres que tem como missão proporcionar poder econômico às mulheres e construir um mundo com equidade de gênero, independente de ideologias.

Essa é a forma que eu acredito que a economia gira de verdade.

*Consultora e Aceleradora de Mulheres. Sócia-fundadora da Be.Labs Aceleradora.

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Marcela Fujiy
FURACANIZANDO

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